quinta-feira, 5 de março de 2009

O fracasso da União Europeia low-cost

Meia dúzia de anos de prosperidade na Europa do Leste bastaram para certos economistas, sempre mais lestos a proclamar milagres do que o Vaticano, apontarem as políticas económicas lá adoptadas como modelos de sensatez a seguir pelo resto do Continente.

Vemos agora que a primeira contrariedade séria ameaça fazer desmoronar as frágeis economias sem rede dos países do Leste, situação tanto mais grave quanto é facto que os Estados mínimos que por lá foram edificados não estão em condições de oferecer o necessário amparo aos cidadãos mais atingidos.

Povos desconhecedores dos perigos da sofisticação financeira orquestrada por trampolineiros sem escrúpulos endividaram-se em euros ou francos suíços, sem suspeitarem do que poderia acontecer no dia em que as suas moedas sofressem as drásticas desvalorizações que agora parecem inevitáveis. Conhecendo-se o elevado grau de exposição de muitos bancos ocidentais (e principalmente dos austríacos) às economias do leste, teme-se que, por efeito dominó, toda a economia da União Europeia seja arrastada para um abismo cuja profundidade desconhecemos. Eis-nos então chegados à parte pior do drama, aquela em que de súbito descobrimos que o navio está no meio da tormenta sem ninguém ao leme.

Ao longo de quase duas décadas, os países da União Europeia alienaram progressivamente os instrumentos de gestão das suas economias. Muitos de nós acreditámos, na nossa santa ingenuidade, que teria ocorrido uma genuína transferência de poderes para o centro, mas nada disso se passou. Como o aprofundamento da união política foi sempre preterido em favor do alargamento a mata-cavalos, as políticas económicas nacionais não foram substituídas por políticas económicas europeias, de forma que o que hoje sobra é o vazio.

O Banco Central Europeu é um original exercício de humor negro, combinando a máxima independência com a mínima preocupação em relação ao crescimento e ao emprego. A política orçamental comunitária pura e simplesmente não existe, excepto para quem acha que o incentivo à concorrência fiscal entre países membros merece esse nome.

É o estado mínimo em todo o seu esplendor, ou seja uma União Europeia de má qualidade mas baratinha.

Acresce que a União é hoje governada por gente que não presta – nem pessoal, nem política, nem tecnicamente -; gente despreocupada com as suas responsabilidades perante os cidadãos; gente destituída de ideais europeus e de instinto de solidariedade; gente que, numa palavra, não sabe o que anda a fazer.

Cada nova cimeira agrava o sentimento de angústia dos europeus. No último domingo, no final do encontro dos chefes de governo da União, soubemos que, por um lado, os problemas do leste serão tratados caso a caso, e que, por outro, a via para a saída da crise é o Mercado Único. Ora, pense-se o que se pensar do Mercado Único, é descabido apresentá-lo como uma política anti-recessão.

Na mesma ocasião, foram liminarmente recusadas as propostas cada vez mais insistentes de elaboração de um plano europeu coordenado de intervenção financiado pela emissão de obrigações europeias. De modo que aqui estamos todos, sentados sobre as mãos, à espera que os especuladores cumpram o seu dever.

Ao longo das duas últimas décadas as economias internacionalizaram-se, mas os poderes políticos permaneceram confinados ao plano nacional. Daí o progressivo esvaziamento dos poderes públicos dos estados-membros da União, permitindo que os poderes fácticos dos mercados e das finanças se emancipassem de qualquer tutela minimamente eficaz. Sendo evidente a crescente impotência dos políticos nacionais, alastram em paralelo no Continente o desinteresse dos cidadãos pela participação democrática e o populismo mediático desbragado.

Apesar da extensão do desastre, persiste uma tenaz resistência à correcção dos flagrantes erros que nos conduziram a este imbróglio. Em ano de eleições para o Parlamento Europeu, devemos prestar a máxima atenção ao que os partidos têm para nos dizer a este respeito.

Trata-se de uma oportunidade única de liquidar a União Europeia low-cost. Há coincidências temporais felizes.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Quanto vale uma empresa?

