Se tivéssemos um governo próprio, eis o que ele poderia dizer à troika na próxima vez que ela nos visitasse:
"Meus senhores, escutámos nos últimos tempos declarações altamente
relevantes de, por um lado, Christine Lagarde (Directora-geral do FMI) e
Olivier Blanchard (economista principal do FMI), por outro, Durão
Barroso (Presidente da Comissão Europeia), Claude Juncker (Presidente do
Ecofin) e Martin Schulz (Presidente do Parlamento Europeu).
"Ora vejamos. Christine Lagarde sustentou já em Outubro do ano
passado que os países europeus em dificuldades deveriam ter mais tempo
para reduzir os seus défices: "Foi isso que advoguei para Portugal, foi
isso que advoguei para a Espanha, e é isso que estamos a advogar para a
Grécia". Mais recentemente voltou a insistir na ideia, desta vez apoiada
no estudo assinado por Olivier Blanchard "Growth Forecast Errors and
Fiscal Multipliers", onde se admite que "os multiplicadores fiscais se
revelaram substancialmente maiores" do que os anteriormente estimados.
Assim, reconhece agora o FMI que a subestimação do impacto da
austeridade infligiu consideráveis danos às economias grega, portuguesa,
italiana, espanhola e irlandesa, e que teve como resultado perverso o
aumento dos rácios da dívida em relação ao produto de todos esses
países.
"Além disso, o próprio Durão Barroso, que ainda em Outubro do ano
passado advogara mais cortes orçamentais nos países do Sul em resposta
às reticências manifestadas pelo FMI, sentiu-se agora na necessidade de
negar publicamente que a União Europeia esteja por detrás das medidas de
austeridade genericamente aplicadas no continente.
"As declarações mais contundentes vieram, porém, de Claude Juncker,
Presidente cessante do Conselho dos Ministros das Finanças. Começou ele
por contestar a legitimidade democrática de instituições como o BCE e o
FMI para imporem medidas punitivas a certos países ao mesmo tempo que
outros beneficiavam das fugas de capitais da Grécia para o exterior,
concluindo que os ajustamentos "recaíram apenas sobre os mais fracos".
"Acrescentou que "o drama do desemprego tem sido subestimado" pela
União Europeia e aconselhou ao seu sucessor que "escute todos os
Estados-membros por igual", caso contrário terá muito de que se
arrepender dentro de seis meses. Lamentou os resultados decepcionantes
do último Conselho Europeu, que persiste em tomar decisões insuficientes
e tardias.
"Concluiu, surpreendentemente, que "todos os países membros devem
fixar um salário mínimo social" e acordar "numa base de direitos sociais
mínimos para os trabalhadores", caso contrário a Europa perderá o apoio
das classes trabalhadoras. Por último, pediu "um acordo sobre os
elementos essenciais da solidariedade" ao nível europeu.
"Estamos plenamente conscientes de que o Parlamento Europeu não tem
de momento grande peso na definição das políticas europeias. Ainda
assim, é impossível ignorarmos o que o seu Presidente Martin Schulz
disse na sua recente visita a Lisboa: "Austeridade pode ser exercício de
autodestruição sem medidas pró-crescimento."
"Todas estas individualidades - de quem decerto já terão ouvido falar
- convergem de modo inequívoco na conclusão de que as políticas de
austeridade que têm vindo a ser aplicadas na Europa em geral e em
Portugal em particular são erradas, destrutivas e contrárias aos
propósitos declarados de controlar os défices públicos, conter o
crescimento das dívidas soberanas, promover o crescimento e gerar
emprego.
"Como compreendem, a opinião pública portuguesa fica confusa ao
escutar estas afirmações dos dirigentes da União Europeia e do FMI, tão
evidentemente opostas àquelas que até há pouco lhe eram apresentadas
como indiscutíveis artigos de fé - e que nós próprios, aliás, aceitámos
assumir perante os nossos concidadãos como inevitáveis e sem
alternativa. Assim sendo, não poderemos estranhar que os portugueses
comecem a perguntar-se se o governo que elegeram não terá andado a
enganá-los no último ano e meio.
"Ora, se um povo desconfia da boa-fé do seu governo e se sente
atraiçoado por ele, corre-se o maior dos riscos, que é o de uma
irreversível e completa ruptura entre eleitos e eleitores, desembocando
na perda de legitimidade e no caos político.
"Dito isto, somos forçados a perguntar-vos: quem representam os
senhores nesta reunião? A União Europeia e o FMI ou apenas e só as
vossas peculiaríssimas opiniões pessoais? Como é possível que
representem essas instituições, se é público e notório que as únicas
pessoas inequivocamente autorizadas para falarem em nome delas
contrariam em público de forma clara e taxativa o que os senhores aqui
procuram impor-nos?
"Têm os senhores a certeza de estarem mandatados para fazerem o que
fazem e dizerem o que dizem? Estão seguros de que a vossa actuação é
apoiada pelas organizações a que pertencem? Não vos incomoda pessoal,
profissional e institucionalmente a ambiguidade desta situação?
