quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Delírios da razão calculadora

Seria o Velho do Restelo um economista? Não é provável: se ele exercesse a ciência lúgubre, decerto fundamentaria o seu ponto de vista numa análise custo-benefício. Ou seja, teria imputado um valor monetário tanto aos ganhos como às despesas decorrentes da descoberta do caminho marítimo para a Índia para tentar apurar se o saldo global seria positivo.

A análise custo-benefício parece, à primeira vista, uma ferramenta útil para a avaliação dos méritos do investimento público. As dificuldades surgem, porém, logo que se tenta atribuir um valor a algo que não se encontra à venda no mercado, como seja a vida humana. A resposta dos economistas é, porém, simples: o valor de uma pessoa será igual ao fluxo actualizado dos seus rendimentos futuros esperados.

Vai daí, a administração Clinton fixou o valor médio de uma vida humana em 6,1 milhões de dólares, mas a de Bush baixou-o para 3,7 milhões. As dificuldades agravam-se quando se tenta atribuir um valor a coisas como a soberania nacional, de modo que exige-se uma análise custo-benefício para avaliar a bondade de um sistema nacional de saúde, mas prescinde-se dela para declarar guerra ao Iraque. Precisamos de análises custo-benefício para salvar vidas, mas não para eliminá-las.

Se eu quiser investir numa fábrica de chuchas para bébés, conseguirei calcular sem grande dificuldade os custos fixos e variáveis relativos ao projecto; mas só Deus sabe se alguma mãe comprará uma só das minhas chuchas. Algo semelhante sucede com os investimentos públicos, numa escala tanto maior quanto mais complexos, mais inovadores e mais prolongados no tempo eles forem.

Uma vez inaugurada a ponte 25 de Abril, tornou-se evidente ter sido correcta a decisão de construí-la; antes, porém, ninguém poderia estimar ao certo o tráfego rodoviário que diariamente a atravessaria. Do mesmo modo, são altamente falíveis todas as previsões de que dispomos em relação ao número de passageiros que daqui a dez, vinte ou trinta anos optarão por viajar de TGV entre Lisboa e Madrid ou entre Lisboa e Porto.

Como evoluirá num horizonte longo o preço do petróleo e como influenciará ele as escolhas de modos de transportes? Que iniciativas tomarão os governos para dissuadir o consumo de combustíveis fósseis? Quais serão os preços relativos das diversas alternativas de transporte entre aquelas cidades? Que complementaridades adicionais poderá o TGV criar entre elas? Eis algumas – apenas algumas – das questões que podem influenciar a procura efectiva dirigida a essas linhas.

De modo que, quando se diz que a linha de TGV Lisboa-Madrid transportará por ano 9 milhões de passageiros dever-se-ia mencionar também o intervalo que separa a previsão mais pessimista da mais optimista. Mas, se a margem de indeterminação se situar, digamos, entre os 5 e os 12 milhões de passageiros, tornar-se-á evidente que necessitaremos de um critério adicional para avaliar a bondade do investimento. Que eventualidade será mais grave: a) construir o TGV e constatar a posteriori que a procura é insuficiente; ou b) não o construir e descobrir que, por causa disso, o país se tornou ainda mais periférico no contexto europeu?

É claro que umas continhas nunca fizeram mal a ninguém. No mínimo, quando conduzidas com rigor, ajudam a balizar o terreno em que nos movemos e, logo, a avaliar a dimensão do risco. Mas é um erro acreditar-se que esse exercício nos dispensa de introduzir no raciocínio uma componente valorativa. A prioridade que algumas pessoas concedem ao objectivo estratégico de integrar o país nas redes europeias de transportes prende-se com uma ideia do modo como as suas principais áreas metropolitanas devem encaixar-se no desenho geral da economia ibérica.

Dir-se-á que, se assim se desejar, tais considerações poderão também ser integradas numa análise custo-benefício, mas então desvanecer-se-á a pretensa objectividade apolítica do exercício que seria, supostamente, a sua grande vantagem. Vale isto por dizer que a análise custo-benefício dos projectos de investimento público não dispensa a explicitação de uma estratégia de desenvolvimento para o país.

O investimento público funciona melhor na prática que na teoria. Passa-se o inverso com a análise custo-benefício. Nem sequer é seguro, aliás, que os benefícios da análise custo-benefício excedam sempre os seus custos.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Uma coisa de cada vez

Nunca conheci um sistema de avaliação do desempenho que não desse lugar a resistências e recriminações. Nunca vi um que não comportasse sérios defeitos e injustiças. Nada disso, porém, desmente a sua utilidade.

