quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Guerra e paz no Jardim do Éden digital

Richard Feynman explicou no longínquo ano de 1959 que, marcando os átomos que cabem na cabeça de um alfinete com “0” e “1”, é possível enfiar nela toda a informação jamais produzida pela humanidade. Na prática, ainda não chegámos lá, mas já se pode transportar os arquivos da CIA no bolso. Não tarda, circularão sob a ponta da unha do meu dedo mindinho.

Há coisa de dois anos, houve enorme alarido em Inglaterra por ter sido encontrado num táxi um CD contendo milhões de registos de contribuintes individuais. Essas coisas acontecem porque é cada vez mais fácil registar, processar, copiar e transferir informação, e impedir isso só é possível proibindo, entre outras coisas, os telemóveis, os cartões de crédito, o RFID, as câmaras de video, os mini-gravadores, os computadores e a internet.

O fenómeno Wikileaks é apenas mais uma consequência das implacáveis leis da economia digital. Tentativas para travar as fugas de informação por meios legais ou tecnológicos são de eficácia muito duvidosa.

Os optimistas vêm nisto a aurora de uma nova era de democracia ilimitada, em que os governantes serão obrigados a prestar contas aos cidadãos eleitores do mínimo passo que derem no exercício dos seus poderes. Más notícias, pois, para os políticos que beneficiam interesses particulares em prejuízo do colectivo e, desde logo, para aqueles que o fazem a troco de subornos. Como pode alguém duvidar da excelência da sociedade transparente, tão óbvios são os seus benefícios?

Mais devagar, porque a promessa de completa transparência pode não ser destituída de inconvenientes. Desde logo, os factores que ameaçam os segredos do Estado são os mesmos que anulam a privacidade dos indivíduos. Depois, nem todos os segredos são crime, nem toda a revelação é útil, nem toda a verdade é inocente e nem toda a mentira é pecado.

Como sabemos da nossa vida pessoal, a exigência de total transparência nos relacionamentos não gera mais franqueza, mas mais dissimulação. A reacção dos que mandam perante um risco acrescido de fuga de informação será deixar menos pistas: as pessoas verdadeiramente poderosas não assinam nada, mandam os outros assinar. Mas essa defesa em última análise não as protegerá, porque, no mundo digital, tudo o que se faz ou diz deixa uma marca. Estamos perante uma escalada: mais revelação provoca mais esforço para camuflar, o que por sua vez induz o recurso a técnicas mais sofisticadas de vigilância, e assim sucessivamente.

Cada grande avanço das tecnologias da comunicação desencadeou no passado transformações e conflitos em larga escala. A invenção de Gutenberg deu um extraordinário impulso à divulgação do conhecimento, mas o acesso ao que a Bíblia verdadeiramente dizia contribuíu para duzentos anos de guerras religiosas. As gazetas favoreceram a liberdade de expressão e assentaram as bases da democracia moderna, mas alimentaram o fogo das grandes revoluções populares. A rádiodifusão fez chegar a cultura às grandes massas iletradas, mas foi um instrumento privilegiado de propaganda totalitária.

A história sugere, pois, que, quando a informação é libertada, segue-se a disputa pelo seu controlo. A questão importante é o que se consegue fazer com essa informação e, desde logo, quem está em condições de fazer algo com ela. Quando se diz que vivemos na era da informação, isso significa antes de tudo que há informação a mais e capacidade a menos para interpretá-la e dotá-la de sentido. Nas palavras de T.S. Eliott: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”

Compreender uma determinada informação exige tempo, esforço e capacidade interpretativa, condições que por definição não existem quando constantemente somos bombardeados por alegados factos, dados e números. A má política como o mau jornalismo caracterizam-se hoje acima de tudo pela capacidade de nos confundir a capacidade de julgamento com meias-verdades descontextualizadas que desavergonhadamente exploram as limitações cognitivas do cidadão – não apenas as do ingénuo e iletrado, mas até as do mais culto e perspicaz.

Somos assim alimentados quotidianamente por pedaços de informação avulsos, quantas vezes enquadrados em narrativas capciosas, interesseiras ou meramente imbecis. E pouco interessa que mais tarde eles sejam desmentidos, porque, como a sabedoria popular ensina e a neurociência demonstra, as primeiras impressões são as que perduram.

Chegamos assim à constatação de que só a intermediação competente e responsável da imprensa nos permitirá tanto extrair o que há de bom como conjurar o que se afigura ameaçador neste universal desvendamento de todos os segredos, sejam eles públicos ou privados. Infelizmente, a digitalização da informação que impulsiona a transparência ameaça em simultâneo a sobrevivência dos jornais e revistas, que são precisamente os media mais susceptíveis de promoverem a reflexão sobre a informação revelada.

