quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Estado de catástrofe semiótica e mistérios da produtividade

Diz-se que, em 1968, quando os russos invadiram a Checoslováquia, os checos retiraram a sinalização das estradas para impedir que os tanques inimigos conseguissem encontrar o seu caminho.

Se algum exército tentasse invadir Portugal (coisa que, caso único na Europa que a todos nos envergonha, ninguém tenta fazer há 200 anos bem contados) a nossa melhor defesa seria deixar a sinalização tal como está e esperar que ele se perdesse no emaranhado de pitorescas ruas e ruelas que fazem o encanto deste nosso jardim.

Tanto o intrincado urbanismo das nossas cidades como o traçado sinuoso das nossas estradas e, às vezes, dos próprios caminhos de ferro, testemunham a confusão de espírito que se sobrepõe a qualquer tentativa de planeamento racional. Rasgar uma rua a direito, plantar um jardim onde se planeara plantar um jardim, demolir uma ruína abandonada são tarefas hercúleas que, em certos casos, mobilizam e esgotam a opinião pública durante anos. Daí talvez a reverência com que contemplamos essa escassa excepção que é a baixa pombalina de Lisboa.

Muito antes de Einstein, já os portugueses sabiam que o espaço é curvo. Entre nós, o caminho mais curto entre dois pontos é aquele que, entre mil circunvoluções, torneia o quintal de cada um, mesmo que ele seja clandestino (ou, principalmente, se ele for clandestino). A sinalização das nossas cidades revela também esta paixão nacional pela excepção, forma eufemística de designar a reverência dos poderes públicos perante o egoísmo mais mesquinho. Aqui, é proibido estacionar, excepto viaturas oficiais, médicos ou deficientes. Ali, é proibido virar à esquerda, excepto viaturas da GNR ou veículos das obras. Mais adiante, não se pode virar à direita, excepto transportes públicos ou veículos ligeiros (juro que vi este sinal).

Com toda esta trapalhada de ordens e contra-ordens, não admira que, de vez em quando, um automobilista mais confuso e não exemplarmente sóbrio apareça a circular fora da mão na auto-estrada.

Não sigo Confúcio quando ele pretende que um erro de linguagem pode derrubar um império, mas convenhamos que falhas de comunicação deste calibre configuram um estado de catástrofe semiótica que, para usar um eufemismo, não ajudam o país a funcionar com eficiência. O pior é que o drama não se confina à sinalização. Da sinalização à organização urbana, da organização urbana ao sistema de transportes, do sistema de transportes à logística, da logística à organização fabril – por toda a parte encontramos réplicas deste sistema.

Ora bem, sejam quais forem os defeitos e limitações dos métodos usados para medir a produtividade, não restam grandes dúvidas de que Portugal tem um sério problema neste domínio, desgraçadamente pouco discutido e menos entendido.

A produtividade não decorre da aplicação de maior esforço e proficiência na execução de uma dada tarefa, caso contrário a pá jamais teria sido substituída pela escavadora. Bem pelo contrário, resulta da aplicação da lógica ao processo produtivo. Quanto mais racionalmente pensarmos a organização dos recursos, melhor será o resultado final.

Uma peculiaridade desta lógica é a exigência de se pensar os sistemas do fim para o princípio, ou seja, partindo do resultado pretendido para, por um processo inverso, determinar o modo como o trabalho deve ser organizado. A alternativa, note-se, é organizar o trabalho em função de circunstâncias mais ou menos fortuitas ou de poderes particulares que se sobrepõem ao conjunto. É este o erro que vemos em acção nas nossas estradas e caminhos: na ausência de respeito pelo utilizador (que deveria ser o seu propósito orientador), prevalece a redução de custos mal entendida, ou a força do hábito, ou o interesse particular ou, quem sabe, a mera estupidez.

Podemos conjecturar que a mera difusão dos aparelhos GPS permitirá superar o absurdo da sinalização que nos calhou em sorte.

Infelizmente, na economia, o equivalente a essa submissão do país a um sistema de orientação inventado por outros será talvez o enquadramento das empresas portuguesas em cadeias de valor que não dominam nem entendem, uma forma de provincianismo a que nos encontramos muito acomodados.

O resultado será a inelutável desqualificação e desvalorização do trabalho nacional. Ora, eu não sei se será exactamente isso que queremos.

(Publicado no Jornal de Negócios em 16.12.09)