quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Estado de catástrofe semiótica e mistérios da produtividade

Diz-se que, em 1968, quando os russos invadiram a Checoslováquia, os checos retiraram a sinalização das estradas para impedir que os tanques inimigos conseguissem encontrar o seu caminho.

Se algum exército tentasse invadir Portugal (coisa que, caso único na Europa que a todos nos envergonha, ninguém tenta fazer há 200 anos bem contados) a nossa melhor defesa seria deixar a sinalização tal como está e esperar que ele se perdesse no emaranhado de pitorescas ruas e ruelas que fazem o encanto deste nosso jardim.

Tanto o intrincado urbanismo das nossas cidades como o traçado sinuoso das nossas estradas e, às vezes, dos próprios caminhos de ferro, testemunham a confusão de espírito que se sobrepõe a qualquer tentativa de planeamento racional. Rasgar uma rua a direito, plantar um jardim onde se planeara plantar um jardim, demolir uma ruína abandonada são tarefas hercúleas que, em certos casos, mobilizam e esgotam a opinião pública durante anos. Daí talvez a reverência com que contemplamos essa escassa excepção que é a baixa pombalina de Lisboa.

Muito antes de Einstein, já os portugueses sabiam que o espaço é curvo. Entre nós, o caminho mais curto entre dois pontos é aquele que, entre mil circunvoluções, torneia o quintal de cada um, mesmo que ele seja clandestino (ou, principalmente, se ele for clandestino). A sinalização das nossas cidades revela também esta paixão nacional pela excepção, forma eufemística de designar a reverência dos poderes públicos perante o egoísmo mais mesquinho. Aqui, é proibido estacionar, excepto viaturas oficiais, médicos ou deficientes. Ali, é proibido virar à esquerda, excepto viaturas da GNR ou veículos das obras. Mais adiante, não se pode virar à direita, excepto transportes públicos ou veículos ligeiros (juro que vi este sinal).

Com toda esta trapalhada de ordens e contra-ordens, não admira que, de vez em quando, um automobilista mais confuso e não exemplarmente sóbrio apareça a circular fora da mão na auto-estrada.

Não sigo Confúcio quando ele pretende que um erro de linguagem pode derrubar um império, mas convenhamos que falhas de comunicação deste calibre configuram um estado de catástrofe semiótica que, para usar um eufemismo, não ajudam o país a funcionar com eficiência. O pior é que o drama não se confina à sinalização. Da sinalização à organização urbana, da organização urbana ao sistema de transportes, do sistema de transportes à logística, da logística à organização fabril – por toda a parte encontramos réplicas deste sistema.

Ora bem, sejam quais forem os defeitos e limitações dos métodos usados para medir a produtividade, não restam grandes dúvidas de que Portugal tem um sério problema neste domínio, desgraçadamente pouco discutido e menos entendido.

A produtividade não decorre da aplicação de maior esforço e proficiência na execução de uma dada tarefa, caso contrário a pá jamais teria sido substituída pela escavadora. Bem pelo contrário, resulta da aplicação da lógica ao processo produtivo. Quanto mais racionalmente pensarmos a organização dos recursos, melhor será o resultado final.

Uma peculiaridade desta lógica é a exigência de se pensar os sistemas do fim para o princípio, ou seja, partindo do resultado pretendido para, por um processo inverso, determinar o modo como o trabalho deve ser organizado. A alternativa, note-se, é organizar o trabalho em função de circunstâncias mais ou menos fortuitas ou de poderes particulares que se sobrepõem ao conjunto. É este o erro que vemos em acção nas nossas estradas e caminhos: na ausência de respeito pelo utilizador (que deveria ser o seu propósito orientador), prevalece a redução de custos mal entendida, ou a força do hábito, ou o interesse particular ou, quem sabe, a mera estupidez.

Podemos conjecturar que a mera difusão dos aparelhos GPS permitirá superar o absurdo da sinalização que nos calhou em sorte.

Infelizmente, na economia, o equivalente a essa submissão do país a um sistema de orientação inventado por outros será talvez o enquadramento das empresas portuguesas em cadeias de valor que não dominam nem entendem, uma forma de provincianismo a que nos encontramos muito acomodados.

O resultado será a inelutável desqualificação e desvalorização do trabalho nacional. Ora, eu não sei se será exactamente isso que queremos.

(Publicado no Jornal de Negócios em 16.12.09)

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Como fazer o Estado trabalhar mesmo mal

O atribulado processo de escolha da localização do novo aeroporto de Lisboa tornou evidente a enorme fragilidade do Estado português. Talvez valha a pena tentarmos identificar a sua origem profunda.

Na segunda metade dos anos 80, teve início um processo de progressivo esvaziamento dos departamentos de estudos e planeamento de diversos ministérios. Há que reconhecer uma certa dose de racionalidade na decisão. Nem o Estado precisa de imponentes núcleos de técnicos de variadas especialidades cuja utilização oscila muito de ano para ano, nem tem condições para remunerar adequadamente os mais qualificados dentre eles. Compreende-se, por isso, que recorra com regularidade aos serviços de centros de investigação universitários, empresas de consultoria ou gabinetes de projectos.

O problema é que essa racionalização foi demasiado longe, transformada num dogma inquestionável que perdeu de vista o seu propósito inicial. De modo que, hoje em dia, o Estado encontra-se destituído de competências técnicas efectivas em áreas cada vez mais numerosas.

Esta evolução foi propiciada por doutrinas, tão pacóvias como nefastas, segundo as quais o Estado não necessita de definir estratégias próprias de actuação, limitando-se a responder às solicitações da sociedade civil. O resultado desse liberalismo mal assimilado está à vista de todos: muitas e relevantes instituições estatais carecem de um pensamento próprio acerca da área em que actuam, limitando-se, por isso, a prosseguir políticas e a distribuir recursos sem outro critério visível que não seja o de agradar às associações empresariais e aos lóbis mais influentes.

Os últimos anos têm vindo a comprovar, de modo cada vez mais evidente, os prejuízos resultantes da desvalorização das competências técnicas do Estado. Destacarei três razões por que este estado de coisas não pode continuar.

Em primeiro lugar, o Estado necessita de preservar uma memória inteligente. O planeamento de grandes infraestruturas nacionais – sirva mais uma vez de exemplo o novo aeroporto internacional de Lisboa – leva anos (por vezes décadas), ao longo dos quais são estudadas e avaliadas múltiplas alternativas segundo uma variedade de critérios que, naturalmente, vão também evoluindo com o tempo. Na ausência de instituições públicas sólidas encarregadas de preservar a memória do que se fez e por quê, às tantas ninguém – literalmente ninguém – sabe exactamente se será ou não preciso refazer este ou aquele estudo e com que pressupostos.

Em segundo lugar, a aquisição ao exterior de trabalhos complexos de consultoria e projecto exige elevadas competências técnicas, seja para definir as especificações da encomenda, seja para avaliar criteriosamente as propostas recebidas, seja, finalmente, para interpretar as conclusões a que se chegar. Não se imagina porventura quanto pode perder o Estado anualmente quando este trabalho é mal feito.