Não devemos esperar que a disponibilização instantânea de um repositório de informação praticamente infinito sobre tudo o que sucede nos ofereça o Paraíso na terra. Quando o acesso à informação em bruto se torna ilimitado, a batalha pelo controlo das mentes faz-se menos pela gestão dos segredos do que pelos processos de filtragem que condicionam o modo como a realidade é entendida. É aqui, portanto, que cabe focalizar as nossas atenções.

(Publicado no Jornal de Negócios em 29.12.10.)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Trampolinice epidémica: prevenção, detecção e cura

Os portugueses tendem a ser solícitos e carinhosos com familiares e amigos, porém suspeitosos ou mesmo hostis perante estranhos.

Este facto de observação quotidiana é confirmado por estudos comparativos periodicamente conduzidos pela OCDE: não só a confiança interpessoal é muito baixa em Portugal, como tem vindo a deteriorar-se mais rapidamente do que nos outros países nas décadas recentes. Falo, note-se bem, da confiança das pessoas umas nas outras, não nas instituições políticas.

Além de contribuir negativamente para a felicidade de cada qual, a desconfiança torna as pessoas mais propensas a infringirem as normas de civilidade com o argumento de que os outros também o fazem: “por que hei-de ser sério se andam todos a roubar?” A desconfiança estimula a prevaricação, que por sua vez justifica mais desconfiança, alimentando um círculo vicioso que nos amargura a existência e aprisiona no mundo mesquinho do ressentimento e da vingança.

Uma sociedade assim tende a organizar-se em bandos que entre si disputam negócios e cargos políticos. A vantagem comparativa deles resulta de conseguirem impor dentro de si normas capazes de assegurarem a confiança mútua de que a sociedade em geral carece. Não admira, pois, que, ainda segundo a OCDE, a desconfiança interpessoal ande frequentemente associada a altos níveis de corrupção.

Vemos assim todos os dias crescer o cancro da suspeição, numa guerra de todos contra todos que envolve até as mais altas esferas do Estado. Em situações de emergência colectiva como a actual revela-se em todo o seu esplendor a carência de propósitos partilhados nacionais, submergidos como o são pela multiplicidade de tresloucadas reivindicações particulares, cada um das quais se vale de todas as armas ao seu alcance para prevalecer sobre as restantes. Mais depressa os portugueses se agarram uns aos outros para que ninguém deixe de afogar-se do que se unem para fazer face aos ataques externos de que são alvo.

A falta de confiança nos outros prejudica, além disso, a eficiência económica, na medida em que, agravando a percepção do risco e da incerteza, aumenta os custos associados às transacções comerciais e desincentiva a cooperação entre indivíduos e empresas.

O Dilema do Prisioneiro sugere que, na ausência de elevados níveis de confiança, as decisões baseadas no interesse próprio podem produzir resultados desastrosos para o conjunto da comunidade. Nessas circunstâncias, quando dois indivíduos têm que decidir independentemente entre a cooperação e a agressão, uma lógica implacável impele-os para a segunda alternativa e a trampolinice triunfa.

Mas os estudiosos da Teoria dos Jogos descobriram que, dadas certas condições, há uma solução cooperativa para o Dilema do Prisioneiro quando ele é jogado repetidamente. Segundo Robert Axelrod, a melhor estratégia é retaliar prontamente os comportamentos anti-sociais, esquecendo porém as ofensas recebidas no passado. Por outras palavras, consiste em cooperar sem ser parvo. Porém, para que seja viável penalizar as violações da confiança, é preciso que as pessoas se encontrem frequentemente, que os seus comportamentos possam ser facilmente observados e que os castigos sejam suficientemente dissuassores. Eis porque tendemos a comportar-nos melhor no círculo dos nossos familiares e amigos e pior quando nos encontramos com estranhos em situações ocasionais.

Que podemos então fazer para dissuadir as coligações de trampolineiros e fomentar a cooperação benéfica? Primeiro, não dar tréguas às associações de malfeitores que o Estado português presentemente tolera (quando não protege ou subsidia). Segundo, fomentar a auto-organização dos cidadãos a todos os níveis.

Quanto mais vasto o raio dos nossos relacionamentos regulares, mais longe chegará a confiança. Sabemos que nas sociedades tradicionais os estranhos tendem a ser olhados com grande desconfiança. Ao invés, a sociedade moderna, ao ampliar os horizontes dos indivíduos, simultaneamente propicia e exige o alargamento da confiança para além do estreito círculo da família e dos vizinhos, abrangendo outras regiões, etnias, nacionalidades e culturas.

Mas a confiança só pode subsistir se for preservado o sentido de comunidade, assente já não em valores paroquiais de base geográfica ou genética, mas em afinidades de estilos de vida e propósitos partilhados. O individualismo, as desigualdades e o desenraizamento social não favorecem a confiança entre as pessoas, por isso ela depende também do modo como as organizações privadas e públicas, formais e informais, espontâneas ou planeadas, estimulam ou dissuadem o relacionamento entre os cidadãos, o que nos ajuda a entender o papel corrosivo que a precariedade das relações humanas tem sobre uma convivência saudável e produtiva.