O tema é árduo, especialmente tratando-se de serviços públicos complexos prestados por profissionais qualificados como a saúde ou a educação.

A avaliação surge por regra associada a incentivos concebidos para induzir comportamentos orientados para os objectivos de uma organização. A presente ausência de avaliação dos professores é consistente com um modelo de emprego garantido e progressão automática em que toda a gente chega ao topo da carreira independentemente da sua contribuição individual para a qualidade do ensino.

Um sistema assim é ingovernável, dada a quase total ausência de instrumentos que permitam conduzir a educação no sentido desejado. Precisamos, por isso, de objectivos claros, de incentivos apropriados e de uma avaliação eficaz.

Diz-se, por vezes, que os professores e as escolas são auto-motivados, e há aí uma parte de verdade. O conceito de comunidade escolar não é (embora na boca de certos dirigentes sindicais possa parecê-lo) uma ficção hipócrita. A motivação dos professores resulta em larga medida da estima dos pares, do desenvolvimento profissional e da sensação de pertença a um grupo de pessoas irmanadas num mesmo propósito – em suma, de uma cultura partilhada.

Sucede, porém, que a comunidade escolar não pode nem deve viver em roda livre. Ela tem por força que prestar contas perante os alunos, as famílias e o país (representado pelo governo) e é aqui que entra o tema da avaliação. Para que as coisas melhorem, as normas internas de auto-regulação (as únicas que agora existem) têm que ser complementadas com normas externas e depois transformadas em função delas. Não se trata de negar a importância das nomas internas, mas de retirar-lhes o carácter exclusivo de que actualmente beneficiam, visto que, na prática, a presente situação configura um predomínio dos pontos de vista e dos interesses dos professores sobre os do país que devem servir.

Diz-se, com razão, que o sistema proposto tem falhas. Por mim, encontro pelo menos duas, que, por falta de espaço, não aprofundarei: a variação do modelo de escola para escola e a ligação que nele se estabelece entre o desempenho dos alunos e o dos professores. E haverá decerto outras que desconheço.

Será isto razão bastante para interromper o processo de avaliação? Para, como alguns dizem, “parar para pensar”? De forma nenhuma. A busca do modelo perfeito é uma doença da nossa cultura empresarial e organizacional que conduz directamente à procrastinação. Esperar pela solução sem mácula para só então avançar não passa, as mais das vezes, de uma desculpa para a inércia.

As organizações progressivas adoptam na suas actividades o método de tentativa e erro, ou seja, continuamente lançam novas iniciativas, avaliam os seus resultados e corrigem o que houver a corrigir. Pelo contrário, as organizações ineptas, preocupadas em prevenir-se contra as eventualidades mais abstrusas e improváveis, evitam agir com receio do que poderá vir a suceder num futuro distante, deixando atrás de si um rasto de planos não aplicados.

A resistência dos professores à introdução do sistema de avaliação é normal e compreensível, mas o interesse colectivo deve sobrepôr-se às suas razões particulares.

O ensino atingiu um tal nível de degradação que não é possível perdermos mais tempo. Viremos a página e passemos às questões que mais interessam. Mas, primeiro, é preciso pôr a funcionar a avaliação, que é um instrumento essencial de gestão do sistema. Uma coisa de cada vez.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Rudimentos de gestão subprime

É fácil concordar com Adam Smith quando ele escreve que, numa economia de mercado, não dependemos do altruísmo do padeiro para podermos comer pão todos os dias. Note-se, porém, como isto é diferente de pretender que nenhum mal vem ao mundo se o padeiro apenas cuidar dos seus interesses mesquinhos. É esta, porém, a tese de Milton Friedman.

O comum empresário sabe que, no longo prazo, o seu negócio não prosperará se, no dia a dia, ele espezinhar os legítimos interesses de clientes, empregados, fornecedores e poderes públicos, pela simples razão de que, muito em breve, ninguém quererá nada com ele.

Todavia, as empresas que hoje contam não se encaixam nesse figurino: a sua propriedade encontra-se disseminada por uma multidão de accionistas (dos quais apenas uma minoria detém algum poder de controlo sobre a sociedade), para além de que a gestão quotidiana se encontra entregue a uma equipa de gestores profissionais.