Em terceiro lugar, sem uma tecno-estrutura capaz e dedicada ao serviço público, não há condições para estruturar com o necessário detalhe as políticas públicas. Sabe-se como os nossos partidos estudam pouco e superficialmente os assuntos. Com demasiada frequência, só depois de tomarem assento nos ministérios é que os seus titulares começam a debruçar-se mais a sério sobre eles. De modo que, ou se rendem aos encantos do primeiro vendedor de banha da cobra que lhes aparece, ou ficam dependentes de gabinetes técnicos montados à pressa com jovens inexperientes que ignoram quase tudo do que até essa data se fez.

Tudo isto se traduz na notória ausência de políticas devidamente articuladas e pensadas nas suas consequências. Veja-se, por exemplo, como, após anos e anos de planos feitos em cima do joelho e debates caóticos em que o número de linhas de TVG projectadas variou entre zero e sete, tivemos a sorte de a União Europeia e a Espanha decidirem por nós o que de facto irá ser feito. Situações similares ocorreram e ocorrem em múltiplas áreas da governação, incluindo os transportes, as comunicações, a indústria, a agricultura, o comércio externo, a investigação, a saúde ou a educação.

Não faz qualquer sentido, numa época em que tanto se fala do papel central do conhecimento nas sociedades contemporâneas, que o Estado se resigne à desvalorização do capital de know-how que lhe é próprio e que não pode alienar sob pena de todos ficarmos mais pobres.

(Publicado no Jornal de Negócios de 18.11.09)

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O esplendor de Portugal

A revolução agrícola iniciada na Mesopotâmia terá levado uns 2 mil anos a chegar a este cantinho da Ibéria. Na época do Império Romano, a Lusitânia era uma das províncias de mais difícil acesso por terra ou por mar. O território que habitamos viveu sempre na periferia do mundo árabe e longe dos seus centros culturais na Península.

Mais tarde, o incremento da navegação atlântica decorrente do aperfeiçoamento das técnicas de marear contribuíu significativamente para valorizar a nossa posição geo-estratégica. As explorações no Atlântico, intensificadas a partir do século quinze, traduziram um aproveitamento audaz dessas novas circunstâncias.

Sabe-se que, na corte, foram ponderadas três estratégias alternativas de expansão: a) a conquista de Granada; b) a conquista de Marrocos; c) a exploração da costa de África. A primeira foi liminarmente recusada por falta de capacidade financeira. A segunda, ensaiada com a tomada de Ceuta, revelou-se também demasiado ambiciosa. Só a terceira passou na análise custo-benefício.

Portugal era então um reino europeu relativamente atrasado, e assim permaneceu no auge do seu império marítimo. O excedente económico gerado por solos pobres não era suficiente para alimentar grandes cidades e uma classe numerosa de artesãos especializados. Por falta de matérias-primas, conhecimentos técnicos e gente qualificada, as melhores naus eram no período áureo do Império construídas na Índia e o país importava canhões em grandes quantidades. Do estrangeiro vinha também grande parte dos marinheiros e artilheiros.

Segundo as estimativas de Angus Maddison, Portugal tinha em 1500 o mais baixo produto per capita da Europa Ocidental, rondando 80% da média da região. Ao contrário do que usualmente se afirma, não houve nos séculos que se seguiram aos Descobrimentos um fenómeno de decadência económica generalizada, antes períodos alternados de maior ou menor prosperidade. Maddison acredita que em 1820 a nossa distância económica em relação à Europa ter-se-ia degradado muito pouco em relação à de trezentos e vinte anos antes.

O fosso económico entre Portugal e a Europa Ocidental só começou a acentuar-se após a Revolução Industrial, quando um pequeno número de nações europeias se destacou rapidamente do resto do mundo. A primeira metade do século XIX foi um período negro, marcado por uma sucessão de conflitos armados, revoluções e guerras civis que acentuaram dramaticamente o atraso do país.

O caminho-de-ferro, o telégrafo e a imprensa tornaram as nossas classes cultas angustiadamente conscientes do atraso nacional na parte final do século, altura em que o produto per capita português já não chegaria a metade do da Europa Ocidental (situação que viria a agravar-se ainda mais até à I Guerra Mundial). “Uma geração inteira acha intolerável que Lisboa não seja Londres e Paris” (Eduardo Lourenço) e desse choque emerge o diagnóstico proposto por Antero de Quental no seu ensaio Causas da Decadência dos Povos Peninsulares – uma narrativa tão poderosa que ainda hoje marca profundamente o modo como os portugueses dos mais diversos quadrantes ideológicos interpretam o seu país.

Simplificando, Antero propôs no seu livro o regresso ao passado esplendoroso mediante o corte com a cultura jesuítica que enfraquecera a grandeza essencial da pátria. Essa mitologia foi adoptada pelos republicanos e incorporada no hino nacional. O Estado Novo deitou fora a retórica anti-católica, mas reteve e reforçou o saudosismo nacional-imperialista implícito no tema da recuperação da grandeza perdida dos “egrégios avôs”.

Os portugueses permanecem dominados pela ambição de “levantar hoje, de novo, o esplendor de Portugal”. Ora, Portugal nunca foi o país desenvolvido que se imagina, logo o “esplendor” nunca existiu e o propósito carece de sentido. Houve, sem dúvida, uma época em que, mercê de várias circunstâncias, desempenhámos um papel pioneiro no curso da história mundial; e é verdade que o frágil e mutável império marítimo que então construímos nos conferiu, até à perda do Brasil, um peso considerável na política europeia. Mas também a Rússia perseguiu Napoleão até Paris e, muitos anos mais tarde, abriu o caminho à exploração do espaço, sem por isso deixar de ser o país atrasado que era e é.

A obsessão com a mítica grandeza passada de Portugal é responsável, acredito eu, pela frustração colectiva que nos avassala. A evidente aproximação à Europa Ocidental desde 1945 não pode contentar-nos, porque jamais aceitaremos menos que o primeiro lugar no concerto das nações, a que, por colossal ignorância histórica, julgamos ter direito.

A fascinante crónica de Azurara mostra-nos que os portugueses de quatrocentos partiram à aventura pela costa africana abaixo guiados não por mirabolantes sonhos de grandeza, mas pelo impulso de ganharem a vida o melhor que sabiam e podiam, e, talvez, fazer fortuna; alguns, transcendendo-se, lograram feitos dignos de serem recordados.

Mais ou menos, afinal, como fazem os portugueses de hoje.

(Publicado no Jornal de Negócios de 21.10.09)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O futuro pelo espelho retrovisor

“Portugal sem potencial depois desta recessão.” “Crescimento do produto potencial será quase nulo nos próximos anos.” “Fraco potencial condena Portugal a crescimento medíocre”. Títulos deste género são comuns na imprensa portuguesa. Que verdade há neles?

O crescimento de uma economia acima de um nível de actividade sustentável pode conduzir a um aumento generalizado dos preços. Por isso, as autoridades responsáveis pela política económica (principalmente, as que cuidam da política monetária) tentam determinar esse “nível sustentável”, a que se dá o nome de “produto potencial”. Quando o produto real é idêntico ao produto potencial não há recursos de capital e trabalho desocupados nem pressão excessiva sobre eles.

