quinta-feira, 19 de maio de 2011

A insensata superstição das reformas estruturais

Em Janeiro de 1957, uma equipa de técnicos da Companhia Portuguesa de Celulose liderada pelos engenheiros Rolo e Von Haffe descobriu uma forma de produzir pasta de eucalipto branqueada pelo processo kraft.

A prazo, esse feito alterou a composição da floresta portuguesa, alicerçou as bases de uma indústria até então periclitante, criou um escol de engenheiros papeleiros e permitiu a rápida expansão das nossas exportações de pasta e papel ao longo de cinco décadas.

Apesar disso, a mais importante inovação tecnológica do século XX originada em Portugal não só não foi à data noticiada nos jornais como ainda hoje permanece numa relativa obscuridade.

As transformações mais decisivas são assim. Chegam com pezinhos de lã, resultam de uma multiplicidade de iniciativas descentralizadas de grupos de indivíduos que enfrentam condições adversas, vão contra a sabedoria convencional da época, os especialistas não as prevêem, são objeto de troça generalizada. Apesar disso, desencadeiam uma deslocação de recursos para aplicações mais produtivas - que é, afinal, aquilo em que consistem o aumento da produtividade e o desenvolvimento. Com o tempo, transformam os países e geram crescente bem-estar.

São episódios deste género - fruto de trabalho, conhecimento e esforço especializados e orientados para a melhoria do desempenho - que dão origem ao desenvolvimento económico e social. Ilustram na perfeição o espírito reformista, que privilegia, na ação empresarial como na governativa, uma mescla de ousadia e ponderação, pequenos passos que se combinam para gerar grandes avanços, progresso metódico, experimentalismo sistemático, risco controlado, avaliação rigorosa dos programas ensaiados, aversão a aventuras dificilmente reversíveis.

Ora, o apelo às reformas estruturais assente na esperança de virar a página transformando tudo de uma penada é o contrário de tudo isto. Sophia de Mello Breyner saudou o 25 de Abril como "o dia inicial inteiro e limpo". Poucas semanas decorridas, já todos sabíamos que, bem longe de podermos começar tudo de novo fazendo "do passado tábua rasa", não só estamos condenados a carregar esse passado às costas como ignorá-lo pode ser muito perigoso. Goste-se ou não, é mesmo assim.

Mudar muita coisa em pouco tempo tem dois tipos de problemas. O primeiro é que, sendo muito insuficiente o nosso conhecimento sobre o modo como as sociedades funcionam, corremos o risco de provocar inesperadas catástrofes em tudo contrárias ao resultado desejado. O segundo risco, na prática ainda mais relevante, consiste na generalização de confrontos de todos contra todos quando se abre uma guerra simultânea em múltiplas frentes contra adversários entrincheirados e poderosos.

As reformas estruturais falham, antes de mais, porque facilitam a tarefa aos interesses instalados. Quando se proclama com grandes fanfarras que vão ser postas em marcha, o que de facto se consegue é alertar todos os seus opositores para a urgência de se unirem e organizarem contra elas. A diversidade das abordagens adotadas explica por que é que, depois de alguns ensaios falhados, as reformas na saúde têm entre nós progredido mais que na educação ou na justiça.

A fúria reformista é, ao contrário do reformismo discreto e quotidiano, um traço típico dos países subdesenvolvidos, onde volta não volta alguém descobre a pólvora e promete a regeneração nacional ao virar da esquina. É por isso que não há reformas estruturais na Suíça ou nos EUA, mas sim na Argentina, na Turquia ou no Bangladesh. Uma reforma estrutural é uma revolução, e falha exactamente pelas mesmas razões: voluntarismo a mais e consistência a menos. O principal resultado prático é muita agitação e poucas transformações reais. As verdadeiras reformas não se fazem de uma assentada: vão-se fazendo persistentemente, no dia a dia, sem perder de vista o propósito ambicioso que está na sua origem. É isso, aliás, o que a palavra reformismo quer dizer.

Em Portugal fazem-se reformas estruturais a mais, não a menos. A Constituição está sempre em obras, e não há maneira de lhes vermos o fim. Mal acaba uma revisão constitucional, anuncia-se logo a próxima. Daí para baixo, é todo o edifício jurídico que vive em contínua convulsão, com os resultados conhecidos. Deitar abaixo e fazer de novo pode ser um modo de vida interessante, mas não é certamente o mais eficaz. Os países não mudam assim.

Diz-se que nas ciências sociais é impossível realizar experiências programadas, mas os portugueses poderão, em breve, desmentir tal alegação, oferecendo-se como cobaias para testar uma avalanche de reformas estruturais cujo estudo fará as delícias da comunidade científica nas décadas vindouras. Se correr mal, paciência.

(Publicado no Jornal de Negócios em 18.5.11)