A teoria económica que se ensina nas escolas e divulga nos media sustenta que isso não faz a mínima diferença, mas todos nós (e também os especialistas em economia da empresa) sabemos que faz.

"Greed is good" é uma forma crua mas fiel de sintetizar as doutrinas de Milton Friedman, das quais decorreu o triunfo de uma concepção dos negócios exclusivamente justificada pela perspectiva da maximização do lucro do padeiro, ou, como agora se diz, pela maximização do valor para o accionista. Tal é, de facto, o valor supremo perante o qual todos os outros devem vergar-se: lucro sempre crescente, a todo o custo e já.

Ora, como bem sabe qualquer pessoa que gere ou geriu uma empresa, essa exigência não é realista. Os negócios mais sólidos demoram tempo a criar e consolidar. Todos passam por períodos maus. E a exclusiva obsessão com a rentabilidade pode pôr em causa os próprios alicerces do empreendimento.

Para tornear a dificuldade, o gestor-herói dos nossos tempos especializou-se em acções espectaculares que entusiasmam a imprensa da especialidade e aumentam a sua aura pessoal de implacável campeão da "criação de valor": fusões e aquisições, encerramento de fábricas ou departamentos inteiros e despedimentos em massa, tudo embalado na linguagem eufemística do turn-around, da eficiência, do outsourcing ou da deslocalização.

Como persuadir, porém, os colaboradores da empresa a esforçarem-se por aumentar contínua e exponencialmente o EBIT trimestre a trimestre, se, no fim da linha, nenhuma recompensa os espera tirando a parca satisfação de terem contribuído para a glória pessoal do seu CEO? Como Henry Mintzberg fez notar, isto é a total corrupção da própria essência do conceito de liderança.

Não assentando na criação de valor para a sociedade – em última análise, o único propósito legítimo de qualquer empresa – a única forma de apresentar lucros crescentes consiste em delapidar os activos da empresa, e, de preferência, os intangíveis. É assim que o CEO subprime (escudado no triplo A outorgado por um MBA da moda) desinveste no desenvolvimento dos colaboradores, trava a investigação de novos produtos e liquida gradualmente as marcas do seu portfolio. Quando tudo isso falha, resta a fuga aos impostos ou coisa pior.

Numa palavra, os "lucros" que ele distribui asseguram a destruição da empresa a prazo, o que, de resto, em nada o afecta. De forma que a criação de valor para os accionistas acaba por revelar-se mera criação de valor para o arrivista que eles tiveram a infelicidade de contratar.

A derrocada que ameaça o sistema financeiro mundial foi despoletada por acções que só podem ser classificadas como fraudulentas. Mas é altura de começarmos a interrogar-nos por que houve durante tanto tempo tanta complacência perante as doutrinas anti-sociais que criaram um ambiente propício ao florescimento dos comportamentos que, agora, quase todos unanimemente condenam.

Estamos apenas a começar a puxar o fio à meada.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O desenvolvimento não é o prémio da virtude

Por que são certas regiões do mundo mais desenvolvidas do que outras? O tema é complexo, de modo que começaremos pela parte mais simples.

Uma simples olhadela ao mapa-mundo permite-nos constatar que não há países desenvolvidos entre os trópicos, a menos que aceitemos classificar a cidade-estado de Singapura como um país. Curioso, não é verdade?

Armado deste conhecimento básico, um marciano que observe a Terra por um telescópico, poderá adivinhar: que a Argentina e o Chile são os países mais avançados da América Latina; que a África do Sul bate em nível de desenvolvimento toda a África Negra; e que, no continente australiano, a parte meridional está muito à frente da setentrional.

A origem desta correlação entre latitude e desenvolvimento radica, genericamente, no facto de os climas temperados serem mais favoráveis à exploração agrícola. Hoje, a agricultura desempenha um papel subordinado nas economias modernas; mas a indústria, primeiro, e os serviços, depois, instalaram-se perto das grandes aglomerações humanas pré-existentes, de modo que o passado continua a pesar imenso na distribuição espacial das economias contemporâneas.

É claro, porém, que a latitude não é o único factor geográfico relevante para explicar o nível de relativo de desenvolvimento económico. A abundância de recursos naturais, as condições climatéricas locais, a facilidade de comunicação e, em geral, a proximidade do mar, também contam – e muito. Segundo alguns investigadores, as condições geográficas explicam entre dois terços e três quartos das diferenças de níveis de desenvolvimento económico entre regiões. O resto fica para os economistas investigarem, o que ainda permite empregar muita gente.