O produto potencial não é directamente observável, visto que as estatísticas registam apenas a actividade real. Assim, torna-se necessário estimá-lo recorrendo a alguma forma de tratamento de dados. As técnicas mais elementares recorrem a um mero alisamento das tendências através da computação de médias móveis que atribuem um maior peso relativo às observações mais recentes. As mais complexas, estimam uma função de produção para a economia, a partir da qual se obtém o produto potencial com base em estimativas do stock de capital, do emprego potencial e da produtividade de ambos. Curiosamente, não há muitas vezes grandes diferença entre os resultados produzidos pelas duas classes de métodos.

Esta breve exposição torna claro que o produto potencial é um conceito retrospectivo, não prospectivo. Elucida-nos – melhor ou pior – sobre o que se passou, mas é abusivo usá-lo para projectar tendências futuras, porque nada garante que as condições recentes persistirão. A economia irlandesa viveu longos anos de estagnação após a adesão do país à CEE; depois, a partir de meados dos anos 80, começou a crescer muito depressa, fenómeno que a estimativa do produto potencial fora incapaz de prever.

Quando o passado recente é de crescimento lento, o produto potencial tenderá a subestimar a tendência de crescimento futura. Porém, se os agentes económicos tomarem a sério a previsão – que Deus nos defenda! – a retracção do investimento poderá contribuir para gerar uma efectiva estagnação económica. A palavra “potencial” induz naturalmente em erro os leigos, visto poder ser interpretada como uma essência que aguarda ainda a sua plena concretização. Quantas vezes será preciso repetir que não há formas determinísticas de prever o futuro da economia?

A contabilidade nacional não lida com factos, mas com interpretações, plasmadas em conceitos que se espera sejam úteis para entender a realidade económica. Por decorrência, o cálculo do produto potencial não passa de uma interpretação de interpretações. Para além de depender exclusivamente de observações passadas, ainda por cima sujeitas a frequentes e substanciais revisões, a validade das próprias metodologias utilizadas está longe de ser consensual. Segundo investigadores como van Norden e Orphanides, as técnicas utilizadas são tão pouco fiáveis que as correcções a posteriori da diferença entre produto real e produto potencial não se afastam muito do próprio hiato estimado.

A utilidade da estimação do produto potencial é quando muito analítica, visto que nos ajuda a identificar, ao nível macroeconómico, os estrangulamentos que inibiram um melhor desempenho no passado, seja ao nível da quantidade e qualidade do trabalho, da dimensão e orientação do investimento ou da produtividade dos factores – sem esquecer, porém, que essas variáveis usualmente deixam por explicar nada menos que metade da variação observada. No caso português, por exemplo, as principais debilidades identificáveis são a fraca qualidade do investimento público e privado e o bloqueamento da produtividade. Se o Estado e os empresários trabalharem denodadamente para corrigir essas fragilidades, nada impedirá que o país regresse a taxas de crescimento mais satisfatórias.

Entende-se – e, até certo ponto, desculpa-se – que jornalistas pouco versados nas minudências do cálculo do produto potencial cometam a imprudência de anunciar um futuro apocalíptico para a economia portuguesa a partir de dados que não autorizam tais conclusões. Mas deve-se exigir aos economistas profissionais, conscientes das limitações do conceito, que esclareçam as coisas em vez de contribuírem para aumentar ainda mais a confusão dos espíritos.

(Publicado no Jornal de Negócios de 23.9.09.)

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Requiem

Mad Men, a esplêndida série americana que a RTP2 estreou no último dia de Julho centrada na vida numa agência de publicidade nova-iorquina no início dos anos 60, fala-nos de um mundo simultaneamente próximo e distante.

Surpreendem-nos o chauvinismo, a homofobia, o anti-semitismo e a desigualdade entre os sexos, assumidos sem culpa nem subterfúgios pelos personagens. Era assim o mundo (ou, pelo menos, a América) antes dos Beatles. Menos de uma década depois, Woodstock assinalaria a profundidade das alterações entretanto ocorridas nas sociedades ocidentais.

Também o mundo do marketing e da publicidade sofreu desde então transformações radicais. Mad Men começa num momento em que a revolução criativa iniciada por Ogilvy e Bernbach, ainda não tomara conta de Madison Avenue. Sterling Cooper, a agência fictícia retratada na série, embora não imune às transformações que a rodeavam, regia-se pelos padrões mais convencionais da época.

Os account executives controlavam o processo, os copywriters concebiam as campanhas, os art-directors estavam às suas ordens e os media planners limitavam-se a pôr cruzinhas nuns mapas. Os publicitários aplicavam técnicas de venda agressivas. Os clientes confiavam cegamente no poder persuasivo da publicidade. Toda a gente ganhava rios de dinheiro.

A agência de publicidade é uma das instituições mais originais e intrigantes do capitalismo moderno. A economia é por norma encarada como um sistema eminentemente racional de alocação eficiente de recursos, mas os publicitários presumem o contrário. O progresso é na verdade impulsionado pela fantasia dos consumidores: as pessoas não compram brocas de 5 mm, compram furos de 5 mm; as fábricas produzem cosméticos, mas, nas lojas, as clientes adquirem esperança; as marcas colocam a felicidade ao alcance de todos. Assim, é melhor possuir a marca Coca-Cola do que os activos materiais da empresa.

Mau-grado toda a retórica sobre a inovação, a vida nas empresas é por regra rotineira. A grande preocupação é fazer as coisas bem feitas e, de preferência, cada vez mais baratas. Privilegia-se a previsibilidade do trabalho organizado. Não assim nas agências, das quais se exige continuamente soluções inovadoras capazes de assegurarem a preferência de consumidores caprichosos.

Gerou-se nos publicitários a partir dos anos 60 a convicção de que as agências vendem acima de tudo ideias criativas e que a única forma de inventá-las em quantidade e qualidade é fomentar um ambiente de trabalho perigosamente caótico (daí a expressão Mad Men). Foi a era de ouro da publicidade. Com o tempo, porém, o culto da criatividade tomou o freio nos dentes e a reputação das agências ressentiu-se disso.

Já não existem hoje agências como a Sterling Cooper. A pouco e pouco, as diversas actividades que integravam a agência de serviço completo foram sendo separadas, designadamente a lucrativa negociação e compra de espaço. Ademais, a crescente fragmentação dos media (logo, também das audiências) tornou cada vez mais difícil atingir eficientemente o público alvo e contribuíu para minar a fé no poder da publicidade.

Nos anos recentes, ameaças ainda mais terríveis vieram pôr em causa a comunicação de marketing tradicional. O valor essencial dos mass media assentava no racionamento da oferta de informação e entretenimento, o que, a um tempo, restringia o acesso dos anunciantes ao espaço público e forçava as audiências a assistirem à publicidade. Este modelo desagregou-se passo a passo com a difusão do cabo, e sofreu a machadada final com o advento da internet.

