sexta-feira, 12 de março de 2010

A Cidade e as Serras

Na minha geração aprendia-se a ler em livros escolares povoados por uma pitoresca galeria de figuras campesinas conduzindo carros de bois, lavrando a terra com arados ou apascentando o gado, extravagantemente misturadas com humildes santinhos de pés descalços, intrépidos navegadores de quinhentos e sorridentes guerreiros medievais. Eram mínimas as referências ao mundo urbano: praticamente não se via prédios altos, nem automóveis, nem aviões.
Esta retrógrada fantasia icónica parecia estranha àqueles que, como eu, vivendo em Lisboa, só nas férias conviviam um pouco com a vida rural, mas guardava alguma relação, ficcionada embora, com o dia a dia de uma boa parte do povo português.

Passado meio século, habitamos um país totalmente distinto: reduziu-se drasticamente a parcela da população ocupada na agricultura, dilataram-se e modernizaram-se as principais cidades, cresceram a perder de vista os subúrbios. Dir-se-ia que, na esteira do mundo desenvolvido, também nós, tarde e a contragosto, nos convertemos numa sociedade urbana.

Sucede, porém, que, segundo as estatísticas disponíveis, Portugal permanece uma sociedade comparativamente pouco urbanizada. Em concreto, somos o país da Europa Ocidental e Central com mais baixos índices de concentração urbana. Não há como pôr números nas coisas: a população portuguesa residente em áreas urbanas ronda os 37%, contra, por exemplo, 67% na Itália e 77% na Espanha. A nossa taxa de urbanização será mesmo inferior à da Albânia em um ponto percentual.

Como todas as estatísticas, também estas terão alguma margem de erro, sendo a comparação com a Albânia especialmente difícil de engolir. Mas não duvidemos que a nossa taxa de urbanização não é meramente baixa – ela é patologicamente baixa.

Acresce que o tema não traz a nossa opinião pública preocupada como deveria. Bem pelo contrário, o que frequentemente se escuta por aí são queixas contra a macrocefalia do país ou o progressivo abandono de aldeias tradicionais perdidas no cocuruto de uma serra distante.

Acontece que a persistente dispersão da população portuguesa por uma miríade de vilas e aldeias espalhadas pelo território acarreta elevadíssimos custos sociais e motiva consideráveis perdas de produtividade. Fica caríssimo ao Estado levar estradas, escolas, cuidados médicos, electricidade, água e telecomunicações a uma população tão dispersa como a nossa, ainda por cima para, no final, lhe proporcionar um serviço que não pode deixar de ser medíocre.

Considere-se, por exemplo, o caso da educação. Cerca de dois terços das escolas portuguesas tinham há pouco tempo menos que 30 alunos, e um terço menos que 10. Por comparação, a França, país do G7 com o mais baixo indicador, tinha em média 166 alunos por escola. Ora, escolas minúsculas cumprem necessariamente mal a sua função educativa, sejam quais forem os critérios de avaliação utilizados.

Ao invés, as cidades são uma forma económica de organizar a vida em sociedade, visto que, aproximando as pessoas, reduzem custos de transacção e determinam rendimentos crescentes de proximidade. As cidades são mais eficientes do ponto de vista energético, porque reduzem os custo de transporte de pessoas e bens e estimulam o recurso ao transporte público. A proximidade das pessoas facilita a circulação de informação e conhecimento, a observação e cópia de boas experiências, o debate de ideias e a inovação. Nas cidades fomentam-se complementaridades produtivas, decisivas numa era em que o crescimento depende antes de mais da cooperação entre empresas e trabalhadores qualificados orientada para o desenvolvimento de novos processos e novos produtos.

Ora, não só nós temos poucas e pequenas cidades, como as nossas áreas metropolitanas, também elas muito dispersas, se encontram por isso mesmo mal habilitadas a proporcionar os ganhos de eficiência potenciais. Cidades mais densas são cidades mais produtivas; cidades dispersas diluem as vantagens da proximidade.

A preocupantemente baixa produtividade total dos factores da economia portuguesa decorre em boa parte deste deficiente padrão de ocupação e organização do território, fonte de desperdícios e encargos adicionais tanto para o Estado como para as empresas. Todavia, a intervenção dos poderes públicos, orientada por preconceitos injustificados e condicionada pelas pressões dos interesses locais, tem não raro sido hostil ao necessário esforço de concentração e qualificação urbana.
É, por isso, oportuno lembrar que poucas áreas de intervenção encerram um tão grande potencial de melhoria da competividade do país e de redução da sua dependência energética, contribuindo ao mesmo tempo para o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos.

(Publicado no Jornal de Negócios de 10.2.10)

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