O desenvolvimento tecnológico pode introduzir perturbações neste quadro geral, principalmente ao permitir o acesso a novos recursos naturais inexplorados ou alterar a importância relativa dos recursos existentes. Por exemplo, ao longo da Idade Média, o uso de melhores ferramentas de trabalho permitiu desbravar as florestas europeias e conquistar para a agricultura terras extensas e altamente produtivas, de modo que o centro económico do continente se deslocou progressivamente das margens do Mediterrâneo para a Europa Ocidental e Central. Transformações desta amplitude são, porém, raras e lentas.

Os economistas não gostam de reconhecer o papel decisivo da geografia na ordenação dos níveis de desenvolvimento, preferindo insistir na importância da educação, da organização e da cultura em geral como factores de crescimento. Resultará a prosperidade da instituição de atitudes e comportamentos favoráveis como a pontualidade, a capacidade de organização, a valorização do mérito, a iniciativa individual, o sentido cívico, o respeito pela lei e a curiosidade científica? Sim, mas a experiência sugere que a causalidade também funciona no sentido contrário, de modo que o impulso de fundo não poderá ser encontrado aí.

Decididamente, o desenvolvimento não é o prémio da virtude, mas de ter a sorte de estar no sítio certo, algo muito difícil de aceitar pelos cidadãos dos países avançados que se acham de algum modo superiores – seja em capacidade de trabalho ou em inteligência – aos restantes mortais.

O que ficou dito refere-se apenas à ordenação geral das regiões, não à amplitude das diferenças entre elas. A Revolução Industrial ampliou inicialmente o fosso entre países avançados e atrasados, situação que apenas começou a inverter-se na segunda década do século XX. Essa redução das discrepâncias de desenvolvimento entre países e regiões parece dever-se antes de mais à difusão das tecnologias de produção à escala do planeta, evidentemente acompanhada de uma revolução profunda nas formas de organização social nos países que haviam ficado para trás.

Logo, nada impede que Portugal se aproxime progressivamente de níveis de prosperidade típicos da Alemanha – como, de resto, tem vindo a acontecer desde há meio século – mas, a menos que ocorram catástrofes inimagináveis ou transformações tecnológicas imprevisíveis não é expectável que os ultrapasse nos próximos quinhentos anos. Quem tiver muita pressa, vai mesmo ter que emigrar.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Não há bronzeados grátis

Não pára de crescer desde meados do século XX a multidão de adoradores do Sol que, chegado o Verão, acorrem às praias em busca de luz, energia e inspiração. A concentração das populações nas cidades estimula o culto pela Natureza e, em particular, pela praia, representação palpável do paraíso terrestre, onde a humanidade, sem vestuário nem preocupações, regressa por umas semanas ao estado primitivo.

À utopia do modo de vida natural acrescenta-se a da sociedade sem classes para tornar ainda mais populares as férias na praia. A nudez é inerentemente democrática: despindo os banhistas de sinais exteriores de status, neutraliza os preconceitos sociais e promove a igualdade entre os homens.

Na prática, é claro, não é bem assim. Sendo incompleta a nudez, um fato de banho de marca distingue-se doutro comprado no Continente; e as senhoras das classes superiores fazem gala de exibir na praia colares, pulseiras e demais quinquilharia. Depois, qualquer praia tem, pelo menos dois territórios de classe bem demarcados: os toldos para um lado, os guarda-sóis para o outro. Finalmente, praias não acessíveis através dos transportes públicos adquirem, só por isso, outro pedigree.

Ainda assim, a praia permanece um espaço razoavelmente imune às transformações económico-sociais do nosso mundo. Hoje, como há cinquenta anos, uma praia consiste de mar, areia, toldos, nadadores salva-vidas, vendedores de gelados e bares de praia. Dificilmente se conceberá coisa mais obsoleta.

Como é possível admitir-se em pleno século XXI – pergunto eu – que milhares e milhares de consumidores permaneçam esticados ao sol durante dias e semanas a fio sem consumirem praticamente nada? É assim que se pensa desenvolver o país?

É certo que alguns autarcas mais azougados vêm promovendo programas de hidroginástica logo pela manhã, seguidos de chill out sessions, fresbee, speedminton e body pump ao longo do dia. Tudo devidamente enquadrado por batidas musicais difundidas para todo o areal através de poderosas colunas de som. Mas tais iniciativas são claramente insuficientes para promoverem a inadiável rentabilização da orla costeira.