Blogues, Podcasts, Flickr, YouTube, Twitter e outras ferramentas similares operaram uma colossal transferência de poder no espaço mediático. Não só qualquer um pode agora tornar-se emissor se tiver algo para dizer, como consegue blindar eficazmente o seu espaço privado contra a invasão de mensagens publicitárias. Os cidadãos e os consumidores conquistaram poder e usam-no em função dos seus interesses. Sobra cada vez menos espaço para a publicidade intrusiva.

Felizmente para ele, Dan Draper, o director criativo da Sterling Cooper, já não tem que se preocupar com nada disto. O mesmo não direi de quem hoje procura ganhar a vida trabalhando em marketing e comunicação.

(Publicado no Jornal de Negócios de 26.8.09)

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Pés no chão, cabeça no ar



Uma fotografia nocturna da Europa tirada do espaço revela-nos, através das manchas luminosas das grandes aglomerações humanas, a distribuição espacial dos seus habitantes, por sua vez indicativa da localização dos principais centros de produção industrial e de serviços.

O núcleo central da Europa, englobando a Alemanha Ocidental, a Holanda, a Bélgica e a região de Paris, prolonga-se a Norte até à Dinamarca, a Sul até ao Norte da Itália e, a Leste, até à Áustria. Ao largo da Europa, a iluminação nocturna sinaliza um conjunto de arquipélagos geo-demográficos mais ou menos próximos do centro. No sentido dos ponteiros do relógio, são eles a Grécia, o Sul da Itália, a Ibéria, a Grã-Bretanha, o Sul da Escandinávia e a Finlândia.

Portugal é, do ponto de vista geo-estratégico, uma ilha do arquipélago ibérico, de peso demográfico similar ao de Madrid e da Catalunha, embora mais excêntrica. Somos o país mais periférico da Europa, um sério handicap que, ao longo dos séculos, remetendo-nos para a margem das rotas de mais intensa circulação de pessoas, bens e ideias, prejudicou o desenvolvimento do país.

Deveria, pois, ser óbvia a relevância de tudo o que minimize o ónus da nossa distância física em relação ao núcleo da Europa, quer se trate de estradas, comboios, aviões, telefones ou internet. Tudo isso é preciso, mas não resolve o problema de fundo, porque, apesar das melhorias absolutas que o investimento em comunicações traz consigo, a nossa situação relativa pouco se altera se os outros fizerem esforços semelhantes.

Em vez de nos resignarmos a estar no fim de linha, temos que esforçar-nos constantemente por sermos um ponto de passagem obrigatório para outra coisa. Foi isso que fizémos de vários modos ao longo da nossa história: na Idade Média, ligando o Mediterrâneo ao Atlântico, o que explica as relações privilegiadas com a República de Génova e com a Inglaterra; mais tarde, expandindo-nos no Atlântico Sul rumo à África, à América do Sul e à Ásia.

Um país distante dos centros gravitacionais do poder económico europeu só pode contrariar a sua excentricidade transformando-se numa plataforma (ou hub, como agora se diz) capaz de potenciar a sua articulação com outros centros externos ao Continente. O modo como isso se faz muda continuamente, e, em certas circunstâncias, de forma súbita: situados em corredores de transição de um para outro centro de atracção, os hubs são pontos sensíveis e frágeis das redes mundiais de trocas, sujeitos a perturbações bruscas que, por vezes, os forçam a modificar rapidamente a sua vocação, atravessando com regularidade fases críticas de regressão.

Do que não há dúvida, é que um país com estas características tem de ser capaz de pensar a sua inserção estratégica nas redes mundiais de circulação de pessoas, mercadorias, informação e conhecimento. Ora, os instrumentos cruciais para o cumprimento desse propósito são, nos dias que correm, de três tipos: em primeiro lugar, aeroportos, portos e serviços conexos; em segundo lugar, universidades e centros de investigação; em terceiro lugar, infra-estruturas capazes de suportarem uma oferta turística variada, atraente e crescente.

Quem entende isto não faz perguntas absurdas sobre a relevância do investimento em aeroportos, terminais de contentores, comboios de alta velocidade, internet de banda larga, literacia digital ou estradas para a competitividade nacional, nem insiste em avaliar projectos nessas áreas ignorando as correspondentes externalidades com o argumento de que é impossível quantificá-las com rigor.

A análise custo-benefício tão cara a alguns economistas obriga à quantificação de ganhos que, pela sua própria natureza, não têm preço. Logo, só fará sentido se previamente nos pusermos de acordo sobre a relevância de certos propósitos para o nosso viver colectivo. Sucede que isso exige a clarificação de um desígnio nacional, isto é, de uma visão do que é necessário fazer para sermos um país viável e próspero. Sem estratégia nacional, não há análise custo-benefício que nos valha.

A racionalidade procedimental discute a adequação de certos meios a dados fins, mas nada pode dizer-nos sobre quais deverão ser esse fins. A teoria económica encara-nos como seres objectivos e calculadores, mas todos sabemos que não é assim que funcionam as pessoas inteligentes. Sugiro que, em vez de pormos as pessoas inteligentes a raciocinar como economistas, deveriamos tentar pôr os economistas a raciocinar como pessoas inteligentes, ou seja: com os pés no chão e a cabeça no ar.

(Publicado no Jornal de Negócios de 29.7.09)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

A ciência lúgubre contra-ataca

Parece-me pouco convincente o argumento (chamemos-lhe assim) contido no Manifesto dos 28. Eis por quê:

1. A discussão da situação é unilateral e enviezada. Conhecemos a gravidade dos desequilíbrios económicos internos e externos do país, mas não pode negar-se a dinâmica subjacente que tem vindo a criar condições para superá-los. Ficando-nos pelo essencial, alterou-se drasticamente em muito pouco tempo o padrão das nossas exportações, predominando agora sectores e produtos com mais valor acrescentado e conteúdo tecnológico. Os efeitos da transformação tardaram a evidenciar-se, porque a emergência do novo fez-se acompanhar do rápido afundamento do velho, mas é indiscutível que em 2006 e 2007 as exportações cresceram de forma sustentada acima das importações, evolução que só foi interrompida quando dispararam os preços do petróleo e demais matérias-primas. Tudo indica que Portugal está no bom caminho para resolver os tais desequilíbrios.

2. Os pressupostos da análise estão mal fundamentados. O Manifesto sustenta que a presente crise vai agravar a situação financeira do país, mas isso parece pouco provável. O problema central da escassez de poupança será pelo menos fortemente atenuado, como resulta da queda do consumo ao mesmo tempo que os salários reais aumentam. A brutal contracção do nosso comércio externo implica que o défice das transacções correntes baixará muito em proporção do produto. Logo, cairão as necessidades de financiamento externo.

3. Em Portugal, como em todo o Mundo, as empresas e as famílias reagiram à incerteza retraindo o investimento e o consumo e, assim, aumentaram muito as suas poupanças. Logo: a) não haverá nos próximos tempos falta de fundos disponíveis para investir; b) só o investimento público poderá travar o agravamento da crise. É absurdo pretender-se que, nestas circunstâncias, o investimento público poderá prejudicar o privado.