Paroquialismo e precariedade prejudicam a confiança. Abertura de espírito e associação livre e duradoura tendem a estimulá-la.

(Publicado no Jornal de Negócios em 17 de Novembro de 2010)


quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A reforma final: para acabar de vez com a falácia da soberania popular

A democracia é a suprema superstição contemporânea. Ou foi: já ninguém acredita nela, embora muitos continuem a fingir que sim.
As campanhas eleitorais suscitam no povo fastio ou bocejo, de que se vinga refugiando-se nas praias ou nos shoppings no dia do fatídico dever cívico. Quando, como no Brasil, é obrigatório votar, põe a cruzinha no maior palhaço que se submeter ao sufrágio.

Como bem sabemos, a democracia é, além do mais, prejudicial à boa condução dos negócios públicos. Os países têm dificuldade em adoptar políticas económicas racionais, porque os políticos cedem continuamente às pressões das massas para aumentarem a despesa pública e baixarem os impostos. Já Aristóteles nos ensinou que a democracia conduz infalivelmente ao triunfo do populismo e da demagogia.

Qualquer pessoa racional e bem informada tem, por isso, que concordar: a democracia é um obstáculo ao bem-estar e à felicidade colectiva, e persistir nessa teimosia obsoleta conduz-nos ao abismo.

Sucede, porém, que a suspensão da democracia país a país defrontar-se-ia com resistências - algumas sentimentais, outras reflexo dos interesses instalados. Veja-se o que sucedeu quando, há pouco tempo, uma voz esclarecida timidamente alvitrou "a suspensão da democracia por 6 meses". Os media - apesar de acreditarem tão pouco na democracia como eu ou o leitor - encabeçaram a algazarra por uma razão que todos entendemos: a chinfrineira ajuda a vender jornais e a assegurar audiências, estando o povo como está viciado em grosseiras picardias. Abolir a democracia, mesmo temporariamente, dar-lhes-ia cabo do negócio.

Felizmente, há uma solução melhor, que está a ser paciente e meticulosamente aplicada. A parte mais difícil foi convencer os países a aderirem à Zona Euro. "Ipso facto", eles cederam voluntariamente ao Banco Central Europeu a sua soberania em matéria de política monetária e cambial. Anexado ao Euro veio o PEC, invocando com indiscutível razoabilidade a necessidade de proteger a zona monetária do comportamento fiscal eventualmente irresponsável dos seus membros. Resultou daí uma limitação adicional da política económica, esta ao nível orçamental.

O Banco Central Europeu é uma instituição "sui generis": muito mais independente em relação aos poderes políticos do que qualquer banco central; menos transparente nas suas decisões; e, por último, estatutariamente vinculado a preocupar-se apenas com a inflação e não com o desemprego ou o crescimento.

Como tem a Zona Euro funcionado? As discrepâncias de níveis de desenvolvimento e os choques externos assimétricos conduziram a desequilíbrios persistentes dos saldos orçamentais, dos saldos comerciais, dos custos salariais e das taxas de inflação entre os países-membros. A crise financeira mundial com início em 2007 transformou-se em 2008 numa profunda recessão que, ao degradar as receitas dos impostos e impulsionar as despesas com medidas anticrise, fez disparar, primeiro, os défices públicos e, depois, os níveis de endividamento em toda a União.

Eis, pois, a janela de oportunidade que qualquer cidadão europeu consciente e responsável aguardava. Liquidada a réstia de margem de actuação que sobrava aos estados nacionais europeus, todo o poder efectivo de governação económica está hoje de facto concentrado no BCE e em instituições europeias não responsáveis perante o voto popular como a Presidência Europeia, a Comissão Europeia e o Ecofin.

Aproveitando o estado de debilidade das finanças públicas dos países-membros (principalmente os da periferia económica), trata-se agora de incumbir a Comissão de realizar avaliações regulares da situação e de criar um mecanismo eficiente de governação. Accionado um alerta, a Comissão emitirá recomendações sobre a forma de corrigir os desequilíbrios. Em casos considerados graves, a Comissão poderá declarar o país-membro em "situação de desequilíbrio excessivo", determinando "medidas correctivas" propostas por um "painel de peritos" com "um profundo conhecimento técnico sobre a realidade económica do país". Quem não cumprir à risca essas medidas estará sujeito a penalizações, indo até à perda do direito de voto nas instituições comunitárias. Por uma feliz coincidência, a larga maioria dos actuais governos da Europa apoia esta transformação. É claro que amanhã poderão ser derrubados e substituídos por outros, mas então, com o Tratado da União alterado, será já tarde para voltar atrás.