Quando, nos primeiros anos da sua vida profissional, trabalhava numa sociedade de investimento londrina, Peter Drucker tinha um colega que se ocupava exclusivamente na compra e venda de acções da General Motors. Um dia, Drucker deixou-lhe em cima da secretária um recorte de um artigo sobre o futuro da indústria automóvel. "Por que é que me puseste isto aqui?", perguntou-lhe o outro na manhã seguinte. E foi então que Drucker descobriu que ele ignorava que a General Motors era uma empresa automóvel.

Suponho que esta situação seria hoje impensável, mas constato que, amiúde, muitos traders pouco sabem sobre as empresas cuja compra ou venda recomendam. Esta ignorância revelou-se de forma evidente na actual crise financeira, quando empresas há escasso tempo incensadas como casos de sucesso revelaram, afinal, uma espantosa fragilidade. Quanto vale de facto uma empresa, e o que é preciso saber sobre ela para avaliá-la com rigor?

Há quem acredite que uma empresa vale aquilo que o mercado está disposto a pagar por ela. Logo, se estiver cotada na Bolsa, é muito fácil tirar-se uma conclusão. Sucede, porém, que a capitalização bolsista varia de dia para dia, para não dizer de minuto para minuto. Haverá alguma base sólida que nos permita perscrutar para além dessas constantes flutuações?

Como aos investidores interessa sobretudo o rendimento que poderão extrair do seu capital, é natural que avaliem uma empresa pela perspectiva da sua rentabilidade futura. A estimativa rigorosa do valor de uma empresa depende, pois: a) da correcta determinação da rentabilidade actual; e b) do entendimento dos factores capazes de fazê-la crescer ou diminuir num horizonte longo.

Como pode isso ser feito? Quase toda a gente concorda que, no século XXI, a capacidade de criar valor se encontra estreitamente relacionada com o investimento em activos intangíveis como a propriedade intelectual, as competências dos colaboradores, as estruturas organizacionais ou o relacionamento com os clientes. Segundo algumas estimativas, a contribuição desses activos para o valor das empresas situar-se-á hoje entre os 60 e os 80%.

Torna-se por isso indispensável um conhecimento rigoroso do que elas fazem nessas áreas.
Curiosamente, os relatórios anuais contêm pouquíssima informação a esse respeito. Tem-se argumentado que basear a avaliação de uma empresa no seu investimento em intangíveis equivale a valorizá-la pelos seus custos, quando, afinal, o que interessa não é o que se gasta, mas o proveito que se retira do investimento. Não se pode negar fundamento a essa objecção, de modo que precisamos de metodologias alternativas.

Regressando a Peter Drucker, ele entendia que uma empresa é antes de mais uma coisa que tem clientes. Sem clientes pode haver edifícios, máquinas e trabalhadores, mas não há negócio. Com clientes, porém, sempre haverá alguém disposto a emprestar o dinheiro necessário para se montar uma empresa. A verdade é que dentro de uma empresa só há custos: todas as receitas provêm dos seus clientes.

Logo, faz sentido pensar-se que o valor de uma empresa é o valor da sua base de clientes, e que os indutores desse valor são a sua capacidade para atrair novos clientes e reter os existentes. Ora, uma recente linha de investigação iniciada por académicos como Sunil Gupta e Donald Lehmann aplicou esta intuição à avaliação de empresas e confirmou a sua relevância prática. Esta metodologia tem ainda a vantagem adicional de nos permitir entender como é que os investimentos realizados concorrem ou não para aumentar o valor da base de clientes.

Em vão buscaremos nos relatórios publicados pelas empresas a informação necessária para confirmarmos se a sua actuação é ou não de molde a melhorar a rentabilidade da base de clientes. Que produtos se propõem lançar? A que mercados se dirigem? Como se comparam com os da concorrência? Que níveis de satisfação geram? Quantos clientes foram perdidos e porquê? E, acima de tudo, qual o valor de longo prazo da base de clientes por segmentos e o que está a empresa a fazer para aumentá-lo?