4. Uma enumeração de sintomas não é um diagnóstico. Em resumo, eis o meu: O modelo económico que emergiu em Portugal nos anos 50 do século passado entrou em decadência. Os fundos europeus camuflaram o seu esgotamento, de modo que a transformação só se iniciou quando as nossas empresas sofreram em cheio a concorrência dos países do Leste europeu e da China. Como, entretanto, o país se privara de boa parte dos tradicionais instrumentos de política monetária, não houve outro remédio senão aguardar que a reorientação empresarial para novos produtos e novos mercados se concluísse, procurando entretanto minorar os danos políticos e sociais. A crise orçamental foi um mero epifenómeno deste processo.

5. É absurdo basear-se uma estratégia para o país na enumeração de vulnerabilidades. Uma estratégia constrói-se a partir de oportunidades, forças, capacidades, competências e recursos existentes. O que quer que venhamos a fazer resultará decerto da potenciação daquilo que de positivo já existe ou está a emergir. Todavia, os subscritores do Manifesto do 28 parecem só conhecer o país através da Contabilidade Nacional.

6. É falacioso pretender-se que, se no passado se errou nos investimentos públicos, isso prova que eles não são necessários para melhorar a competitividade. Não podemos julgar os projectos presentes pela eventual mediocridade dos passados.

7. A competitividade de um país periférico, ainda por cima de vocação turística, é muito condicionada pela qualidade das suas ligações rodoviárias, ferroviárias, aéreas e portuárias ao resto do Mundo e, antes de mais à Europa. A necessidade do novo aeroporto de Lisboa não depende da evolução recente da procura, porque ele já se encontra congestionado há anos, provocando a degradação da qualidade do serviço percebida pelos passageiros internacionais. O mesmo se passa na linha do Norte, cuja capacidade não permite aumentar a frequência e a velocidade das múltiplas composições inter-regionais, regionais e suburbanas que nela circulam. Precisamos urgentemente duma nova ligação Lisboa-Porto que, já agora, convirá que seja de alta velocidade. A evolução dos preços da energia torna a decisão mais premente. Tudo factos que não se lêem na Contabilidade Nacional.

8. Pede o Manifesto dos 28 que o programa de investimentos públicos seja submetido ao escrutínio de um painel de técnicos independentes. Ora a avaliação custo-benefício, exigida por pessoas que nunca a ela recorreram quando desempenharam cargos governativos de relevo, implica a atribuição de valores monetários a coisas que não têm um preço, como sejam a vida humana ou a protecção do ambiente. Logo, tem implícitas preferências de todo o género, a que em rigor só se pode chamar prioridades políticas. Por que deveremos nós delegar num grupo de alegadas sumidades uma tal responsabilidade?

O receio de decidir e agir é um traço de personalidade associado à improdutividade. Os autores do Manifesto justificam a inacção com a necessidade de se pensar melhor sobre o assunto, mas, pela amostra, a qualidade da reflexão também não se recomenda.

Artigo publicado no Jornal de Negócios de 25 de Junho de 2009.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Friedman, responsabilidade, caridade e faz de conta

Milton Friedman afirmou repetidas vezes que a única responsabilidade social das empresas é a maximização do lucro. Recordá-lo nos tempos que correm em nada contribui para melhorar a sua já muito abalada reputação. Ou não será bem assim?

A responsabilidade social ameaça tornar-se numa exigência incontornável a que nenhum gestor civilizado pode furtar-se sob pena de proscrição. As empresas contemporâneas, diz-se, não devem refugiar-se na preocupação com a rentabilização dos seus negócios, fechando os olhos aos problemas que ameaçam a humanidade e o planeta, entre eles a degradação ambiental e a persistência de desigualdades gritantes neste mundo que partilhamos.

Como decidir, porém, no meio de tanta desgraça que afecta a humanidade – incluindo as guerras, a carência de água potável ou a poluição atmosférica – em que domínios deverá uma empresa responsável concentrar as suas atenções? Assim que se coloca esta pergunta, logo se revelam as insuficiências do conceito mais corrente e ingénuo de responsabilidade social.

Na prática, constata-se que as empresas tendem a subsumir sob a designação de responsabilidade social coisas muito diferentes. Para algumas, trata-se de procurar fazer o bem apoiando uma qualquer causa digna de admiração; para outras, apenas de construirem uma reputação assente em iniciativas cosméticas divulgadas através de vistosas acções publicitárias. Em ambos os casos, o resultado é por regra muita parra e pouca uva, ou seja, um escassíssimo impacto social daquilo que se faz e uma opinião pública cada vez mais desconfiada da sinceridade de tais propósitos.

Necessitamos, pois, de um pensamento mais sólido, que não só recuse o aproveitamente interesseiro das misérias do mundo como vá para além da mera filantropia.

Toda e qualquer empresa existe porque de alguma forma contribui para o bem-estar de alguns ou de muitos cidadãos. Logo, é no satisfatório desempenho dessa missão de forma economicamente eficiente que acima de tudo consiste a sua responsabilidade social.

Sucede, porém, que a produção de bens frequentemente acarreta a involuntária produção de alguns “males”, de que a poluição é o exemplo mais evidente. Uma empresa responsável não pode alhear-se dos impactos negativos decorrentes da sua actividade, pelo que lhe caberá, na medida do possível, eliminá-los ou minorá-los. Trata-se de uma forma de responsabilidade social mínima, a que também pode chamar-se reactiva ou defensiva.

Mas deverão elas ficar-se por aí? A actividade específica de uma empresa traduz-se muitas vezes em impactos positivos externos altamente relevantes sobre certos aspectos particulares da economia, da sociedade ou do ambiente, os quais, por sua vez, criam, por meio de um feedback positivo, condições mais favoráveis ao desenvolvimento do seu próprio negócio. Entre essas externalidades benéficas contam-se a consolidação de certas qualificações profissionais, o fomento da investigação científica, o upgrading dos fornecedores, o apoio a indústrias nascentes, etc. Logo, em vez de se limitar a corrigir impactos negativos, talvez faça sentido que uma empresa tente alavancar esses impactos positivos tendo em vista multiplicar os seus efeitos futuros.

Ao contrário da perspectiva tradicional, este conceito mais exigente de responsabilidade social articula-se logicamente com a estratégia competitiva da empresa. Não assenta numa vaga e bem-intencionada filantropia, mas numa visão esclarecida dos interesses da empresa a longo prazo, orientada para a melhoria das condições da procura, do recrutamente de colaboradores, do acesso a equipamentos e materiais ou da cooperação com entidades públicas e privadas.

Em conclusão, Friedman terá errado ao ignorar a responsabilidade das empresas em relação às externalidades negativas decorrentes da sua actividade. Mas há mérito na sua exigência de pensar a responsabilidade social no quadro dos propósitos de longo prazo de instituições que forçosamente têm que pautar os seus actos pelas exigências da racionalidade económica. Sem isso, ela dificilmente passará de caridade mal entendida ou de cínico faz de conta.

