quarta-feira, 5 de maio de 2010

Fomos à Índia por mar porque não havia aviões

O Presidente da República iniciou o seu discurso comemorativo do 25 de Abril apontando a crescente desigualdade como o problema número um do país. Minutos depois, concluíu que o país deve apostar no mar.

Poucos observadores notaram a evidente contradição, sem dúvida porque entre nós não se exige coerência entre o diagnóstico e o propósito, nem se espera que ele se traduza em acção consistente. É por isso que qualquer emaranhado de lugares comuns e intenções piedosas é aceite como um diagnóstico válido. Excita mais a retórica, mesmo que nulamente fundamentada, ou seja, mesmo que permaneça misterioso o modo como as intenções anunciadas contribuirão para a resolução dos problemas de que padecemos.

Alguém que pouco depois subiu ao governo explicou-me um dia que essa minha insistência em pedir que objectivos e estratégias sejam deduzidos de uma análise aprofundada da situação releva de um vício positivista.

Isto só por si seria tema para um artigo, mas, infelizmente, agora não temos tempo.

Certo comentador de sucesso embirra por sistema com os rumos da economia portuguesa. Não gosta dos eucaliptos porque secam os poços, nem das celuloses porque poluem os rios. Não gosta dos têxteis porque pagam salários baixos. Não gosta do turismo porque deu cabo do Algarve. Não gosta do golfe porque consome muita água. Não gosta dos portos porque os contentores tiram a vista às cervejarias, nem dos aeroportos porque custam muito dinheiro.

Que espécie de economia deveríamos então construir? Muito fácil, ensina ele: indústrias limpas. Por exemplo, jornais – excepto se são feitos com papel e transportados por aviões ou se alimentam campanhas sujas. Para além disso, é claro, há o mar, uma riqueza limpa, imensíssima e incompreensivelmente desprezada.

Se o nosso mar fosse muito rico em recursos pesqueiros, o prato nacional não seria o bacalhau, que habita a milhares de quilómetros. Apesar de a nossa costa ser extensa, há portos naturais em maior quantidade e qualidade na Galiza do que em todo o Portugal. A energia das marés poderia resolver-nos muito problemas, mas ignora-se ainda quando os avanços tecnológicos viabilizarão a sua utilização em larga escala. Há espaço para o desenvolvimento da piscicultura no alto mar, mas faltam conhecimentos e estruturas empresariais.

Está visto que este nosso mar não é de rosas, de modo que, feitas as contas, a importância dele para a economia resultará antes de mais do modo como saibamos aproveitar a nossa situação geográfica para nos inserirmos nas redes logísticas do comércio mundial – mesmo que isso incomode as cervejarias com vista para o oceano. Esta sólida realidade deve, porém, ser complementada com o entendimento de que, hoje, tão importantes para esse propósito como as ligações marítimas são-no as aéreas. Não é por lhe faltar uma letra que o ar vale menos que o mar.

Ora, desse lado, as notícias não são fantásticas. A fusão da British Airways com a Iberia colocou a TAP numa posição difícil. Historicamente, os britânicos sempre privilegiaram na Península a aliança com Portugal em detrimento da Espanha, mas, agora, ficámos de lado neste projecto de domínio da navegação aérea atlântica. Qual é o futuro da TAP? Como e quando será privatizada? Quem serão os seus donos? Que alianças daí resultarão? Como assegurar que delas não resultarão consequências negativas para a competitividade do país?

É possível que alguém tenha a resposta e guarde o segredo a sete chaves, mas os partidos não querem saber, os media não perguntam e nós interrogamo-nos.

Sucede que o novo aeroporto de Lisboa foi, no essencial, projectado para dotar a TAP de um hub à altura das suas ambições transcontinentais. Sem uma ideia clara sobre o futuro da TAP – ou, sequer, sobre se haverá um futuro para ela – quem quererá investir nessa infraestrutura?

Deveríamos todos meter na cabeça que os aeroportos internacionais são as infraestruturas mais importante que o país tem. Para o entender, exige-se apenas o pequeno esforço de imaginar a desgraçada situação a que ficaríamos reduzidos se não existissem.

Hoje tratámos da água e do ar. Ficam para uma outra ocasião a terra e o fogo.

(Publicado no Jornal de Negócios de 5.5.10)