Há meio século, todos
concordavam que o lugar dos loucos é no manicómio. A populaça temia e
hostilizava os "maluquinhos", mas a sociedade achava seu dever cuidar
deles internando-os em instituições para alienados.
Embora por essa altura rareassem já os tratamentos mais
violentos, o confinamento de seres humanos para a vida em presídios
especializados era crescentemente contestado, tanto mais que a noção de
distúrbio mental era (e é) algo vaga. Fazia-se, por exemplo, notar que
na União Soviética os opositores eram internados em hospícios sob o
pretexto de que a sua resistência a uma sociedade tão racionalmente
organizada só poderia dever-se a algum tipo de falha psíquica.
Pensadores
como o americano Szaz, o escocês R. D. Laing ou o francês Foucault
argumentaram que a impropriamente chamada loucura pode ser um mecanismo
perfeitamente racional de ajustamento a um mundo injusto e desumanizado,
oferecendo um potencial de libertação e renovação espiritual. Nessas
circunstâncias, o internamento compulsivo dos loucos torna-se numa forma
de uma maioria de cidadãos conformistas reprimirem impulsos
emancipadores e perpetuarem a tirania do "estado terapêutico".
Estaríamos assim perante um sistema potencialmente totalitário orientado
para a aniquilação de acções, ideias e emoções arbitrariamente
classificadas como impróprias.
Por tudo isso, o
movimento da "antipsiquiatria" sustentava a eliminação do asilo de
alienados e a libertação e reintegração dos loucos na sociedade civil, a
qual cuidaria de potenciar as suas capacidades criativas. "Voando Sobre
um Ninho de Cucos", o filme realizado por Milos Forman em 1975 e
galardoado com cinco Óscares, ajudou muito a popularizar essas teses.
A
nova direita não tardou em brandir a bandeira da libertação dos doidos,
não só por constatar que o estado despendia rios de dinheiro na
manutenção de manicómios, como por a horrorizar a violação dos direitos
dos indivíduos aprisionados. Passou a estar em voga a devolução dos
loucos a comunidades de reintegração financiadas pelo estado como
alternativa mais económica para os contribuintes, mas, em 1982, Ronald
Reagan achou que o melhor seria mesmo acabar com esses subsídios, de
modo que os doentes começaram a ser lançados nas ruas, dentro do
princípio de que cada qual sabe o que é melhor para si – e o resto do
mundo aderiu à inovação.
Essa revolução contribuiu
para aumentar drasticamente o número de sem-abrigo, dos quais parte
considerável manifestamente padece de perturbações psíquicas. Embora
escasseiem estatísticas fiáveis, acredita-se que na Europa e nos EUA os
sem-abrigo se contem hoje por milhões. Quanto à situação portuguesa,
caracteriza-se por um considerável potencial de libertação não
concretizado, arriscando-nos inclusive a ser ultrapassados por economias
do leste europeu mais dinâmicas na produção de sem-abrigo. Necessitamos
urgentemente de uma revolução de mentalidades.
O
primeiro preconceito a eliminar é a ideia de que o modo de vida dos
sem-abrigo só é indicado para indigentes. Salvo raras excepções, o que
singulariza os sem-abrigo é a fragilidade mental; logo, nada impede que a
fome de liberdade e espiritualidade inerentes a esse modo de vida
atraiam tanto a classe média como gente de posses.
Atente-se
em Nicolas Berggruen, que, embora dono de uma fortuna avaliada em 2,2
mil milhões de dólares, decidiu em 2002 vender o seu apartamento em
Manhattan e a sua ilha na Florida, mantendo apenas o jacto pessoal
Gulfstream e deslocando-se permanentemente de hotel em hotel. Nas suas
frequentes entrevistas, exorta toda a gente a abraçar o seu projecto de
libertação dos bens materiais e busca espiritual. Tecnicamente, trata-se
sem dúvida de um "homeless".
Entretanto, a
Sociedade São Vicente de Paulo da Austrália convida desde 2006 os CEO do
país a viverem a experiência dos sem-abrigo num "sleepout" que tem
lugar em Junho de cada ano. O sucesso da iniciativa não decorre, é
óbvio, de esses executivos recearem ver-se um dia, por infortúnio,
despromovidos à condição de sem-abrigo, antes de um desejo reprimido de
ensaiarem uma experiência que lhes tem sido vedada pelos preconceitos
sociais dominantes.
A constatação do fascínio que a
vida dos sem-abrigo exerce sobre tantos altos executivos coloca às
empresas que eles dirigem um angustioso dilema. Não é ético condicionar a
liberdade de alguém, mais a mais quando está em causa a tentativa de
dar significado espiritual à sua vida. Porém, a dificuldade que os
aspirantes a sem-abrigo têm em assumir a sua vocação pode prejudicar o
seu desempenho enquanto hesitam e, por isso, inibir a criação de valor
para os accionistas. Eventualmente, a neurose (que é só um problema do
próprio) pode evoluir para psicopatia (que ameaça os outros). Que fazer?
Em primeiro lugar, é recomendável que os
accionistas e pares do sujeito estejam atentos aos sintomas precoces do
distúrbio, incluindo desinteresse pelas opiniões dos outros, obstinação
extrema, alheamento do senso comum, recusa de rever as suas opiniões e
atitudes, insensibilidade ao sofrimento alheio e incapacidade de pedir
desculpa.
Confirmada a condição neurótica, deverão
aceitar o facto sem mais delongas, incitar o CEO a seguir a sua vocação e
prepará-lo para a sua nova vida, se necessário ajudando-a a adquirir a
indispensável formação. Acima de tudo, o candidato a sem-abrigo deve
evitar a mediocridade e manter a sua ambição. Desde que convenientemente
treinado e motivado, há todas as condições para que, também na nova
carreira que abraçou, ele venha a revelar-se um homem de sucesso.
Publicado no Jornal de Negócios em 5.2.13
Inimaginável
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