(Artigo publicado no Jornal de Negócios a 27 de Maio de 2009)

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Trabalhar para as estatísticas

As gerações actuais devem ter dificuldade em acreditar que houve um tempo em que a discussão política não se centrava nas convoluções do PIB, mas essa é a mais pura das verdades.

Para começar, os sistemas de contabilidade nacional hoje usados foram inventados há apenas 70 anos. Antes disso, ninguém sabia ou cuidava de saber a variação homóloga da produção no último trimestre. Uma vez generalizado o método de medição, demorou ainda algum tempo (e muita lavagem ao cérebro) até que a opinião pública o aceitasse sem reservas como uma razoável aproximação do bem-estar colectivo.

Hoje, porém, poucos contestam a bondade do PIB como critério supremo de avaliação da acção política. Estamos a crescer mais ou menos? Acentuou-se ou reduziu-se a distância em relação aos outros países? A América é mais dinâmica do que a Europa? E o governo estimula ou tolhe o PIB?

Transformar a soma de batatas com cebolas numa operação razoável foi um feito notável dos economistas, cuja relevância depende, todavia, da aceitação da equivalência entre acumulação de bens materiais e felicidade. Como toda a obra humana, também este felicitómetro tem os seus defeitos: o produto nacional aumenta se eu contratar uma mulher a dias, mas reduz-se, contra toda a evidência, se eu me casar com ela. É assim porque a contabilidade valoriza as transacções monetárias e desdenha as que não envolvem dinheiro.

Mais complicado ainda é computar a riqueza gerada quando, ao contrário do que há escassas décadas sucedia, uma grande maioria da população não produz hoje nem batatas nem pregos, mas serviços intangíveis. O engenho dos economistas logrou, porém, superar essas e outras dificuldades de natureza mais técnica. Pelo menos, é assim que pensam os crentes.

Terão razão? A produtividade da UE é, dizem-nos as estatísticas, superior à dos EUA. Porém, como os americanos trabalham em média mais horas, o produto per capita deles é maior que o dos europeus, de onde decorre que eles são mais felizes do que nós. Este raciocínio absurdo explica-se pelo facto de o lazer não ser valorizado por este sistema: trabalhar mais é sempre bom, independentemente das consequências que isso tenha sobre a saúde psicológica e mental dos indivíduos e das famílias.

Mais: para a contabilidade nacional, um euro é um euro, sem interessar quem o recebe. Está aqui implícito que a desigualdade não afecta a felicidade dos cidadãos, embora nós saibamos (e a teoria económica o confirme) que um euro adicional proporciona mais felicidade a um pobre do que a um rico.

Nos tempos longínquos em que o ensino público básico gratuito foi introduzido na Europa, a poucos interessava que isso pudesse eventualmente contribuir para aumentar a produtividade da população. O benefício esperado da educação era, primeiro, a própria educação e, segundo, a promoção da cidadania. Hoje, porém, não só os investimentos na educação, mas também na cultura, na saúde e, mais recentemente, na própria justiça, são olhados com desconfiança se não contribuírem de alguma forma para promover a competitividade das empresas e do país. Tudo o que pareça incomodar o PIB estará ipso facto tramado.

Graças a Deus – há-de haver por força algo de divino nisto - alguma investigação económica parece sugerir que aquilo que é bom para as pessoas acaba mais tarde ou mais cedo por revelar-se bom para a economia. Não sei, todavia, se poderemos ficar tranquilos, dado que, segundo Fogel (Nobel da Economia em 1993), a escravatura era um regime de trabalho eficiente à data da sua abolição nos EUA.

Faz sentido que privilegiemos o objectivo de produzir mais e mais coisas quando a esmagadora maioria dos cidadãos vive na pobreza absoluta, mas as prioridades deveriam ir-se alterando à medida que a carência extrema se reduz e que outros factores se revelam mais decisivos para a promoção da dignidade humana.

Nem o PIB nem qualquer outro indicador sintético é capaz de, isoladamente, elucidar-nos sobre o grau de bem-estar de uma sociedade. Para isso, precisamos de uma pluralidade de metas variáveis em função das circunstâncias e dos desafios do momento.

Já que, nesta era obcecada pela quantificação (mesmo que espúria), estamos condenados a trabalhar para as estatísticas, ao menos que seja para aquelas que mais interessam.

(Artigo publicado no Jornal de Negócios de 29.4.09)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Pôr a casa em ordem

Que mundo nos espera nos próximos anos? É mais fácil prever o que já aconteceu, de modo que vamos começar por aí.

Com o sistema financeiro global em estado catatónico, não há crédito nem para as empresas nem para as famílias, as quais reagem adiando as despesas e aumentando as poupanças como precaução contra o que pode vir a caminho. Tal reacção, já se sabe, só torna as coisas piores. Não admira, pois, que as estatísticas que de todo o mundo nos vão chegando mostrem uma quebra abrupta do comércio internacional e do emprego a partir de finais de 2008.

Não teria forçosamente que ser assim, mas a falta de vontade de exercer o poder, nuns casos, ou a própria ausência de centros capazes de exercê-lo, noutros, trouxe-nos até aqui. O pior cenário parece em vias de concretizar-se.

Se somarmos a isto a persistência de colossais desequilíbrios financeiros à escala mundial, não será de espantar que a presente recessão venha a durar anos e não meses. A economia portuguesa pode por isso contar com uma mudança duradoura do contexto internacional, caracterizada pelo recuo da globalização, pela incerteza generalizada e pela quebra da confiança nas empresas e nas instituições. Caso se acentue o reflexo proteccionista já notório aqui e acolá, pequenas economias abertas como a nossa não poderão deixar de ser seriamente afectadas.

O mais natural, nestas circunstâncias, é que as pessoas procurem refúgio junto daquilo que lhes está mais próximo e que, também por isso mesmo, se lhes afigura mais seguro. O mesmo sucederá porventura com as empresas. A confirmar-se a tendência, assistiremos durante algum tempo a uma viragem das economias para dentro.

Do mesmo modo que nos últimos anos nos preocupámos com a competitividade externa, deveremos agora focar-nos na competitividade interna, principalmente nos sectores de bens não-transaccionáveis que tão avessos se têm revelado à renovação.

A protecção de que tais actividades gozam em relação à concorrência internacional é em boa medida responsável pelos lamentáveis níveis de qualidade e eficiência que entre nós exibem. Directamente, essa situação prejudica os cidadãos e os consumidores; indirectamente, degrada as condições de competitividade externa das empresas exportadoras, obrigadas a suportar os custos de contexto que lhe estão associados.

Políticas públicas adequadas, envolvendo entre outras fomento da concorrência, regulamentação exigente, investimento estatal e reorganização dos mercados públicos, podem e devem contribuir para uma transformação positiva do panorama actual.

Os sectores de bens não-transaccionáveis abrangem uma variedade de actividades públicas e privadas, dentre as quais se destacam algumas que poderão vir a desempenhar um papel central na economia renovada pós-recessão. Tal é o caso, por exemplo, dos cuidados de saúde, da educação nos seus diversos graus, da renovação urbana, dos transportes públicos, das energias renováveis e, em geral, da protecção do ambiente.

