Em qualquer sistema de self-service, incluindo os super ou hipermercados, o cliente faz uma parte do serviço outrora a cargo de empregados contratados. Noutros tempos, ele dirigia-se a um balcão, pedia o que desejava e recebia as compras já embaladas e prontas a transportar. A retirada do balcão permitiu ou obrigou o cliente a ir directamente buscar o que pretendia. Nas estações de serviço não havia sequer balcão, de modo que parece-nos hoje absolutamente natural que cada qual trate de encher o depósito, verificar a pressão dos pneus e limpar os vidros.
Os estabelecimentos de fast-food conseguem economias significativas de mão-de-obra eliminando o serviço de mesa. Quando optamos pelo take away, ajudamo-los a pouparem no espaço do estabelecimento. Pessoas usualmente esquisitas aceitam mesmo levantar a mesa no McDonald's sem qualquer contrapartida.
Quando as empresas compreenderam que os consumidores concordavam sem demasiada resistência desempenhar certos trabalhos a troco de conveniência, rapidez e economia, o sistema self-service generalizou-se progressivamente no sector dos serviços. Ao levantarmos dinheiro ou fazermos pagamentos no ATM, contribuímos graciosamente para a maior eficiência dos bancos. O mesmo se passa quando aderimos ao home banking. Trocando os extractos em papel pelos digitais, o banco deixa de ter que imprimi-los e enviá-los pelo correio, ficando a nosso cargo procurar a informação com o nosso computador e recorrendo a telecomunicações pagas com o nosso dinheiro.
A IKEA vende mobiliário barato porque a montagem final corre por nossa conta. A economia conseguida corresponde euro por euro às horas de trabalho não contabilizadas que dispendemos no processo. Parte da fábrica foi transferida para nossa casa sem que disso nos apercebessemos. Tornámo-nos funcionários subservientes das empresas que nos vendem produtos e serviços. Trabalhamos para elas sem horários, nem salários, nem direitos laborais. Mais: se o serviço funcionar mal, muito provavelmente a culpa será nossa.
O sistema consistente em pôr o público a trabalhar gratuitamente (ainda por cima pagando para isso) está generalizado na televisão e na rádio, cuja programação consiste cada vez mais em fóruns, reality shows, talk shows, concursos e entrevistas de rua. É o modelo Tom Sawyer de pintar a cerca da Tia Polly cobrando à garotada da rua maçãs ou berlindes pelo direito a dar umas pinceladas.
O aumento de produtividade de parte do sector dos serviços consiste em grande medida em persuadir-nos a suportarmos uma carga de trabalho cada vez maior; trabalho esse que, deixando de ser feito por empregados, assegura às empresas poupanças muito significativas. Inevitavelmente, porém, cada vez dispomos menos de genuíno tempo livre. Toda a gente se queixa de que esteve muito ocupada no fim de semana. A fazer o quê? Ora, a percorrer os corredores do supermercado, a lavar o carro, a fazer transferências bancárias, a esperar na bicha do fast food, a ensinar às crianças o que não aprenderam na escola, a reparar a impressora seguindo as instruções do call-center ou a montar estantes. Tanta modernidade deixa-nos esgotados.
Na agricultura e na indústria, produtividade significa fazer mais com os mesmos recursos. Como é mais prático e económico comprar que fazer em casa, as pessoas deixam de plantar couves no quintal e de tricotar camisolas. Os cidadãos diminuem a auto-produção e o auto-consumo e conquistam tempo livre.
Paradoxalmente, em muitas actividades de serviço, produtividade significa fazer menos com os mesmos recursos. Como comprar tudo feito é mais caro e pior que fazê-lo, as pessoas resignam-se a trabalhar gratuitamente para as empresas que lhes vendem os serviços. Voltam a crescer a auto-produção e o auto-consumo, agora adornados de uma inovação linguística concebida por gurus que pensam muito à frente: somos hoje todos prosumers ou, se preferirem, “prosumidores”. Em resultado, resta-nos menos tempo livre para a família e para os amigos ou, em alternativa, menos horas de sono.
Se, como pretendia Adam Smith, o preço de qualquer coisa inclui todo o esforço e maçada que ela nos custa, então a deterioração da qualidade de um serviço esconde um aumento real do seu preço. Não sendo esse facto considerado nas estimativas da contabilidade nacional, a inflação será subestimada e tanto a produção como os salários reais serão sobretimados. Este problema tem preocupado os economistas, embora mais pelo lado da melhoria da qualidade do que da degradação dela. Desde meados dos anos 90, as estatísticas americanas consideram que a contínua subida da qualidade em produtos como computadores, automóveis e electrónica de consumo equivale a uma descida dos preços. Em resultado dessa revisão de metodologia, os EUA acrescentam todos os anos 0,5% ao crescimento do seu produto per capita, o que contribuíu para criar a ilusão de que a América cresce mais depressa do que a Europa.
Está certo o raciocínio que faz equivaler uma melhoria de qualidade a uma descida do preço, mas não se entende que não ocorra uma correcção do PNB no sentido inverso quando aquilo que se compra é, como sucede em tantos serviços, cada vez pior. Ignorá-lo é esconder um factor de empobrecimento que todos sentimos no dia a dia.
O PNB não é um facto objectivo, é uma construção teórica orientada por uma interpretação sobre o modo como a actividade económica afecta o bem-estar da sociedade. O resultado obtido depende, por exemplo, do modo como se calcula o índice de preços, se trata o problema da qualidade dos bens, se contabiliza os serviços do sector público, se valoriza a igualdade económico-social ou se avalia a importância da conservação dos recursos naturais.
Decidamente, todos ganhariamos se os economistas dedicassem algumas horas a estudar Mark Twain na faculdade.
(Artigo publicado no Jornal de Negócios de 30.6.10)
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