"Não nos levem a mal. Porém, nestas circunstâncias, somos forçados a
suspender todos os contactos convosco até que Christine Lagarde, Durão
Barroso e o novo Presidente do Ecofin clarifiquem de uma vez por todas,
de preferência por escrito, qual é de facto a orientação das
instituições a que presidem. Até lá despedimo-nos de vós com amizade,
esperando que tenham tido uma estada agradável no nosso bonito país."
Publicado no Jornal de Negócios em 22.1.13
terça-feira, 22 de janeiro de 2013
terça-feira, 8 de janeiro de 2013
O que estamos nós a fazer aqui
Durante a maior parte da 2.ª Guerra Mundial, os alemães não
mobilizados para a frente continuaram a levar uma vida normal, pois
nunca faltaram matérias-primas às fábricas ou alimentos às famílias. A
guerra trava-se lá longe, sem afectar o pacato quotidiano dos cidadãos.
Os alemães não sabiam, nem cuidavam de saber, que a sua prosperidade
assentava na pilhagem organizada dos recursos da Europa inteira.
"Não saber" o que não lhes convém saber é, como a actual crise europeia veio recordar-nos, um dos pontos fortes dos alemães. A Europa afunda-se na recessão duradoura, a pobreza renasce em países onde se tornara residual, metade dos jovens não encontra trabalho –, mas, na Alemanha, o Natal foi vivido na paz do Senhor, e isso é tudo o que importa.
Qualquer pessoa sensata entende que, um dia, o sofrimento chegará também à Alemanha. Não, desta vez, sob a forma de bombardeamentos mortíferos, mas de estagnação e desemprego induzidos pelo empobrecimento dos parceiros europeus, visto que 60% das exportações germânicas se dirigem à União Europeia e 40% à Zona Euro. Entretanto, como regularmente faz notar Wolfgang Munchau (colunista do Financial Times e ele próprio alemão), na República Federal reina a cegueira absoluta, imune aos avisos que chegam de todas as partes do mundo sobre a tacanhez da política adoptada por Angela Merkel.
O ponto inquestionável é que a União Europeia mudou de natureza, tornando-se numa coutada da Alemanha, a qual, mercê da sua dimensão geográfica, populacional, económica e financeira, se encontra de momento em condições de impor a sua vontade a todo o continente. Quanto maior o poder de que um país dispõe, mais necessário será que aja com autocontenção, mas a Alemanha parece apostada em demonstrar em todas as oportunidades ser um país em que ninguém pode confiar, dado que não só desrespeita os compromissos que assume, como infringe sempre que lhe convém as regras da União Europeia. Toda a gente se recorda como incumpriu o PEC; como ignorou as regras da concorrência socorrendo a sua indústria automóvel durante a recessão de 2009; como sabotou o funcionamento das instituições europeias; como condicionou publicamente a actuação do BCE; como se arrogou poderes de decisão que não lhe competem; como interferiu na política interna dos outros países membros, chegando ao ponto de fazer e desfazer governos; como, enfim, recentemente impôs o adiamento dos compromissos assumidos com os outros países em relação à projectada união bancária.
O que tem este novo Sacro Império Germânico que ver com a União Europeia que nos empenhámos em construir nas últimas décadas? Nada, como é evidente. Porque haveremos então de continuar a fingir que a União Europeia continua a existir? Os britânicos serão provavelmente os primeiros a decidir que não estão dispostos a ser comandados pela Alemanha, mas é possível que, a prazo, se lhe sigam a Itália, a Espanha e, por último, a própria França. Com a Alemanha ficarão decerto a Áustria (consumando por fim o adiado Anschluss) e a Holanda (uma gigantesca plataforma logística da Renânia-Vestefália). Quanto à Polónia, com uma longa experiência do que a casa gasta, não tardará a pôr-se a milhas.
Por cá reina a ilusória esperança de que, no intuito de salvar o euro, o bom senso acabará por ditar o aprofundamento da união, e que isso inevitavelmente implicará uma espécie de federação democrática. No horizonte dessa esperança encontram-se a união bancária, a união fiscal e a mutualização parcial das dívidas (vulgo eurobonds). No fim desse radioso caminho esperar-nos-ia, finalmente, a desejada união política. Valeria, assim, a pena sujeitarmo-nos a todas as sevícias concebidas pela troika. Sucede, porém, que, quando apreciou o Tratado de Lisboa, o Tribunal Constitucional Alemão recusou liminarmente a perspectiva da diluição da soberania germânica num futuro estado federal europeu. Nessas circunstâncias, o federalismo de que tanto se fala poderá ser burocrático e financeiro; mas jamais político, menos ainda democrático. Não haverá nele lugar para a consideração dos interesses particulares de povos como nós.
De 1910 até quase ao fim do século XX, Portugal cresceu quase sempre mais do que a Europa e, em particular, do que a Espanha. Dir-se-ia que, apesar de consideráveis erros cometidos ao longo de três regimes políticos diversíssimos, soubemos governar-nos. Foi então que optámos por subcontratar partes cada vez maiores da nossa política económica à União Europeia – processo coroado com a adesão ao euro – e o resultado está à vista.
