quarta-feira, 7 de abril de 2010

Fantasia, empreendedorismo e desenvolvimento

Tal como seu irmão Pedro, Henrique operava uma empresa de corso entre o estreito de Gibraltar e o Sul de Marrocos. Após a tomada de Ceuta, o comércio de ouro através do Sará foi naturalmente desviado para outras praças marroquinas, deixando Henrique a sonhar com a possibilidade de atingir directamente a origem do metal precioso navegando ao longo da costa de África.

Essa rota comercial nunca fora explorada antes de forma sistemática devido a dificuldades relacionadas com os baixios ao longo da costa, com a ausência de povoamento humano numa longa extensão e com o regime de ventos que dificultava as viagens de regresso. Mas, em 1434, Gil Eanes atingiu o Cabo Bojador em expedição organizada por Henrique, não conseguindo porém fazer cativos – uma meta muito importante, tanto pela receita que propoporcionava como por permitir recolher informações sobre a localização das zonas produtoras do ouro.

Sem receitas, as explorações rumo ao sul careciam de um modelo de negócio viável. Parte do problema foi resolvido com a descoberta em 1436, na Pedra da Galé, de uma numerosa colónia de leões marinhos, cuja pele e óleo rendiam bom dinheiro. Era fraca recompensa para tão arriscados trabalhos, mas, ainda assim, melhor que nada.

Finalmente, em 1443, Nuno Tristão descobriu perto do Cabo Branco um pequeno conjunto de ilhas habitadas onde era fácil aprisionar os locais e trazê-los para serem vendidos como escravos. Numa das ilhas foi edificada a feitoria de Arguim que, em ligação com uma povoação continental próxima, se tornou num dinâmico entreposto onde um cavalo se trocava por dez cativos. Assim se criou um negócio sustentável, capaz de financiar a continuação das expedições rumo às terras dos negros e às fontes do ouro. O movimento regular de navios intensificou-se e acelerou-se o progresso em direcção ao Sul.

Os descobrimentos portugueses tiveram, pois, a sua origem em actos de pirataria esporádicos que a pouco e pouco assumiram a consistência de uma organização quasi-empresarial. Tendemos a pensar que os esquemas grandiosos começam de forma grandiosa. Mas ninguém na época poderia supor que a busca de ouro e escravos conduziria, por uma série de efeitos em cadeia, à exploração sistemática do Atlântico, à descoberta das Américas, ao comércio marítimo com a Índia, a China e o Japão, e, finalmente, à progressiva decadência do Islão, à submissão da Ásia à Europa e ao triunfo do capitalismo à escala global.

Não é preciso acreditar que Henrique concebera desde o primeiro momento um grandioso plano para tornear a África, desviar o comércio das especiarias e atacar o Islão pela retaguarda – lenda que a investigação não confirma – para entender que na base dos descobrimentos ao longo da costa de África esteve um ousado esforço de imaginação e vontade.

Os ganhos que Henrique de início obteve não eram muito significativos no conjunto dos vastos negócios de um homem que, além de ser Grão-Mestre da poderosa Ordem de Cristo e Duque de Viseu, detinha, entre outros, os monopólios da pesca do atum no Algarve, do fabrico e comércio do sabão e da navegação para as Canárias. O mero ganho económico não explica o entusiasmo pelas navegações atlânticas, sobretudo tento presente quão elevado era o risco e incertos os lucros.

Recordar esta estória pode porventura inspirar-nos alguns pensamentos úteis para os dias de hoje. A administração quotidiana de uma empresa, centrada na resolução de problemas triviais, é já de si uma tarefa altamente exigente, pouco tempo sobrando para conceber e pôr em prática novos projectos. Os recursos dedicados à inovação são retirados aos lucros actuais da empresa na mira de ganhos futuros cuja probabilidade não pode ser estimada. Não há nisto, reconheça-se, nada de financeiramente racional.

O gestor comum cuida de resolver problemas ou de eliminar factores negativos. O empreendedor entusiasma-se com a possibilidade de fazer o que nunca ninguém fez: a sua motivação não é remendar, mas transformar. Este impulso pode ter as mais variadas origens – afirmação social, espírito competitivo, realização pessoal, alguma loucura – do que não sobra dúvida é que ele é extra-económico.

Uma economia equilibrada, estável e bem administrada reproduz-se eternamente tal qual, não se desenvolve. O desenvolvimento vem de fora da economia, espicaçado pelo aguilhão da fantasia, do espírito de aventura e do optimismo imoderado. Um país macambúzio, cujos fazedores de opinião mesquinhamente se entretêm a apoucar toda e qualquer iniciativa que não provenha dos mais poderosos interesses instalados, não tem condições para progredir significativamente.

Perceber isto é identificar o inimigo.

(Publicado no Jornal de Negócios de 7.4.10)