Se, em muitas praias, as famílias se disponibilizam a pagar o equivalente à renda de um T0 em Lisboa pelo aluguer mensal de um simples toldo, imagine-se a receita que poderia resultar da prestação de um verdadeiro serviço integrado aos veraneantes.

Não entendo, desde logo, por que não são substituidas as tradicionais cadeiras de praia por sofás ou camas mais confortáveis. Pergunto-me, além disso, por que é que os toldos não têm acesso a cerveja e refrigerantes canalizados, ou por que não se encontram equipados com televisão por cabo e acesso à internet. E, já agora, não faria sentido facilitar a circulação das pessoas instalando escadas e tapetes rolantes que evitem penosas caminhadas pelos areais? Por que há-de a revolução tecnológica deter-se à entrada das praias?

Na praia que idealizo, uma plataforma de intranet permitiria aos consumidores encomendarem directamente massagens, gelados, bolas de berlim e outros produtos e serviços. O registo numa base de dados dos pedidos dos clientes anteciparia inclusive os seus desejos futuros. Cada consumidor disporia, bem entendido, do acompanhamento personalizado de um account manager, disponível 24 horas por dia, através do qual canalizaria os seus pedidos, sugestões e reclamações.

Esta brevíssima antevisão da praia do futuro torna evidente como a praia de hoje permanece uma espécie de enclave cubano nas nossas sociedades avançadas, um espaço de absurda nostalgia pré-moderna economicamente inviável e condenado à extinção.

A praia tem – queiramos ou não - um custo de oportunidade. Se não fosse ocupada por banhistas ociosos, seria possível construir nela casas sobre as dunas, usá-la para exercícios militares ou rasgar amplas estradas marginais.

É tempo de trocarmos definitivamente o socialismo utópico pelo capitalismo científico.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Contra o pensamento ocioso

"Já viste o carro novo dos do lado? No ano passado foram de férias para o Brasil; agora, diz que é um safari no Quénia. E ela, que só compra vestidos de marca? Não sei onde arranjam dinheiro para levarem esta vida..." O equivalente sofisticado desta tagarelice mesquinha é a crítica moralista do endividamento das famílias portuguesas. Por estes dias, toda a gente repete com ar entendido que os portugueses vivem acima das suas posses, mas eu gostaria que me explicassem que consequências práticas daí pretendem retirar.

É certo que, não sendo compensado pela entrada de investimento directo estrangeiro, o nosso défice da balança de transacções correntes assume enorme gravidade. Que fazer então para controlar os excessivos níveis de consumo e de endividamento dos particulares que contribuem para aumentá-lo? Assim, de repente, ocorrem-me algumas hipóteses: a) exortar os portugueses a pouparem mais; b) restringir a importação de bens não essenciais; c) agravar as taxas de juro; d) desvalorizar a moeda. Tudo excelentes ideias, porém impraticáveis.

Insistir na ideia de que, se os portugueses se resignassem a consumir menos, o país entraria nos eixos é, nas actuais circunstâncias, uma piedosa intenção votada ao insucesso. Certos comentadores recusam-se a aceitar que algumas formas de ajustamento dos mercados são mais difíceis do que outras; mas todos sabemos que é mais fácil aumentar salários do que baixá-los, empregar pessoas do que dispensá-las e aumentar o consumo do que baixá-lo.

E se, em vez de batermos com a cabeça nas paredes, encarássemos antes a coisa de uma perspectiva igualmente verdadeira, mas incomparavelmente mais útil? E se, em vez de dizermos que gastamos acima das nossas posses, sublinhássemos antes que produzimos abaixo das nossas capacidades? Onde a primeira formulação cria um muro psicológico que fomenta o medo e paraliza a vontade, a segunda oferece uma orientação positiva e mobiliza o esforço colectivo. A forma como se diz as coisas tem consequências.

Temos um problema de produtividade, que não se deve nem a trabalharmos pouco nem a investirmos de menos, antes a tirarmos medíocre partido dos recursos produtivos, em boa parte por os concentrarmos em actividades económicas de reduzido potencial. A boa notícia é que, na presente década, a nossa estrutura produtiva tem vindo a sofrer uma rápida transformação, sem paralelo desde os anos 60.