Não se trata, note-se bem, de desistir dos mercados externos ou de menosprezar a sua importância para o nosso desenvolvimento. Bem pelo contrário, sendo a baixa produtividade dos sectores de bens não-transaccionáveis um dos calcanhares de Aquiles da nossa economia, é claro que a sua renovação se constitui ela própria numa poderosa alavanca da nossa competitividade externa.

Isso é bem evidente, por exemplo, no caso do turismo. Uma actividade que consiste em importar temporariamente gente com dinheiro para vir cá gastá-lo só tem a lucrar com a melhoria da qualidade das cidades e do ambiente, com a qualificação dos transportes públicos e com serviços de saúde de nível internacional.

A crise internacional obriga todos os países a virarem-se por algum tempo para dentro em virtude da quebra abrupta do comércio internacional. Aproveitemos a circunstância para pôr a casa em ordem, impondo novos padrões de exigência a actividades que, apesar de cruciais para a revitalização da nossa economia, se têm dado ao luxo de permanecer à margem das transformações que delas temos o direito de esperar. Mas criemos também incentivos capazes de estimulá-las e acelerá-las.

quinta-feira, 5 de março de 2009

O fracasso da União Europeia low-cost

Meia dúzia de anos de prosperidade na Europa do Leste bastaram para certos economistas, sempre mais lestos a proclamar milagres do que o Vaticano, apontarem as políticas económicas lá adoptadas como modelos de sensatez a seguir pelo resto do Continente.

Vemos agora que a primeira contrariedade séria ameaça fazer desmoronar as frágeis economias sem rede dos países do Leste, situação tanto mais grave quanto é facto que os Estados mínimos que por lá foram edificados não estão em condições de oferecer o necessário amparo aos cidadãos mais atingidos.

Povos desconhecedores dos perigos da sofisticação financeira orquestrada por trampolineiros sem escrúpulos endividaram-se em euros ou francos suíços, sem suspeitarem do que poderia acontecer no dia em que as suas moedas sofressem as drásticas desvalorizações que agora parecem inevitáveis. Conhecendo-se o elevado grau de exposição de muitos bancos ocidentais (e principalmente dos austríacos) às economias do leste, teme-se que, por efeito dominó, toda a economia da União Europeia seja arrastada para um abismo cuja profundidade desconhecemos. Eis-nos então chegados à parte pior do drama, aquela em que de súbito descobrimos que o navio está no meio da tormenta sem ninguém ao leme.

Ao longo de quase duas décadas, os países da União Europeia alienaram progressivamente os instrumentos de gestão das suas economias. Muitos de nós acreditámos, na nossa santa ingenuidade, que teria ocorrido uma genuína transferência de poderes para o centro, mas nada disso se passou. Como o aprofundamento da união política foi sempre preterido em favor do alargamento a mata-cavalos, as políticas económicas nacionais não foram substituídas por políticas económicas europeias, de forma que o que hoje sobra é o vazio.

O Banco Central Europeu é um original exercício de humor negro, combinando a máxima independência com a mínima preocupação em relação ao crescimento e ao emprego. A política orçamental comunitária pura e simplesmente não existe, excepto para quem acha que o incentivo à concorrência fiscal entre países membros merece esse nome.

É o estado mínimo em todo o seu esplendor, ou seja uma União Europeia de má qualidade mas baratinha.

Acresce que a União é hoje governada por gente que não presta – nem pessoal, nem política, nem tecnicamente -; gente despreocupada com as suas responsabilidades perante os cidadãos; gente destituída de ideais europeus e de instinto de solidariedade; gente que, numa palavra, não sabe o que anda a fazer.

Cada nova cimeira agrava o sentimento de angústia dos europeus. No último domingo, no final do encontro dos chefes de governo da União, soubemos que, por um lado, os problemas do leste serão tratados caso a caso, e que, por outro, a via para a saída da crise é o Mercado Único. Ora, pense-se o que se pensar do Mercado Único, é descabido apresentá-lo como uma política anti-recessão.

Na mesma ocasião, foram liminarmente recusadas as propostas cada vez mais insistentes de elaboração de um plano europeu coordenado de intervenção financiado pela emissão de obrigações europeias. De modo que aqui estamos todos, sentados sobre as mãos, à espera que os especuladores cumpram o seu dever.

Ao longo das duas últimas décadas as economias internacionalizaram-se, mas os poderes políticos permaneceram confinados ao plano nacional. Daí o progressivo esvaziamento dos poderes públicos dos estados-membros da União, permitindo que os poderes fácticos dos mercados e das finanças se emancipassem de qualquer tutela minimamente eficaz. Sendo evidente a crescente impotência dos políticos nacionais, alastram em paralelo no Continente o desinteresse dos cidadãos pela participação democrática e o populismo mediático desbragado.

Apesar da extensão do desastre, persiste uma tenaz resistência à correcção dos flagrantes erros que nos conduziram a este imbróglio. Em ano de eleições para o Parlamento Europeu, devemos prestar a máxima atenção ao que os partidos têm para nos dizer a este respeito.

Trata-se de uma oportunidade única de liquidar a União Europeia low-cost. Há coincidências temporais felizes.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Quanto vale uma empresa?

Quando, nos primeiros anos da sua vida profissional, trabalhava numa sociedade de investimento londrina, Peter Drucker tinha um colega que se ocupava exclusivamente na compra e venda de acções da General Motors. Um dia, Drucker deixou-lhe em cima da secretária um recorte de um artigo sobre o futuro da indústria automóvel. "Por que é que me puseste isto aqui?", perguntou-lhe o outro na manhã seguinte. E foi então que Drucker descobriu que ele ignorava que a General Motors era uma empresa automóvel.

Suponho que esta situação seria hoje impensável, mas constato que, amiúde, muitos traders pouco sabem sobre as empresas cuja compra ou venda recomendam. Esta ignorância revelou-se de forma evidente na actual crise financeira, quando empresas há escasso tempo incensadas como casos de sucesso revelaram, afinal, uma espantosa fragilidade. Quanto vale de facto uma empresa, e o que é preciso saber sobre ela para avaliá-la com rigor?

Há quem acredite que uma empresa vale aquilo que o mercado está disposto a pagar por ela. Logo, se estiver cotada na Bolsa, é muito fácil tirar-se uma conclusão. Sucede, porém, que a capitalização bolsista varia de dia para dia, para não dizer de minuto para minuto. Haverá alguma base sólida que nos permita perscrutar para além dessas constantes flutuações?

Como aos investidores interessa sobretudo o rendimento que poderão extrair do seu capital, é natural que avaliem uma empresa pela perspectiva da sua rentabilidade futura. A estimativa rigorosa do valor de uma empresa depende, pois: a) da correcta determinação da rentabilidade actual; e b) do entendimento dos factores capazes de fazê-la crescer ou diminuir num horizonte longo.