Alguns gestores responderão que essa informação não pode ser publicamente revelada sob pena de pôr em risco a vantagem competitiva das empresas. O certo, porém, é que, quando esta crise acabar, os investidores vão querer saber muito mais do que no passado sobre o que é feito com o seu dinheiro. As sociedades anónimas terão que resignar-se a divulgar informação mais relevante sobre os seus negócios como uma contrapartida indispensável do direito a gerirem os capitais que o público lhes confia.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Como dar cabo de um país

Nos últimos anos do século XVII, William Patterson, um financeiro que estivera envolvido na criação do Banco de Inglaterra, concebeu um grandioso esquema – o “Darien scheme – para estabelecer uma colónia escocesa no istmo do Panamá (Darien, para os escoceses) destinada a controlar todo o comércio em trânsito terrestre do Atlântico para o Pacífico.

A Companhia da Escócia começou por angariar fundos em Londres, mas o governo inglês, receando a concorrência que o projecto faria à Companhia das Índias Orientais, opôs-se à ideia. A Companhia teve então que virar-se para o mercado doméstico de capitais, onde não teve dificuldade em angariar 400 mil libras em poucas semanas (o equivalente a 40 milhões de libras na actualidade). O entusiasmo em torno do projecto era tal que toda a gente na Escócia – rica, pobre e remediada – se endividou para comprar acções da Companhia, cujo activo equivalia a metade de todo o capital disponível no país.

Em Julho de 1698 partiu para o Panamá a primeira expedição, que integrava 5 navios e transportava 1.200 pessoas. A tragédia foi fulminante: o clima inóspito e as doenças rapidamente dizimaram um bom número de colonos; de modo que, após ser-lhes negada ajuda pelas colónias inglesas da América, o estabelecimento foi abandonado em Julho de 1699. Entretanto, como na época não havia telefone nem internet, uma segunda expedição vinha a caminho com mais 1.200 pessoas, tendo sofrido igual destino. No final, regressou à pátria um navio com 30 sobreviventes. Em resultado, a Companhia da Escócia viu-se arruinada e, com ela, toda a nação. Aparentemente, nenhum dos promotores do empreendimento tinha a mínima ideia das condições reais do local onde haviam persuadido um país inteiro a aplicar somas colossais.

Em 1707, uma Escócia exangue resignou-se a assinar o Acto de União com a Inglaterra. Em compensação, a Inglaterra acordou pagar aos investidores da Companhia 398 mil libras. Por outras palavras, o país foi vendido. Só em 1999, três séculos mais tarde, a Escócia conseguiu recuperar o seu Parlamento.

Na época, o ódio popular incidiu mais sobre os ingleses do que sobre os promotores do Darien Scheme, apesar da evidente estupidez do projecto e da colossal insensatez dos seus líderes, que não hesitaram em mobilizar uma nação inteira para investir em algo cuja viabilidade jamais fora suficientemente investigada. No final, os investidores recuperaram melhor ou pior o seu dinheiro; mas milhares de pessoas perderam a vida e o país a sua independência.

Esta tragédia não foi um caso isolado. A história das origens da sociedade anónima de responsabilidade limitada é uma enciclopédia da fraude, cujos pontos altos foram a Companhia do Mississípi e a Companhia dos Mares do Sul. Com tanta trapaça, o Parlamento inglês decretou a sua proibição em 1720.

Adam Smith condenava em 1776 as sociedades anónimas por concederem a uma clique a possibilidade de manipular a maioria dos investidores e conquistar um poder desmesurado sobre a economia e o Estado. Como conseguiram então sobreviver e disseminar-se elas apesar de um currículo tão negativo e de opositores tão influentes? A má razão é que isso interessava aos poderosos endinheirados; a boa, que, fora o Estado, só elas estão em condições de canalizar pequenas poupanças para volumosos investimentos em actividades que beneficiam de grandes economias de escala.

De modo que uma espécie de contrato social instituiu a tolerância da sociedade anónima a troco da sua sujeição a uma regulamentação apertada. Ainda assim, foi só em 1900 que, por entre acusações de socialismo, a lei inglesa impôs, por exemplo, a obrigatoriedade de apresentação aos accionistas de contas auditadas.