Aprovado o novo regime de governação económica da UE, os contestatários poderão espernear, manifestar-se, promover motins; decretar greve geral por 6 meses; ou trocar de governo dia sim, dia não, que isso em nada modificará as circunstâncias. Zapatero mostrou perceber a que níveis de impotência estão desde já reduzidos os governos nacionais quando declarou o seu apoio à greve geral que teve lugar em Espanha. Quem ainda não tiver entendido só tem que olhar para a Islândia e para os países bálticos para saber o que no futuro espera os descontentes: ou se submetem ou são despromovidos a sem-abrigo.

Confio que, enfim governados por sábios insensíveis aos clamores da rua, nos aguarda um futuro risonho. O mundo é hoje demasiado complexo para admitirmos que as sociedades estejam dependentes dos caprichos de eleitorados ignorantes em grande medida parasitas do Estado Social. Talvez não haja emprego para todos, mas a verdade é que nem todos querem trabalhar. Talvez alguns se escandalizem com as desigualdades económicas, mas é preciso premiar o mérito. Os que estão a mais, tarde ou cedo serão forçados a aceitar que, como lapidarmente proclamou o Reverendo Malthus: "Não há lugar para eles no banquete da Natureza."

(Publicado no Jornal de Negócios em 20.10.10)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Para que serve afinal a educação?

Pois não é estranho? Como é possível, num país onde há tantas opiniões como cabeças, toda a gente concordar com a importância da educação para o desenvolvimento e com o seu papel insubstituível para assegurar a competitividade da economia? É caso para desconfiarmos da bondade da tese, visto a superstição ter usualmente mais adeptos que a verdade.

Não resta qualquer dúvida de que a educação aumenta as hipóteses de sucesso profissional dos indivíduos: quanto maior o nível de escolaridade, melhor o vencimento e menor o risco de cair no desemprego. Portugal é, de resto, um dos países onde esse efeito é mais acentuado, como ainda há dias foi revelado por um estudo da OCDE. Ao nível microeconómico são pois evidentes os benefícios da educação, justificando-se que o Estado invista na sua generalização para fomentar a igualdade de oportunidades.

Surpreendentemente, porém, não é claro que, ao nível global da economia, mais educação cause mais crescimento. É sabido que existe uma elevada correlação entre o produto per capita de um país e a qualificação escolar da sua população. Correlação, todavia, não equivale a causalidade. É a educação que determina a riqueza de uma sociedade, ou, ao invés, é essa riqueza que estimula a busca de mais educação? O menos que se pode dizer é que, ao cabo de décadas de investigação aturada, a evidência econométrica do impacto da educação sobre o crescimento é algo trémula, e tanto menos convincente quanto mais avançamos para níveis superiores de escolaridade.

Será então a educação um luxo, um bem como qualquer outro sem particular relevância para o desenvolvimento das nações? A ser assim, o consumo de educação não seria mais nem menos decisivo para o desenvolvimento do que a fruição da poesia, do cinema, das viagens ou do futebol. Mas, nesse caso, por que haverá o Estado de canalizar ano após ano recursos colossais para financiar um sistema educativo universal e gratuito?

A isto, pode opor-se duas objecções. A primeira é que, como afirma Amartya Sen, a educação e outros bens similares (tais como a liberdade individual e social, a saúde ou a segurança pessoal) são o próprio propósito do desenvolvimento antes de serem um instrumento de desenvolvimento. A educação vale por si própria, sem necessitar de justificações adicionais para comprovar a sua bondade. Não é desejável porque causa crescimento, mas porque tem um impacto directo sobre o bem-estar, na medida em que habilita os seus destinatários a fruirem plenamente da sua condição de cidadãos de sociedade civilizadas.

A segunda objecção é que a ausência de evidência empírica associando categoricamente a educação ao desenvolvimento pode dever-se a limitações das ferramentas de análise e não à inexistência de um nexo causal. Os economistas acreditam que o verdadeiramente importante é o “capital humano” acumulado por uma determinada sociedade, não o investimento em equipamentos e pessoal docente, o qual pode ser pouco eficiente ou mal orientado. Mas não é fácil medir com precisão esse capital humano. Dificuldades ainda maiores resultam de o impacto da educação sobre o crescimento ser lento (uma geração demora décadas a formar) e ínvio (múltiplas variáveis inter-relacionadas intervêm para tornar um país mais próspero).

Reconheçamos que os níveis de escolaridade podem não ser muito importantes para o desempenho de certas tarefas que apenas exigem uma qualificação especializada, tais como cozer à máquina peças de vestuário. Mas a sua ausência pode obstaculizar a aquisição de novas capacidades quando as antigas se tornam obsoletas. Isto é verdade ao nível pessoal como ao colectivo, visto que educação gera versatilidade nos indivíduos, nas empresas e nas economias; e que versatilidade favorece por sua vez predisposição para inovar ao mesmo tempo que esconjura o receio da mudança e do futuro. Por outras palavras, a educação favorece a adopção de novas tecnologias – algo que sabemos pelo menos desde Adam Smith.