Por muito nefasta que nos seja esta circunstância, não está evidentemente nas nossas mãos tomar agora a iniciativa de sair do euro. Mas um mínimo de lucidez recomenda que nos questionemos sobre o que estamos nós aqui a fazer – e que comecemos a ponderar, à luz dos nossos interesses geoestratégicos, que alianças alternativas deveremos buscar caso se confirme o presente rumo de desagregação da União Europeia.
"Não saber" o que não lhes convém saber é, como a actual crise europeia veio recordar-nos, um dos pontos fortes dos alemães. A Europa afunda-se na recessão duradoura, a pobreza renasce em países onde se tornara residual, metade dos jovens não encontra trabalho –, mas, na Alemanha, o Natal foi vivido na paz do Senhor, e isso é tudo o que importa.
Qualquer pessoa sensata entende que, um dia, o sofrimento chegará também à Alemanha. Não, desta vez, sob a forma de bombardeamentos mortíferos, mas de estagnação e desemprego induzidos pelo empobrecimento dos parceiros europeus, visto que 60% das exportações germânicas se dirigem à União Europeia e 40% à Zona Euro. Entretanto, como regularmente faz notar Wolfgang Munchau (colunista do Financial Times e ele próprio alemão), na República Federal reina a cegueira absoluta, imune aos avisos que chegam de todas as partes do mundo sobre a tacanhez da política adoptada por Angela Merkel.
O ponto inquestionável é que a União Europeia mudou de natureza, tornando-se numa coutada da Alemanha, a qual, mercê da sua dimensão geográfica, populacional, económica e financeira, se encontra de momento em condições de impor a sua vontade a todo o continente. Quanto maior o poder de que um país dispõe, mais necessário será que aja com autocontenção, mas a Alemanha parece apostada em demonstrar em todas as oportunidades ser um país em que ninguém pode confiar, dado que não só desrespeita os compromissos que assume, como infringe sempre que lhe convém as regras da União Europeia. Toda a gente se recorda como incumpriu o PEC; como ignorou as regras da concorrência socorrendo a sua indústria automóvel durante a recessão de 2009; como sabotou o funcionamento das instituições europeias; como condicionou publicamente a actuação do BCE; como se arrogou poderes de decisão que não lhe competem; como interferiu na política interna dos outros países membros, chegando ao ponto de fazer e desfazer governos; como, enfim, recentemente impôs o adiamento dos compromissos assumidos com os outros países em relação à projectada união bancária.
O que tem este novo Sacro Império Germânico que ver com a União Europeia que nos empenhámos em construir nas últimas décadas? Nada, como é evidente. Porque haveremos então de continuar a fingir que a União Europeia continua a existir? Os britânicos serão provavelmente os primeiros a decidir que não estão dispostos a ser comandados pela Alemanha, mas é possível que, a prazo, se lhe sigam a Itália, a Espanha e, por último, a própria França. Com a Alemanha ficarão decerto a Áustria (consumando por fim o adiado Anschluss) e a Holanda (uma gigantesca plataforma logística da Renânia-Vestefália). Quanto à Polónia, com uma longa experiência do que a casa gasta, não tardará a pôr-se a milhas.
Por cá reina a ilusória esperança de que, no intuito de salvar o euro, o bom senso acabará por ditar o aprofundamento da união, e que isso inevitavelmente implicará uma espécie de federação democrática. No horizonte dessa esperança encontram-se a união bancária, a união fiscal e a mutualização parcial das dívidas (vulgo eurobonds). No fim desse radioso caminho esperar-nos-ia, finalmente, a desejada união política. Valeria, assim, a pena sujeitarmo-nos a todas as sevícias concebidas pela troika. Sucede, porém, que, quando apreciou o Tratado de Lisboa, o Tribunal Constitucional Alemão recusou liminarmente a perspectiva da diluição da soberania germânica num futuro estado federal europeu. Nessas circunstâncias, o federalismo de que tanto se fala poderá ser burocrático e financeiro; mas jamais político, menos ainda democrático. Não haverá nele lugar para a consideração dos interesses particulares de povos como nós.
De 1910 até quase ao fim do século XX, Portugal cresceu quase sempre mais do que a Europa e, em particular, do que a Espanha. Dir-se-ia que, apesar de consideráveis erros cometidos ao longo de três regimes políticos diversíssimos, soubemos governar-nos. Foi então que optámos por subcontratar partes cada vez maiores da nossa política económica à União Europeia – processo coroado com a adesão ao euro – e o resultado está à vista.
Por muito nefasta que nos seja esta circunstância, não está evidentemente nas nossas mãos tomar agora a iniciativa de sair do euro. Mas um mínimo de lucidez recomenda que nos questionemos sobre o que estamos nós aqui a fazer – e que comecemos a ponderar, à luz dos nossos interesses geoestratégicos, que alianças alternativas deveremos buscar caso se confirme o presente rumo de desagregação da União Europeia.
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