Em poucos anos, a natureza do turismo alterou-se e os têxteis foram substituídos na liderança das exportações por máquinas e aparelhos eléctricos e serviços às empresas. A balança tecnológica tornou-se positiva. Em decorrência, o país conquistou quotas de mercado, apesar de uma evolução pouco favorável dos custos salariais unitários.

O défice externo, agora deteriorado por efeito da crise internacional, reduziu-se de forma progressiva, embora insuficiente. Podemos confiar nas empresas e nos mercados para completarem esse ajustamento, que políticas erradas no passado atrasaram. Mas deveríamos questionar se o Estado português estará a fazer tudo o que deve para facilitar as mutações em curso.

Os desafios superam-se potenciando a capacidade transformadora das nossas forças, não carpindo as fraquezas. É mais produtivo mobilizar as pessoas para fazerem coisas do que para se queixarem. É mais fácil mobilizá-las com uma visão coerente do futuro do que com ameaças de empobrecimento e resignação.

Entre nós, o nível do debate económico é frequentemente rebaixado por insistentes prédicas acerca dos vícios e virtudes dos nossos concidadãos, porque esse tipo de abordagem não exige nem estudos nem conhecimentos especializados, apenas requer capacidade retórica.

A mudança de perspectiva que recomendo não equivale a privilegiar o optimismo sobre o pessimismo, mas a valorizar o pensamento produtivo em detrimento do pensamento ocioso.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Quando uma borboleta bate as asas na China, o Ricardo chega atrasado a um cruzamento

“Estes tipos não percebem nada de futebol.” – explicou Marlon, futebolista brasileiro exilado nas Ilhas Faroé, ao jornalista Alex Bellos – “Nem sequer se benzem antes de começar o jogo!”

Os nossos comentadores desportivos são gente demasiado moderna para comungar de tais teses. De modo que, em vez de dizerem: “O Deco não se benzeu, mau sinal!”, dizem antes: “O 4-2-3-1 do seleccionador alemão anulou a equipa portuguesa”. Na verdade, são tão supersticiosos como o tal Marlon.

Acredito que o fascínio do futebol resulta de ninguém perceber ao certo como é que a coisa funciona. Tal como na filosofia, o espanto é o ponto de partida, complementado por um irresistível desejo de encontrar para o resultado uma explicação plausível.

A tese reducionista ingénua sustenta que a equipa vencedora será por força a que incluir os melhores jogadores, esquecendo-se de que, se isso fosse verdade, a Liga dos Campeões de 2004 teria sido ganha pelo Real Madrid, não pelo FC Porto. Conscientes desta verdade trivial, a maioria dos entendidos deposita antes a sua confiança na táctica escolhida (4-3-3 ou 4-4-2?), mas todos sabemos que os jogadores só se dispõem desse modo no terreno quando a bola vai ao centro. Assim que o jogo começa, a táctica varia de minuto para minuto ao sabor das acções e reacções das duas equipas.

Apesar de jogado num rectângulo de reduzida dimensão por apenas 22 jogadores, o futebol é um jogo de enorme complexidade, dadas as infinitas combinações que admite. Uma equipa que estava a jogar maravilhosamente, desune-se subitamente e nunca mais se reencontra. Outra, pela qual já ninguém dava nada, transcende-se e, sobrevivendo a três remates do adversário ao poste, ganha no último minuto com um golo talvez marcado em off-side. Não há dois jogos iguais, nem há dois golos iguais.

É certo que, a posteriori, o resultado de um jogo de futebol parece uma coisa tão lógica e natural que quase somos levados a crer estar escrito que as coisas teriam forçosamente que ter sido como foram. A verdade, porém, é que a mínima incidência do desafio pode afectar de modo decisivo todo o seu decurso. Por isso, o resultado final depende de uma variedade de não sei quês, que não só ninguém consegue prever com antecipação, como, mesmo a posteriori, é muito difícil entender plenamente. Perde-se por quase nada, do mesmo modo que, doutras vezes, se ganha sem saber como nem porquê.

Tal como o futebol, também a economia é, por maioria de razões, um sistema dinâmico complexo. Os comportamentos dos agentes individuais propagam-se de forma imprevisível através de uma longa cadeia de interacções, produzindo resultados inesperados e súbitas mudanças ao nível agregado. A instabilidade é a regra.