A primeira conclusão de tudo isto é obviamente que a análise econométrica não tem as respostas todas (nem talvez venha jamais a tê-las), pelo que outros métodos de investigação podem revelar-se mais profícuos. A segunda, que continuamos a saber pouco sobre a mecânica do desenvolvimento, sobre o modo como múltiplas variáveis interagem para gerá-lo e, em particular, sobre o papel desempenhado por causas extra-económicas como a educação. A terceira, que devemos recusar os argumentos falaciosos que só aceitam como bom aquilo que comprovadamente contribua para o crescimento do produto.

A liberdade, a educação, a igualdade de oportunidades, a justiça ou a saúde são desejáveis independentemente da contribuição que possam dar para potenciar o crescimento. O facto de eventualmente acabarem por dá-la deve ser considerado como um bónus suplementar, não como fundamento e condição sine qua non da sua valoração positiva, pois é o crescimento que deve estar ao serviço delas e não o contrário.

(Publicado no Jornal de Negócios de 22.9.10)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Pensando o impensável: e se o crescimento tivesse chegado ao fim?

Fomos educados na convicção de que o crescimento é um facto da vida tão natural como o ar que respiramos. Perguntamo-nos quanto irá a economia crescer, não se ela irá crescer, porque, tirando alguns episódios passageiros, isso nos parece fatal como o destino.

Nem sempre foi assim. Há apenas 200 anos, Malthus contestava a possibilidade da melhoria continuada das condições de vida com base na sua famigerada lei da população segundo a qual a produção de subsistências aumenta em proporção aritmética, ao passo que o número de bocas a alimentar progride geometricamente. A cada breve surto de prosperidade seguir-se-iam fomes e epidemias que assegurariam o retorno à situação de partida.

Malthus tornou-se motivo de chacota, mas convém recordar que o seu modelo corresponde muito razoavelmente às condições que prevaleceram até ao século XVIII. Foi precisamente na sua época que as condições tecnológicas se alteraram o suficiente para que o crescimento contínuo e sustentado se tornasse possível. Por outras palavras, o maltusianismo explicou bem o passado, mas falhou na predição do futuro, dado que a revolução agrícola dos últimos séculos se revelou suficientemente poderosa para sustentar um crescimento da população sem paralelo na história da humanidade.

Resistiu todavia entre os economistas a convicção de que o aumento da riqueza se defrontaria mais tarde ou mais cedo com limites naturais ou sociais. Ricardo acreditava que o estado estacionário chegaria quando o lucro fosse esmagado pela renda da terra, factor de produção escasso por natureza. Marx concordou, mas pensava que a alteração do regime de propriedade resolveria o problema. Mill acreditava que apenas a exportação de capitais para as regiões mais atrasadas do planeta atrasaria por algum tempo o momento fatal.

Tal como Mill, também Keynes antecipava sem ansiedade particular o advento do estado estacionário, antes encarava com optimismo os muitos benefícios que ele traria. “O melhor estado para a natureza humana”, escreveu Mill, “é aquele em que, não havendo pobres, ninguém deseja ser mais rico ou tem razões para temer ser deixado para trás pelos esforços de outros que procuram passar-lhe à frente.”

O tema ausentou-se durante largas décadas das cogitações dos economistas, para reemergir após o primeiro choque petrolífero. Hoje, às tradicionais preocupações com a explosão demográfica e a pressão sobre os recursos naturais (principalmente os não renováveis) acrescentaram-se os riscos decorrentes da rapidíssima extinção de espécies vegetais e animais e do aquecimento do planeta. Na sua maioria, porém, os economistas tendem a acreditar que a tecnologia resolverá o problema, ou seja que os ganhos de eficiência no aproveitamento dos recursos serão suficientemente rápidos para impedir o seu esgotamento e travar a destruição do nosso eco-sistema.

Inversamente, alguns autores julgam detectar sintomas de que entrámos já na era da estagnação económica persistente. Porém, mesmo que assim fosse, passaria muito tempo até podermos estar certos disso. Alguns países e algumas actividades cresceriam por algum tempo mais que outros, sugerindo que talvez esses exemplos pudessem ser imitados. O primeiro sinal seguro seria a multiplicação de conflitos violentos pelo controlo dos recursos, a começar pela água.

Embora seja cedo para se tirar uma conclusão, podemos especular sobre as consequências do estado estacionário para as nossas sociedades se e quando ele vier. Na visão optimista partilhada por Mill e Keynes, a estagnação equivaleria à admissão de que o problema económico se encontraria resolvido, propiciando a reorientação dos esforços colectivos para o desenvolvimento cultural, moral e social da humanidade. Idealmente, teriamos sociedades tão prósperas como hoje, mas incomparavelmente mais estáveis, mais cultas, mais igualitárias e menos agressivas.