Os sucessos recentes na Islândia recordam-nos que, ainda hoje, é possível os desmandos de aventureiros descontrolados levarem um país à ruína. Mas os estudantes de economia são poupados ao conhecimento de eventos como o relatado, não vá dar-se o caso de ficar abalada a sua confiança nas teorias muito limpinhas que lhes explicam como as economias funcionam. É muito mais conveniente fazê-los crer que tudo se resume a encontrar o ponto de intersecção da oferta e da procura, ignorando a importância das relações de poder na determinação do resultado final.

Sabemos há séculos que as sociedades anónimas se prestam a toda a espécie de abusos quando a sua actuação não é convenientemente regulada. Em casos extremos, podem semear a miséria e arruinar países. Mas foi preciso chegarmos junto ao abismo para esta verdade ser recuperada e reconhecida.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Delírios da razão calculadora

Seria o Velho do Restelo um economista? Não é provável: se ele exercesse a ciência lúgubre, decerto fundamentaria o seu ponto de vista numa análise custo-benefício. Ou seja, teria imputado um valor monetário tanto aos ganhos como às despesas decorrentes da descoberta do caminho marítimo para a Índia para tentar apurar se o saldo global seria positivo.

A análise custo-benefício parece, à primeira vista, uma ferramenta útil para a avaliação dos méritos do investimento público. As dificuldades surgem, porém, logo que se tenta atribuir um valor a algo que não se encontra à venda no mercado, como seja a vida humana. A resposta dos economistas é, porém, simples: o valor de uma pessoa será igual ao fluxo actualizado dos seus rendimentos futuros esperados.

Vai daí, a administração Clinton fixou o valor médio de uma vida humana em 6,1 milhões de dólares, mas a de Bush baixou-o para 3,7 milhões. As dificuldades agravam-se quando se tenta atribuir um valor a coisas como a soberania nacional, de modo que exige-se uma análise custo-benefício para avaliar a bondade de um sistema nacional de saúde, mas prescinde-se dela para declarar guerra ao Iraque. Precisamos de análises custo-benefício para salvar vidas, mas não para eliminá-las.

Se eu quiser investir numa fábrica de chuchas para bébés, conseguirei calcular sem grande dificuldade os custos fixos e variáveis relativos ao projecto; mas só Deus sabe se alguma mãe comprará uma só das minhas chuchas. Algo semelhante sucede com os investimentos públicos, numa escala tanto maior quanto mais complexos, mais inovadores e mais prolongados no tempo eles forem.

Uma vez inaugurada a ponte 25 de Abril, tornou-se evidente ter sido correcta a decisão de construí-la; antes, porém, ninguém poderia estimar ao certo o tráfego rodoviário que diariamente a atravessaria. Do mesmo modo, são altamente falíveis todas as previsões de que dispomos em relação ao número de passageiros que daqui a dez, vinte ou trinta anos optarão por viajar de TGV entre Lisboa e Madrid ou entre Lisboa e Porto.

Como evoluirá num horizonte longo o preço do petróleo e como influenciará ele as escolhas de modos de transportes? Que iniciativas tomarão os governos para dissuadir o consumo de combustíveis fósseis? Quais serão os preços relativos das diversas alternativas de transporte entre aquelas cidades? Que complementaridades adicionais poderá o TGV criar entre elas? Eis algumas – apenas algumas – das questões que podem influenciar a procura efectiva dirigida a essas linhas.

De modo que, quando se diz que a linha de TGV Lisboa-Madrid transportará por ano 9 milhões de passageiros dever-se-ia mencionar também o intervalo que separa a previsão mais pessimista da mais optimista. Mas, se a margem de indeterminação se situar, digamos, entre os 5 e os 12 milhões de passageiros, tornar-se-á evidente que necessitaremos de um critério adicional para avaliar a bondade do investimento. Que eventualidade será mais grave: a) construir o TGV e constatar a posteriori que a procura é insuficiente; ou b) não o construir e descobrir que, por causa disso, o país se tornou ainda mais periférico no contexto europeu?