A teoria económica tradicional, porém, presume que os mercados se ajustam continuamente em pontos de equilíbrio determinados pela intersecção da oferta com a procura, e postula que qualquer desvio será anormal e temporário. Armada de modelos microeconómicos simplistas, atreve-se a prever, por exemplo, que a fixação de um salário mínimo aumentará o desemprego, embora, excepto se o seu valor for muito elevado em proporção do salário médio, a tese não seja corroborada experimentalmente.

Uma boa parte da teoria económica ensinada nas escolas assenta em bases empíricas limitadas e em generalizações abusivas, o que não coíbe certos opinadores de nela se apoiarem para proclamar os seus preconceitos ideológicos, como de certezas inquestionáveis se tratasse.

Alguns treinadores impõem às suas equipas esquemas tácticos muito rígidos; outros, gritam continuamente do banco instruções pontuais. Os melhores, ao invés, esforçam-se por preparar os seus futebolistas para saberem reagir psicológica e tacticamente às situações de jogo mais variadas e imprevisíveis.

No mundo empresarial passa-se algo semelhante; mas, disso, os economistas ortodoxos não sabem nem querem saber.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Europeus de segunda

Os êxitos europeus do Benfica nos longínquos anos 60 fizeram os portugueses sentir pela primeira vez que não só eram parte da Europa, como até poderiam esperar vir a ter nela um papel de algum relevo.

Durante três décadas da Taça dos Campeões, qualquer equipa com talento podia aspirar ser a melhor da Europa, de modo que não só as mais poderosas nações, mas também os portugueses, os holandeses, os escoceses, os romenos e os jugoslavos puderam nalgum momento vencer, sem falar que também gregos, belgas e suecos atingiram a final da competição. Esqueceu-se hoje a importância que o futebol teve no desenvolvimento de uma consciência europeia.

Mais ou menos na mesma altura em que o Tratado de Maastricht entrou em vigor, as regras do futebol europeu foram alteradas, reduzindo drasticamente as chances dos clubes não originários dos países mais poderosos da União. Desde então, apenas FC Porto e Ajax chegaram à final.

Clubes que nunca foram campeões nos seus países são admitidos na competição, ao mesmo tempo que muitos campeões nacionais são deixados à porta. Uma maioria de europeus assiste de fora, pagando para ver os outros jogar. De ano para ano restringe-se o núcleo dos candidatos à vitória. Franceses e alemães já não conseguem chegar às meias-finais, e, nos últimos dois anos, três dos semi-finalistas foram ingleses. Pior, a crescente concentração do poder económico favorecida pelas competições europeias cava também ao nível nacional um fosso entre os da frente e os restantes. Nalguns países, emergem campeões crónicos; noutros, as ligas são, na prática, disputadas entre apenas dois clubes.

Como existe uma elevada correlação entre as despesas dos clubes com jogadores e o seu sucesso desportivo, é grande a tentação de gastar acima das posses. Chegámos assim ao ponto em que o prejuízo anual do Chelsea é superior às receitas somadas de todos os clubes portugueses de todos os escalões. Todavia, não existe qualquer correlação entre sucesso desportivo e sucesso financeiro, o que explica a insolvência de um número crescente de clubes. Farense, Salgueiros e Boavista não são excepções na Europa do futebol: são, cada vez mais, a regra num sistema que caminha a passos largos para a ruína.

Algumas soluções aventadas para resolver os problemas financeiros dos grandes clubes institucionalizam a distinção entre europeus de primeira e europeus de segunda. A saúde financeira do futebol de topo pode ser assegurada pela criação de uma Super Liga reservada aos principais clubes dos maiores países, em que eventualmente entrará um clube português (mas só um, notem bem!). Quem achar que o futebol é um entretenimento semelhante ao circo, poderá gostar deste modelo em que os párias se orgulham por verem os Nanis, os Robens ou os Ibrahomivics a jogar nos clubes da casta superior europeia.

Mas isso é esquecer que o envolvimento popular com o futebol vai muito para além do mero espectáculo. Participação, pertença, identidade, rituais, experiências partilhadas, memória colectiva – eis o que o futebol significa para os povos europeus. É degradante imaginar-se sequer que um portista se resigne a torcer pelo Chelsea só porque lá jogam ex-futebolistas do seu clube.

Muito poucas pessoas entendem verdadeiramente o que está em causa no Tratado de Lisboa, mas, no fundo, há uma grande similaridade entre os rumos da Europa política e os da Europa do futebol. Num e noutro caso, a ausência ou diluição das instâncias verdadeiramente europeias de poder conduz ao triunfo sem freios dos poderes fácticos, mesmo os menos respeitáveis.