Mas seria possível garantir elevados níveis de emprego sem crescimento? Ausente a meta do crescimento a todo o custo, tornar-nos-iamos decerto menos tolerantes para com as desigualdades que alegadamente são o seu preço. A competição perderia parte dos seus atractivos. As políticas distributivas tornar-se-iam mais populares (talvez demasiado), visto que a economia tenderia a ser encarada como um jogo de soma zero. Tenderia a questionar-se a liberdade de concorrência, a começar pela internacional. É de temer que menos crescimento implicasse também menor fermento cultural e menor abertura de espírito.

Acresce que o actual estado de desenvolvimento não é suficiente para que a distribuição equitativa dos recursos proporcione um nível de vida aceitável à população do planeta que permanece na pobreza extrema. Por isso, mesmo na hipótese pouco provável de que os países desenvolvidos se resignassem ao seu grau presente de bem-estar, é óbvio que nem chineses, nem indianos, nem (por maioria de razões) africanos aceitariam deixar de crescer.

Com tantas dúvidas e perplexidades, uma coisa é certa: uma sociedade de crescimento zero seria muito diferente da actual, e a transição para ela, ao frustrar expectativas acumuladas ao longo de gerações, dificilmente se faria de forma pacífica.

(Artigo publicado no Jornal de Negócios de 25.8.10)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Acaso, mérito e superstição

A probabilidade de o famoso polvo Paul ter acertado nos resultados de sete jogos consecutivos do Mundial (admitindo que a sua escolha foi aleatória e que não houve batota) era de apenas 0,8%. Por conseguinte, não parece muito razoável atribuir-se apenas à sorte a sua eficácia preditiva.

Mas a questão está mal posta. Deveríamos antes inquirir qual era a probabilidade de que algum dos centos de esquemas disparatados montados em todo o mundo para prever os resultados - mas de que, por terem falhado, não chegámos sequer a ter conhecimento - acertasse em cheio. Ora, estamos em condições de afirmar que uma oficina de cem polvos trabalhando afincadamente no problema teria uma probabilidade superior a 50% de garantir que um deles adivinhasse a sequência.

O cálculo das probabilidades sugere que não precisamos de recorrer a hipóteses transcendentes para explicar o desempenho do polvo Paul. Ele só parece extraordinário porque, devido ao modo como as notícias são difundidas, não tomámos conhecimento de todas as outras tentativas que falharam.

Trata-se de apenas mais um exemplo da falácia da evidência oculta, muito comum quando se recorre a um milagre para racionalizar qualquer tipo de superstição. Conta Cícero que, quando mostraram a Diágoras ex-votos de navegantes salvos do naufrágio por terem invocado os deuses, ele perguntou: "E onde estão as imagens dos que morreram afogados apesar de implorarem o auxílio dos deuses?"

Visto por outro prisma, o caso do polvo Paul pode insinuar no nosso espírito uma dúvida angustiante: como poderemos saber se o êxito desta ou daquela pessoa neste ou naquele empreendimento se deveu ao mérito, e não ao puro acaso?

O grande físico Enrico Fermi perguntou certa vez ao general Groves como definiria ele um grande general. Groves respondeu-lhe que classificaria como um grande general aquele que conseguisse triunfar em cinco batalhas consecutivas. Fermi perguntou-lhe depois qual seria, em sua opinião, a proporção de grandes generais. Groves respondeu: três em cada cem. Ora, se a vitória numa batalha depender de factores puramente aleatórios, a probabilidade de vencer uma batalha é de 1/2 e a de vencer cinco consecutivas é de 1/32. "Tem razão, general - disse-lhe Fermi -, são três em cada 100. Mas a explicação está na probabilidade matemática, não no génio militar."

Se onde está "generais" pusermos "CEO" e onde está "vitória em cinco batalhas consecutivas" lermos "resultados positivos em cinco anos fiscais seguidos", haverá motivo para temer que por vezes nos precipitemos ao explicar o bom desempenho de uma empresa pela excelência da sua gestão. Talvez o mérito do idolatrado CEO consista apenas em estar no lugar certo no momento certo, beneficiando de uma conjugação prolongada de circunstâncias particularmente favorável.

O sucesso de Paul no Mundial de 2010 não é garantia de presciência futura. A bem da preservação da lenda, os donos tiveram, por isso, a sensatez de resguardá-lo de ulteriores fracassos, reformando-o compulsivamente. Já na vida empresarial parece raro tal bom senso: não só o sucesso ocasional é com demasiada frequência tomado como indisputável sinónimo de mérito, como ainda o polvo do momento, para além de ser premiado com um bónus estratosférico, ainda por cima nos inflige longas e insípidas entrevistas onde nos confidencia os segredos do seu êxito.

Os atenienses da Grécia Antiga tiravam à sorte os membros da sua assembleia, e, porventura iludidos pelas astúcias da aleatoriedade, não se deram mal com o sistema. É possível que, demasiadas vezes, façamos o mesmo com os nossos líderes empresariais, embora não estejamos disso conscientes.