É claro que umas continhas nunca fizeram mal a ninguém. No mínimo, quando conduzidas com rigor, ajudam a balizar o terreno em que nos movemos e, logo, a avaliar a dimensão do risco. Mas é um erro acreditar-se que esse exercício nos dispensa de introduzir no raciocínio uma componente valorativa. A prioridade que algumas pessoas concedem ao objectivo estratégico de integrar o país nas redes europeias de transportes prende-se com uma ideia do modo como as suas principais áreas metropolitanas devem encaixar-se no desenho geral da economia ibérica.

Dir-se-á que, se assim se desejar, tais considerações poderão também ser integradas numa análise custo-benefício, mas então desvanecer-se-á a pretensa objectividade apolítica do exercício que seria, supostamente, a sua grande vantagem. Vale isto por dizer que a análise custo-benefício dos projectos de investimento público não dispensa a explicitação de uma estratégia de desenvolvimento para o país.

O investimento público funciona melhor na prática que na teoria. Passa-se o inverso com a análise custo-benefício. Nem sequer é seguro, aliás, que os benefícios da análise custo-benefício excedam sempre os seus custos.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Uma coisa de cada vez

Nunca conheci um sistema de avaliação do desempenho que não desse lugar a resistências e recriminações. Nunca vi um que não comportasse sérios defeitos e injustiças. Nada disso, porém, desmente a sua utilidade.

O tema é árduo, especialmente tratando-se de serviços públicos complexos prestados por profissionais qualificados como a saúde ou a educação.

A avaliação surge por regra associada a incentivos concebidos para induzir comportamentos orientados para os objectivos de uma organização. A presente ausência de avaliação dos professores é consistente com um modelo de emprego garantido e progressão automática em que toda a gente chega ao topo da carreira independentemente da sua contribuição individual para a qualidade do ensino.

Um sistema assim é ingovernável, dada a quase total ausência de instrumentos que permitam conduzir a educação no sentido desejado. Precisamos, por isso, de objectivos claros, de incentivos apropriados e de uma avaliação eficaz.

Diz-se, por vezes, que os professores e as escolas são auto-motivados, e há aí uma parte de verdade. O conceito de comunidade escolar não é (embora na boca de certos dirigentes sindicais possa parecê-lo) uma ficção hipócrita. A motivação dos professores resulta em larga medida da estima dos pares, do desenvolvimento profissional e da sensação de pertença a um grupo de pessoas irmanadas num mesmo propósito – em suma, de uma cultura partilhada.

Sucede, porém, que a comunidade escolar não pode nem deve viver em roda livre. Ela tem por força que prestar contas perante os alunos, as famílias e o país (representado pelo governo) e é aqui que entra o tema da avaliação. Para que as coisas melhorem, as normas internas de auto-regulação (as únicas que agora existem) têm que ser complementadas com normas externas e depois transformadas em função delas. Não se trata de negar a importância das nomas internas, mas de retirar-lhes o carácter exclusivo de que actualmente beneficiam, visto que, na prática, a presente situação configura um predomínio dos pontos de vista e dos interesses dos professores sobre os do país que devem servir.

Diz-se, com razão, que o sistema proposto tem falhas. Por mim, encontro pelo menos duas, que, por falta de espaço, não aprofundarei: a variação do modelo de escola para escola e a ligação que nele se estabelece entre o desempenho dos alunos e o dos professores. E haverá decerto outras que desconheço.

Será isto razão bastante para interromper o processo de avaliação? Para, como alguns dizem, “parar para pensar”? De forma nenhuma. A busca do modelo perfeito é uma doença da nossa cultura empresarial e organizacional que conduz directamente à procrastinação. Esperar pela solução sem mácula para só então avançar não passa, as mais das vezes, de uma desculpa para a inércia.

As organizações progressivas adoptam na suas actividades o método de tentativa e erro, ou seja, continuamente lançam novas iniciativas, avaliam os seus resultados e corrigem o que houver a corrigir. Pelo contrário, as organizações ineptas, preocupadas em prevenir-se contra as eventualidades mais abstrusas e improváveis, evitam agir com receio do que poderá vir a suceder num futuro distante, deixando atrás de si um rasto de planos não aplicados.