O presente estado do futebol interessa a um reduzido número de futebolistas de topo e aos interesses obscuros que se movimentam em torno da compra e venda dos seus passes. Mas prejudica os adeptos, os investidores, a quase totalidade dos clubes e a esmagadora maioria dos jogadores de todos os escalões.

Também no futebol, são necessários novos caminhos para a Europa.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

O jovem, esse desconhecido

O que é a Sociedade Lomográfica Internacional? Tem uma Embaixada em Portugal? Onde fica localizada? Cada vez que dirijo estas perguntas a uma plateia, descubro sempre duas ou três pessoas, invariavelmente jovens, que conhecem as respostas. Quando às outras, ficam com cara de ponto de interrogação. E o leitor, sabe do que estou a falar?

Em que pensam e o que sabem, afinal, esses seres exóticos a quem damos o nome de jovens? O que lhes vai no espírito? Como ocupam os seus tempos livres?

Ou ainda: qual a importância de tantos e tantos dos nossos jovens ignorarem quem foi o primeiro Chefe de Estado democraticamente eleito, quantos países integram a União Europeia e se o Partido Socialista dispõe ou não de maioria absoluta no parlamento?

Aparentemente, os jovens desconhecem factos que os políticos reputam importantíssimos. Sê-lo-ão mesmo? E, ademais, invertendo o sentido do questionamento, não será também verdade que os políticos ignoram coisas que os jovens consideram de enorme relevância? O simples facto de necessitarem de recorrer a inquéritos por amostragem para saberem o que pensam os cidadãos júniores parece sugerir que sim.

De tão obcecados que andamos com a globalização, tendemos a esquecer um outro fenómeno de importância ao menos idêntica que corre a par dela. Refiro-me à crescente fragmentação dos modos de vida, dos interesses pessoais e das culturas.

Há uma escassa trintena de anos, os críticos sociais preveniam-nos contra os perigos da crescente uniformização e massificação dos modos de vida. Em vez disso, porém, a sociedade sofreu um acelerado processo de parcelamento, de modo que, após uma primeira fase de individualismo extremo, assistiu-se ao reagrupamento das pessoas em grupos relativamente pequenos, multiformes e instáveis. Alguns sociólogos chamam-lhes tribos urbanas: tribos, porque o cimento que as une não é primordialmente de natureza convencionalmente sócio-demográfica, mas cultural; urbanas, porque, ao contrário das comunidades primitivas assentes em laços de sangue e na partilha de um território, estas são fruto de escolhas individuais e a filiação nelas é cancelável a qualquer momento.

O lado maravilhoso desta nova realidade é a aliciante combinação de liberdade e pertença que ela proporciona ao cidadão, que já não se sente aprisionado a vínculos familiares, religiosos, ideológicos, profissionais ou geográficos limitativos do desenvolvimento da sua personalidade.

O problema é que, do mesmo passo, a sociedade esfarela-se em micro-comunidades que, embora as mais das vezes convivam pacificamente, pouco têm a dizer umas às outras, crescendo entre elas vastos espaços de indiferença. Paradoxalmente - ou talvez não - apenas trivialidades como o futebol, o culto das celebridades ou a cobertura mediática de crimes odiosos parecem hoje capazes de proporcionar aos cidadãos um terreno de interesses comuns. Muitos observadores inferem daqui erradamente que só essas superficialidades mobilizam as pessoas, mas esse equívoco resulta de os seus interesses mais profundos não se exprimirem no espaço público tradicional.

A primeira vítima do esvaziamento em extensão e profundidade do espaço público é, naturalmente, a política, na exacta medida em que a linha de demarcação entre “nós” e “eles” se torna mais fluida, provisória e até, para alguns, carente de sentido. Daí a preferência contemporânea dos jovens pela micro-política em desfavor das mobilizações de massa movidas por grandes princípios.

A preocupação com as consequências deste estado de coisas para a saúde da democracia é, pois, compreensível e legítima. O ponto de partida do debate não deveria, porém, ser aquilo que os jovens não sabem, mas aquilo que eles sabem e os restantes desconhecem, porque é aí que se oculta o potencial de transformação positiva da sociedade.

Voltando ao princípio, o que é então a Sociedade Lomográfica Internacional que mencionei a abrir este texto? Ora, nem queiram saber... Até porque nem toda a gente tem o direito de saber.