Nada disto prova que a identificação do mérito autêntico é impossível; apenas que, em virtude da perturbação introduzida por factores fortuitos, ela é tremendamente mais difícil do que tendemos a supor. O real valor de algo ou alguém não pode ser avaliado de longe, antes exige um escrutínio rigoroso que envolva a compreensão das circunstâncias particulares e das relações de causa e efeito intervenientes.

Faz algum sentido acreditar-se que a concorrência selecciona automaticamente as melhores ideias, os melhores indivíduos e as melhores práticas; infelizmente, ela pode tardar a produzir esse resultado. De modo que, enquanto aguardamos que as coisas se clarifiquem, sempre teremos que conviver com malformações de todo o tipo: ideias estúpidas, falsos milagres económicos, pseudo-génios, fraudes plausíveis, incompetentes felizardos, escolhas que ameaçam a ecologia do planeta, modos de vida que minam a responsabilidade colectiva, e por aí fora.

Num mundo crescentemente complexo, o ruído confunde-se com a informação genuína e nós somos constantemente enganados pelo acaso mascarado de necessidade. Nunca terá sido tão necessário o exercício da capacidade crítica para nos protegermos das superstições contemporâneas que nos assaltam a cada esquina.

(Artigo publicado no Jornal de Negócios de 28.7.10)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O método Tom Sawyer da produtividade nos serviços

Em qualquer sistema de self-service, incluindo os super ou hipermercados, o cliente faz uma parte do serviço outrora a cargo de empregados contratados. Noutros tempos, ele dirigia-se a um balcão, pedia o que desejava e recebia as compras já embaladas e prontas a transportar. A retirada do balcão permitiu ou obrigou o cliente a ir directamente buscar o que pretendia. Nas estações de serviço não havia sequer balcão, de modo que parece-nos hoje absolutamente natural que cada qual trate de encher o depósito, verificar a pressão dos pneus e limpar os vidros.

Os estabelecimentos de fast-food conseguem economias significativas de mão-de-obra eliminando o serviço de mesa. Quando optamos pelo take away, ajudamo-los a pouparem no espaço do estabelecimento. Pessoas usualmente esquisitas aceitam mesmo levantar a mesa no McDonald's sem qualquer contrapartida.

Quando as empresas compreenderam que os consumidores concordavam sem demasiada resistência desempenhar certos trabalhos a troco de conveniência, rapidez e economia, o sistema self-service generalizou-se progressivamente no sector dos serviços. Ao levantarmos dinheiro ou fazermos pagamentos no ATM, contribuímos graciosamente para a maior eficiência dos bancos. O mesmo se passa quando aderimos ao home banking. Trocando os extractos em papel pelos digitais, o banco deixa de ter que imprimi-los e enviá-los pelo correio, ficando a nosso cargo procurar a informação com o nosso computador e recorrendo a telecomunicações pagas com o nosso dinheiro.

A IKEA vende mobiliário barato porque a montagem final corre por nossa conta. A economia conseguida corresponde euro por euro às horas de trabalho não contabilizadas que dispendemos no processo. Parte da fábrica foi transferida para nossa casa sem que disso nos apercebessemos. Tornámo-nos funcionários subservientes das empresas que nos vendem produtos e serviços. Trabalhamos para elas sem horários, nem salários, nem direitos laborais. Mais: se o serviço funcionar mal, muito provavelmente a culpa será nossa.

O sistema consistente em pôr o público a trabalhar gratuitamente (ainda por cima pagando para isso) está generalizado na televisão e na rádio, cuja programação consiste cada vez mais em fóruns, reality shows, talk shows, concursos e entrevistas de rua. É o modelo Tom Sawyer de pintar a cerca da Tia Polly cobrando à garotada da rua maçãs ou berlindes pelo direito a dar umas pinceladas.

O aumento de produtividade de parte do sector dos serviços consiste em grande medida em persuadir-nos a suportarmos uma carga de trabalho cada vez maior; trabalho esse que, deixando de ser feito por empregados, assegura às empresas poupanças muito significativas. Inevitavelmente, porém, cada vez dispomos menos de genuíno tempo livre. Toda a gente se queixa de que esteve muito ocupada no fim de semana. A fazer o quê? Ora, a percorrer os corredores do supermercado, a lavar o carro, a fazer transferências bancárias, a esperar na bicha do fast food, a ensinar às crianças o que não aprenderam na escola, a reparar a impressora seguindo as instruções do call-center ou a montar estantes. Tanta modernidade deixa-nos esgotados.

Na agricultura e na indústria, produtividade significa fazer mais com os mesmos recursos. Como é mais prático e económico comprar que fazer em casa, as pessoas deixam de plantar couves no quintal e de tricotar camisolas. Os cidadãos diminuem a auto-produção e o auto-consumo e conquistam tempo livre.