A resistência dos professores à introdução do sistema de avaliação é normal e compreensível, mas o interesse colectivo deve sobrepôr-se às suas razões particulares.

O ensino atingiu um tal nível de degradação que não é possível perdermos mais tempo. Viremos a página e passemos às questões que mais interessam. Mas, primeiro, é preciso pôr a funcionar a avaliação, que é um instrumento essencial de gestão do sistema. Uma coisa de cada vez.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Rudimentos de gestão subprime

É fácil concordar com Adam Smith quando ele escreve que, numa economia de mercado, não dependemos do altruísmo do padeiro para podermos comer pão todos os dias. Note-se, porém, como isto é diferente de pretender que nenhum mal vem ao mundo se o padeiro apenas cuidar dos seus interesses mesquinhos. É esta, porém, a tese de Milton Friedman.

O comum empresário sabe que, no longo prazo, o seu negócio não prosperará se, no dia a dia, ele espezinhar os legítimos interesses de clientes, empregados, fornecedores e poderes públicos, pela simples razão de que, muito em breve, ninguém quererá nada com ele.

Todavia, as empresas que hoje contam não se encaixam nesse figurino: a sua propriedade encontra-se disseminada por uma multidão de accionistas (dos quais apenas uma minoria detém algum poder de controlo sobre a sociedade), para além de que a gestão quotidiana se encontra entregue a uma equipa de gestores profissionais.

A teoria económica que se ensina nas escolas e divulga nos media sustenta que isso não faz a mínima diferença, mas todos nós (e também os especialistas em economia da empresa) sabemos que faz.

"Greed is good" é uma forma crua mas fiel de sintetizar as doutrinas de Milton Friedman, das quais decorreu o triunfo de uma concepção dos negócios exclusivamente justificada pela perspectiva da maximização do lucro do padeiro, ou, como agora se diz, pela maximização do valor para o accionista. Tal é, de facto, o valor supremo perante o qual todos os outros devem vergar-se: lucro sempre crescente, a todo o custo e já.

Ora, como bem sabe qualquer pessoa que gere ou geriu uma empresa, essa exigência não é realista. Os negócios mais sólidos demoram tempo a criar e consolidar. Todos passam por períodos maus. E a exclusiva obsessão com a rentabilidade pode pôr em causa os próprios alicerces do empreendimento.

Para tornear a dificuldade, o gestor-herói dos nossos tempos especializou-se em acções espectaculares que entusiasmam a imprensa da especialidade e aumentam a sua aura pessoal de implacável campeão da "criação de valor": fusões e aquisições, encerramento de fábricas ou departamentos inteiros e despedimentos em massa, tudo embalado na linguagem eufemística do turn-around, da eficiência, do outsourcing ou da deslocalização.

Como persuadir, porém, os colaboradores da empresa a esforçarem-se por aumentar contínua e exponencialmente o EBIT trimestre a trimestre, se, no fim da linha, nenhuma recompensa os espera tirando a parca satisfação de terem contribuído para a glória pessoal do seu CEO? Como Henry Mintzberg fez notar, isto é a total corrupção da própria essência do conceito de liderança.

Não assentando na criação de valor para a sociedade – em última análise, o único propósito legítimo de qualquer empresa – a única forma de apresentar lucros crescentes consiste em delapidar os activos da empresa, e, de preferência, os intangíveis. É assim que o CEO subprime (escudado no triplo A outorgado por um MBA da moda) desinveste no desenvolvimento dos colaboradores, trava a investigação de novos produtos e liquida gradualmente as marcas do seu portfolio. Quando tudo isso falha, resta a fuga aos impostos ou coisa pior.

Numa palavra, os "lucros" que ele distribui asseguram a destruição da empresa a prazo, o que, de resto, em nada o afecta. De forma que a criação de valor para os accionistas acaba por revelar-se mera criação de valor para o arrivista que eles tiveram a infelicidade de contratar.

A derrocada que ameaça o sistema financeiro mundial foi despoletada por acções que só podem ser classificadas como fraudulentas. Mas é altura de começarmos a interrogar-nos por que houve durante tanto tempo tanta complacência perante as doutrinas anti-sociais que criaram um ambiente propício ao florescimento dos comportamentos que, agora, quase todos unanimemente condenam.