Como pode isso ser feito? Quase toda a gente concorda que, no século XXI, a capacidade de criar valor se encontra estreitamente relacionada com o investimento em activos intangíveis como a propriedade intelectual, as competências dos colaboradores, as estruturas organizacionais ou o relacionamento com os clientes. Segundo algumas estimativas, a contribuição desses activos para o valor das empresas situar-se-á hoje entre os 60 e os 80%.

Torna-se por isso indispensável um conhecimento rigoroso do que elas fazem nessas áreas.
Curiosamente, os relatórios anuais contêm pouquíssima informação a esse respeito. Tem-se argumentado que basear a avaliação de uma empresa no seu investimento em intangíveis equivale a valorizá-la pelos seus custos, quando, afinal, o que interessa não é o que se gasta, mas o proveito que se retira do investimento. Não se pode negar fundamento a essa objecção, de modo que precisamos de metodologias alternativas.

Regressando a Peter Drucker, ele entendia que uma empresa é antes de mais uma coisa que tem clientes. Sem clientes pode haver edifícios, máquinas e trabalhadores, mas não há negócio. Com clientes, porém, sempre haverá alguém disposto a emprestar o dinheiro necessário para se montar uma empresa. A verdade é que dentro de uma empresa só há custos: todas as receitas provêm dos seus clientes.

Logo, faz sentido pensar-se que o valor de uma empresa é o valor da sua base de clientes, e que os indutores desse valor são a sua capacidade para atrair novos clientes e reter os existentes. Ora, uma recente linha de investigação iniciada por académicos como Sunil Gupta e Donald Lehmann aplicou esta intuição à avaliação de empresas e confirmou a sua relevância prática. Esta metodologia tem ainda a vantagem adicional de nos permitir entender como é que os investimentos realizados concorrem ou não para aumentar o valor da base de clientes.

Em vão buscaremos nos relatórios publicados pelas empresas a informação necessária para confirmarmos se a sua actuação é ou não de molde a melhorar a rentabilidade da base de clientes. Que produtos se propõem lançar? A que mercados se dirigem? Como se comparam com os da concorrência? Que níveis de satisfação geram? Quantos clientes foram perdidos e porquê? E, acima de tudo, qual o valor de longo prazo da base de clientes por segmentos e o que está a empresa a fazer para aumentá-lo?

Alguns gestores responderão que essa informação não pode ser publicamente revelada sob pena de pôr em risco a vantagem competitiva das empresas. O certo, porém, é que, quando esta crise acabar, os investidores vão querer saber muito mais do que no passado sobre o que é feito com o seu dinheiro. As sociedades anónimas terão que resignar-se a divulgar informação mais relevante sobre os seus negócios como uma contrapartida indispensável do direito a gerirem os capitais que o público lhes confia.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Como dar cabo de um país

Nos últimos anos do século XVII, William Patterson, um financeiro que estivera envolvido na criação do Banco de Inglaterra, concebeu um grandioso esquema – o “Darien scheme – para estabelecer uma colónia escocesa no istmo do Panamá (Darien, para os escoceses) destinada a controlar todo o comércio em trânsito terrestre do Atlântico para o Pacífico.

A Companhia da Escócia começou por angariar fundos em Londres, mas o governo inglês, receando a concorrência que o projecto faria à Companhia das Índias Orientais, opôs-se à ideia. A Companhia teve então que virar-se para o mercado doméstico de capitais, onde não teve dificuldade em angariar 400 mil libras em poucas semanas (o equivalente a 40 milhões de libras na actualidade). O entusiasmo em torno do projecto era tal que toda a gente na Escócia – rica, pobre e remediada – se endividou para comprar acções da Companhia, cujo activo equivalia a metade de todo o capital disponível no país.

Em Julho de 1698 partiu para o Panamá a primeira expedição, que integrava 5 navios e transportava 1.200 pessoas. A tragédia foi fulminante: o clima inóspito e as doenças rapidamente dizimaram um bom número de colonos; de modo que, após ser-lhes negada ajuda pelas colónias inglesas da América, o estabelecimento foi abandonado em Julho de 1699. Entretanto, como na época não havia telefone nem internet, uma segunda expedição vinha a caminho com mais 1.200 pessoas, tendo sofrido igual destino. No final, regressou à pátria um navio com 30 sobreviventes. Em resultado, a Companhia da Escócia viu-se arruinada e, com ela, toda a nação. Aparentemente, nenhum dos promotores do empreendimento tinha a mínima ideia das condições reais do local onde haviam persuadido um país inteiro a aplicar somas colossais.

Em 1707, uma Escócia exangue resignou-se a assinar o Acto de União com a Inglaterra. Em compensação, a Inglaterra acordou pagar aos investidores da Companhia 398 mil libras. Por outras palavras, o país foi vendido. Só em 1999, três séculos mais tarde, a Escócia conseguiu recuperar o seu Parlamento.

Na época, o ódio popular incidiu mais sobre os ingleses do que sobre os promotores do Darien Scheme, apesar da evidente estupidez do projecto e da colossal insensatez dos seus líderes, que não hesitaram em mobilizar uma nação inteira para investir em algo cuja viabilidade jamais fora suficientemente investigada. No final, os investidores recuperaram melhor ou pior o seu dinheiro; mas milhares de pessoas perderam a vida e o país a sua independência.

Esta tragédia não foi um caso isolado. A história das origens da sociedade anónima de responsabilidade limitada é uma enciclopédia da fraude, cujos pontos altos foram a Companhia do Mississípi e a Companhia dos Mares do Sul. Com tanta trapaça, o Parlamento inglês decretou a sua proibição em 1720.

Adam Smith condenava em 1776 as sociedades anónimas por concederem a uma clique a possibilidade de manipular a maioria dos investidores e conquistar um poder desmesurado sobre a economia e o Estado. Como conseguiram então sobreviver e disseminar-se elas apesar de um currículo tão negativo e de opositores tão influentes? A má razão é que isso interessava aos poderosos endinheirados; a boa, que, fora o Estado, só elas estão em condições de canalizar pequenas poupanças para volumosos investimentos em actividades que beneficiam de grandes economias de escala.

De modo que uma espécie de contrato social instituiu a tolerância da sociedade anónima a troco da sua sujeição a uma regulamentação apertada. Ainda assim, foi só em 1900 que, por entre acusações de socialismo, a lei inglesa impôs, por exemplo, a obrigatoriedade de apresentação aos accionistas de contas auditadas.

Os sucessos recentes na Islândia recordam-nos que, ainda hoje, é possível os desmandos de aventureiros descontrolados levarem um país à ruína. Mas os estudantes de economia são poupados ao conhecimento de eventos como o relatado, não vá dar-se o caso de ficar abalada a sua confiança nas teorias muito limpinhas que lhes explicam como as economias funcionam. É muito mais conveniente fazê-los crer que tudo se resume a encontrar o ponto de intersecção da oferta e da procura, ignorando a importância das relações de poder na determinação do resultado final.

Sabemos há séculos que as sociedades anónimas se prestam a toda a espécie de abusos quando a sua actuação não é convenientemente regulada. Em casos extremos, podem semear a miséria e arruinar países. Mas foi preciso chegarmos junto ao abismo para esta verdade ser recuperada e reconhecida.