terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A Grande Depressão, Ano 5

Decorridos 54 meses desde que, em Agosto de 2007, rebentou a bolha do sub-prime, conheceremos ao menos as causas da situação comatosa em que nos encontramos?

Ainda mal se tornara evidente a extensão da catástrofe e já se apontava a ganância dos especuladores financeiros como a origem do mal, perceção reforçada pela emergência de mini-escândalos como o esquema Madoff nos EUA ou as fraudes do BPN entre nós. Mas é óbvio que a avidez de alguns só pode ter consequências deste quilate quando ocorrem falhas em larga escala dos sistemas financeiros e da sua regulação.

Assim, as atenções da opinião informada viraram-se para a compreensão do que está mal nos arranjos institucionais que têm imperado nessa área. Não foi difícil concluir-se que a promiscuidade entre a banca comercial e a banca de investimento, adicionada à incontrolada "inovação financeira", expõe as poupanças do cidadão mais cauteloso a riscos incalculáveis, ao mesmo tempo que incentiva aventureiros a apostarem rijo com o dinheiro dos outros.

Tudo isso está muito certo, mas fica ainda por explicar como é que venerandas instituições se deixaram envolver neste jogo de alto risco. Terá sido pura cupidez ou deveremos antes considerar que um conjunto de incentivos perversos as atraíram para o abismo?

A economia mundial no seu conjunto foi inundada desde meados dos anos 90 por um colossal fluxo de poupanças em busca de aplicação, principalmente originárias da China, do Japão e da Alemanha. Daí a descida das taxas de juro para níveis historicamente baixíssimos. Uma tal circunstância deveria ter contribuído para viabilizar um boom de investimento produtivo, mas isso não aconteceu. Múltiplos indícios sugerem que, excetuando as aplicações puramente financeiras, o investimento privado cresceu a taxas cada vez menores na última dúzia de anos num bom número de países desenvolvidos.

Ora, quando cada vez mais dinheiro livre corre atrás de cada vez menos oportunidades de investimento atrativas, temos, como Ben Bernanke notou, um excesso global de poupança. Rareando os investimentos rentáveis na esfera produtiva, resta como única via a sua aplicação especulativa em projetos cada vez mais arriscados para assegurar os indicadores que as bolsas hora a hora inspeccionam à lupa para avaliar o desempenho das empresas e, por decorrência, emitir os certificados de competência que depois se traduzem nos apetecidos bónus dos gestores de topo.

Uma influente linha de pensamento, exemplificada por Raghuram Rajan em Fault Lines, explica a redução das oportunidades de investimento com a estagnação dos salários em economias tão importantes como a americana, a alemã, a japonesa, a britânica e a italiana. A insuficiência do rendimento das famílias foi num primeiro momento compensada pelo recurso imoderado ao crédito barato, mantendo assim o consumo a níveis insustentavelmente elevados, mas esse recurso esgotou-se por fim. O que aí temos, pois, é uma típica crise de subconsumo provocada por uma compressão salarial prolongada. No actual quadro de endividamento generalizado, alguns recomendam para sair dela uma reanimação da procura impulsionada por políticas públicas voluntaristas.

Uma explicação alternativa, reconhecendo embora a redução de oportunidades de investimento lucrativo, entende que ela é fruto da travagem do progresso tecnológico que é o motor último do crescimento, adiantando uma impressionante soma de dados para comprovar a tese. Ora, contra isto, as políticas keynesianas nada podem. Tal é o ponto de vista exposto por Tyler Cowen no seu recente livro The Great Stagnation, compatível com a teoria de que os ciclos têm a sua origem em choques externos à economia.

Qual será a perspectiva mais correta?

A estagnação da inovação tecnológica será a causa profunda da exiguidade de oportunidades rentáveis, explicando de passagem a pressão sobre os salários reais. Mas isso não torna obrigatoriamente ineficazes as políticas públicas orientadas para o estímulo da procura: dispomos no presente de instrumentos de produção e de capacidades humanas brutalmente subutilizados aos quais pode e deve ser dada aplicação útil. O regresso aos níveis de produção anteriores ao estalar da crise afigura-se, por isso, um objectivo eminentemente razoável.

Já a questão de saber como repor em marcha o motor da inovação é algo inteiramente diferente, até por ser duvidosa a nossa capacidade de encomendar uma revolução tecnológica. Seja como for, a nossa primeira tarefa será estabilizar a condição do paciente; logo promoveremos a sua convalescença e veremos como fazê-lo regressar à plenitude do seu vigor.

