quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Requiem

Mad Men, a esplêndida série americana que a RTP2 estreou no último dia de Julho centrada na vida numa agência de publicidade nova-iorquina no início dos anos 60, fala-nos de um mundo simultaneamente próximo e distante.

Surpreendem-nos o chauvinismo, a homofobia, o anti-semitismo e a desigualdade entre os sexos, assumidos sem culpa nem subterfúgios pelos personagens. Era assim o mundo (ou, pelo menos, a América) antes dos Beatles. Menos de uma década depois, Woodstock assinalaria a profundidade das alterações entretanto ocorridas nas sociedades ocidentais.

Também o mundo do marketing e da publicidade sofreu desde então transformações radicais. Mad Men começa num momento em que a revolução criativa iniciada por Ogilvy e Bernbach, ainda não tomara conta de Madison Avenue. Sterling Cooper, a agência fictícia retratada na série, embora não imune às transformações que a rodeavam, regia-se pelos padrões mais convencionais da época.

Os account executives controlavam o processo, os copywriters concebiam as campanhas, os art-directors estavam às suas ordens e os media planners limitavam-se a pôr cruzinhas nuns mapas. Os publicitários aplicavam técnicas de venda agressivas. Os clientes confiavam cegamente no poder persuasivo da publicidade. Toda a gente ganhava rios de dinheiro.

A agência de publicidade é uma das instituições mais originais e intrigantes do capitalismo moderno. A economia é por norma encarada como um sistema eminentemente racional de alocação eficiente de recursos, mas os publicitários presumem o contrário. O progresso é na verdade impulsionado pela fantasia dos consumidores: as pessoas não compram brocas de 5 mm, compram furos de 5 mm; as fábricas produzem cosméticos, mas, nas lojas, as clientes adquirem esperança; as marcas colocam a felicidade ao alcance de todos. Assim, é melhor possuir a marca Coca-Cola do que os activos materiais da empresa.

Mau-grado toda a retórica sobre a inovação, a vida nas empresas é por regra rotineira. A grande preocupação é fazer as coisas bem feitas e, de preferência, cada vez mais baratas. Privilegia-se a previsibilidade do trabalho organizado. Não assim nas agências, das quais se exige continuamente soluções inovadoras capazes de assegurarem a preferência de consumidores caprichosos.

Gerou-se nos publicitários a partir dos anos 60 a convicção de que as agências vendem acima de tudo ideias criativas e que a única forma de inventá-las em quantidade e qualidade é fomentar um ambiente de trabalho perigosamente caótico (daí a expressão Mad Men). Foi a era de ouro da publicidade. Com o tempo, porém, o culto da criatividade tomou o freio nos dentes e a reputação das agências ressentiu-se disso.

Já não existem hoje agências como a Sterling Cooper. A pouco e pouco, as diversas actividades que integravam a agência de serviço completo foram sendo separadas, designadamente a lucrativa negociação e compra de espaço. Ademais, a crescente fragmentação dos media (logo, também das audiências) tornou cada vez mais difícil atingir eficientemente o público alvo e contribuíu para minar a fé no poder da publicidade.

Nos anos recentes, ameaças ainda mais terríveis vieram pôr em causa a comunicação de marketing tradicional. O valor essencial dos mass media assentava no racionamento da oferta de informação e entretenimento, o que, a um tempo, restringia o acesso dos anunciantes ao espaço público e forçava as audiências a assistirem à publicidade. Este modelo desagregou-se passo a passo com a difusão do cabo, e sofreu a machadada final com o advento da internet.

Blogues, Podcasts, Flickr, YouTube, Twitter e outras ferramentas similares operaram uma colossal transferência de poder no espaço mediático. Não só qualquer um pode agora tornar-se emissor se tiver algo para dizer, como consegue blindar eficazmente o seu espaço privado contra a invasão de mensagens publicitárias. Os cidadãos e os consumidores conquistaram poder e usam-no em função dos seus interesses. Sobra cada vez menos espaço para a publicidade intrusiva.

Felizmente para ele, Dan Draper, o director criativo da Sterling Cooper, já não tem que se preocupar com nada disto. O mesmo não direi de quem hoje procura ganhar a vida trabalhando em marketing e comunicação.

(Publicado no Jornal de Negócios de 26.8.09)

2 comentários:

Rui disse...

Caro João, faltou uma incursão pelo poder dos telemóveis e toda a noção de portabilidade da internet e das redes sociais nos mesmos.

IPhone, Blackberrys e Nokias de última geração vão fazer com que a internet nas categorias de: informação; entretenimento de pequeno formato e redes sociais; seja cada vez mais acessada via telemóvel, coincidindo naturalmente com o facto das operadoras móveis terem descoberto o novo filão para substituir os já "velhinhos" sms: os pacotes de dados.

Adorei o artigo com a excepção deste MAS.

Abraço.

Rui

Teresa Rebelo disse...

Só uma adenda à explicação do nome da série: Mad Men vem também do facto da agência em questão, e de quase todas as agências publicitárias nova-iorquinas da época, estarem concentradas na Madison Avenue...