Estamos apenas a começar a puxar o fio à meada.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O desenvolvimento não é o prémio da virtude

Por que são certas regiões do mundo mais desenvolvidas do que outras? O tema é complexo, de modo que começaremos pela parte mais simples.

Uma simples olhadela ao mapa-mundo permite-nos constatar que não há países desenvolvidos entre os trópicos, a menos que aceitemos classificar a cidade-estado de Singapura como um país. Curioso, não é verdade?

Armado deste conhecimento básico, um marciano que observe a Terra por um telescópico, poderá adivinhar: que a Argentina e o Chile são os países mais avançados da América Latina; que a África do Sul bate em nível de desenvolvimento toda a África Negra; e que, no continente australiano, a parte meridional está muito à frente da setentrional.

A origem desta correlação entre latitude e desenvolvimento radica, genericamente, no facto de os climas temperados serem mais favoráveis à exploração agrícola. Hoje, a agricultura desempenha um papel subordinado nas economias modernas; mas a indústria, primeiro, e os serviços, depois, instalaram-se perto das grandes aglomerações humanas pré-existentes, de modo que o passado continua a pesar imenso na distribuição espacial das economias contemporâneas.

É claro, porém, que a latitude não é o único factor geográfico relevante para explicar o nível de relativo de desenvolvimento económico. A abundância de recursos naturais, as condições climatéricas locais, a facilidade de comunicação e, em geral, a proximidade do mar, também contam – e muito. Segundo alguns investigadores, as condições geográficas explicam entre dois terços e três quartos das diferenças de níveis de desenvolvimento económico entre regiões. O resto fica para os economistas investigarem, o que ainda permite empregar muita gente.

O desenvolvimento tecnológico pode introduzir perturbações neste quadro geral, principalmente ao permitir o acesso a novos recursos naturais inexplorados ou alterar a importância relativa dos recursos existentes. Por exemplo, ao longo da Idade Média, o uso de melhores ferramentas de trabalho permitiu desbravar as florestas europeias e conquistar para a agricultura terras extensas e altamente produtivas, de modo que o centro económico do continente se deslocou progressivamente das margens do Mediterrâneo para a Europa Ocidental e Central. Transformações desta amplitude são, porém, raras e lentas.

Os economistas não gostam de reconhecer o papel decisivo da geografia na ordenação dos níveis de desenvolvimento, preferindo insistir na importância da educação, da organização e da cultura em geral como factores de crescimento. Resultará a prosperidade da instituição de atitudes e comportamentos favoráveis como a pontualidade, a capacidade de organização, a valorização do mérito, a iniciativa individual, o sentido cívico, o respeito pela lei e a curiosidade científica? Sim, mas a experiência sugere que a causalidade também funciona no sentido contrário, de modo que o impulso de fundo não poderá ser encontrado aí.

Decididamente, o desenvolvimento não é o prémio da virtude, mas de ter a sorte de estar no sítio certo, algo muito difícil de aceitar pelos cidadãos dos países avançados que se acham de algum modo superiores – seja em capacidade de trabalho ou em inteligência – aos restantes mortais.

O que ficou dito refere-se apenas à ordenação geral das regiões, não à amplitude das diferenças entre elas. A Revolução Industrial ampliou inicialmente o fosso entre países avançados e atrasados, situação que apenas começou a inverter-se na segunda década do século XX. Essa redução das discrepâncias de desenvolvimento entre países e regiões parece dever-se antes de mais à difusão das tecnologias de produção à escala do planeta, evidentemente acompanhada de uma revolução profunda nas formas de organização social nos países que haviam ficado para trás.

Logo, nada impede que Portugal se aproxime progressivamente de níveis de prosperidade típicos da Alemanha – como, de resto, tem vindo a acontecer desde há meio século – mas, a menos que ocorram catástrofes inimagináveis ou transformações tecnológicas imprevisíveis não é expectável que os ultrapasse nos próximos quinhentos anos. Quem tiver muita pressa, vai mesmo ter que emigrar.