Publicado no Jornal de Negócios em 14.2.12

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Os empreendedores não criam empregos

Na tentativa de conservar os padrões de bem-estar previamente atingidos, as famílias endividaram-se. Este padrão de distribuição gerou, a prazo, uma redução de oportunidades de investimento produtivo, estimulando o desvio dos capitais disponíveis para actividades especulativas.

Para onde foram os batalhões de dactilógrafas e secretárias que, ainda nos anos 80 do passado século, enxameavam os escritórios? Que é feito dos exércitos de calculadores empregados nos bancos, nas seguradoras e nas repartições públicas? Desapareceram para sempre, substituídos por computadores pessoais equipados com programas como o Word e o Excel.

Os empreendedores que lançaram os computadores pessoais e o "software" que eles utilizam criaram inúmeros postos de trabalho, mas destruíram do mesmo passo muitos mais. Tudo considerado, em termos líquidos, o impacto direto da sua acção reduziu o emprego.

Note-se que isto não sucede apenas em sectores de alta tecnologia, pois cada hipermercado que abre encerra largas dezenas de mercearias, frutuárias, talhos e peixarias. Qualquer inovação genuína, seja porque permite fazer algo com menores custos, seja porque torna obsoletas actividades existentes, aniquila direta ou indiretamente um número considerável de postos de trabalho. Quando hoje uma borboleta empresarial bate as asas na China, milhares de empregos esfumam-se no Vale do Ave.

A revolução industrial trouxe consigo a dúvida sobre se o progresso tecnológico não condenaria à inação e à miséria uma proporção crescente de trabalhadores. Para escândalo geral, Ricardo sustentou que os receios dos luditas que apelavam à destruição das máquinas tinham a lógica económica do seu lado. Sendo certo que os lucros apropriados pelos empreendedores bem sucedidos poderiam estimular a produção de bens de luxo e, assim, ocupar mais gente, Ricardo não via que isso fosse suficiente para contrariar o aumento do desemprego. A única solução, pensava, seria a expansão da criadagem ao serviço dos ricos ou a mobilização de soldados para a guerra.

Tendo a revolução industrial começado vai para um quarto de milénio, como se explica então que ainda haja alguém a trabalhar? E que função social útil desempenham afinal os empresários?

A função distintiva do empresário é tornar o trabalho mais produtivo. Espera-se dele que promova a eficiência, seja fabricando mais pregos por hora, seja tornando os pregos supérfluos e substituindo-os por colas extra-fortes. Mas os ganhos de produtividade que ele gera só beneficiarão a maioria se parte substancial deles reverter para os salários, o que está longe de ser um processo automático.

Historicamente, o excesso de mão-de-obra deu origem a fluxos migratórios de dezenas de milhões de europeus para o Novo Mundo. Quando essa válvula de escape se esgotou, porém, não sobrou outra alternativa senão recorrer às forças compensadoras da organização sindical, da legislação laboral e do emprego público para impedir o alastramento do desemprego de longo prazo e a degradação dos salários. Espantosamente, a conjugação desses fatores acabou por gerar o período de mais rápido, estável e duradouro crescimento da história.

Eis senão quando uma seita de iluminados demonstrou irrefutavelmente com a ajuda de algumas equações matemáticas que andávamos todos enganados e que seria possível obter resultados muito superiores confiando no poder incontrolado dos mercados e, desde logo, retirando poder negocial aos assalariados. Graças a esses sábios conselhos, os salários mais baixos estagnaram duradouramente em muitos países, as desigualdades económicas voltaram a agravar-se e o desemprego passou a situar-se a níveis consistentemente mais elevados.

Na tentativa de conservar os padrões de bem-estar previamente atingidos, as famílias endividaram-se. Este padrão de distribuição gerou a prazo uma redução de oportunidades de investimento produtivo, estimulando o desvio dos capitais disponíveis para actividades especulativas. O resto da história já todos conhecemos.

É natural que o empreendedor individual acredite estar a contribuir para reduzir o desemprego quando contrata trabalhadores. Porém, é no plano macro que se decide se daí resultará um acréscimo líquido de emprego e se ele suportará um crescimento sustentável. E isso só ocorre na vigência de instituições capazes de assegurar que os benefícios da inovação serão distribuídos pela comunidade numa proporção equilibrada.

A criação de emprego resulta sempre, digamos assim, de uma espécie de parceria público-privada.

Publicado no Jornal de Negócios em 30.1.12.