Paradoxalmente, em muitas actividades de serviço, produtividade significa fazer menos com os mesmos recursos. Como comprar tudo feito é mais caro e pior que fazê-lo, as pessoas resignam-se a trabalhar gratuitamente para as empresas que lhes vendem os serviços. Voltam a crescer a auto-produção e o auto-consumo, agora adornados de uma inovação linguística concebida por gurus que pensam muito à frente: somos hoje todos prosumers ou, se preferirem, “prosumidores”. Em resultado, resta-nos menos tempo livre para a família e para os amigos ou, em alternativa, menos horas de sono.

Se, como pretendia Adam Smith, o preço de qualquer coisa inclui todo o esforço e maçada que ela nos custa, então a deterioração da qualidade de um serviço esconde um aumento real do seu preço. Não sendo esse facto considerado nas estimativas da contabilidade nacional, a inflação será subestimada e tanto a produção como os salários reais serão sobretimados. Este problema tem preocupado os economistas, embora mais pelo lado da melhoria da qualidade do que da degradação dela. Desde meados dos anos 90, as estatísticas americanas consideram que a contínua subida da qualidade em produtos como computadores, automóveis e electrónica de consumo equivale a uma descida dos preços. Em resultado dessa revisão de metodologia, os EUA acrescentam todos os anos 0,5% ao crescimento do seu produto per capita, o que contribuíu para criar a ilusão de que a América cresce mais depressa do que a Europa.

Está certo o raciocínio que faz equivaler uma melhoria de qualidade a uma descida do preço, mas não se entende que não ocorra uma correcção do PNB no sentido inverso quando aquilo que se compra é, como sucede em tantos serviços, cada vez pior. Ignorá-lo é esconder um factor de empobrecimento que todos sentimos no dia a dia.

O PNB não é um facto objectivo, é uma construção teórica orientada por uma interpretação sobre o modo como a actividade económica afecta o bem-estar da sociedade. O resultado obtido depende, por exemplo, do modo como se calcula o índice de preços, se trata o problema da qualidade dos bens, se contabiliza os serviços do sector público, se valoriza a igualdade económico-social ou se avalia a importância da conservação dos recursos naturais.

Decidamente, todos ganhariamos se os economistas dedicassem algumas horas a estudar Mark Twain na faculdade.

(Artigo publicado no Jornal de Negócios de 30.6.10)

Oráculos e outras ferramentas de análise económica


Dois cães passeiam na Feira do Relógio. Um deles surpreende-se: “Olha, um osso!” O outro encolhe os ombros e passa adiante: “Não pode ser: se lá estivesse, já alguém o teria encontrado.” Este segundo cão é um economista; ofereço-me para ser o primeiro, em representação de todo o bom senso que há no mundo.

A hipótese dos mercados eficientes sustenta, na sua versão extrema, que toda a informação relevante para a valorização de um título financeiro se encontra já incorporada no seu preço, de modo que é impossível saber-se mais do que aquilo que ele nos diz. Se alguém julga vislumbrar um osso – ou seja, uma oportunidade de investimento lucrativo por descobrir – isso não passa de uma ilusão.

Esta opinião é mais popular do que possa parecer. Quando tantos opinaram, a propósito da especulação contra as dívidas soberanas dos países da periferia europeia, que é inútil argumentar contra o mercado, querem com isso significar que ele está certo por definição, dada a sua imbatível capacidade para processar correcta e instantaneamente toda a informação relevante. Nada do que se possa dizer acrescentará algo a esse juízo perfeito e definitivo.

Há duas estratégias alternativas para determinar o valor de um dado título financeiro. A primeira consiste em adoptar o sentimento do mercado; a segunda, em analisar cuidadosamente os elementos susceptíveis de influenciar esse valor. A hipótese dos mercados eficientes significa que as duas se equivalem, de modo que não vale a pena queimar as pestanas a recolher e estudar muita informação.

As pessoas que compram e vendem activos financeiros aprendem nos MBAs que o mercado tem sempre razão. Logo, agem em consonância. O seu trabalho consiste em usar o capital, o crédito e a reputação das instituições que os empregam para gerar lucros. Se acertarem, receberão em poucos meses mais do que os seus pais ganharam em toda a vida; se perderem, o despedimento é o pior que lhes pode suceder.

Se o preço de um activo é determinado pelo sentimento do mercado, então o que interessa é tentar adivinhar esse sentimento, não apurar se ele será correcto. Ora, a melhor forma de fazê-lo é aderir ao pensamento convencional, pensar o que todos pensam, seguir acriticamente a última moda sem a questionar, funcionar como elo passivo da cadeia de tolices que a cada momento os tolos gostam de ouvir e repetir.

“Ah!”, recordam-nos os sábios, “mas, se os mercados especulam contra as dívidas soberanas dos países da periferia europeia é porque, indiscutivelmente, eles se encontram numa situação financeira difícil!” Certamente, toda a loucura especulativa, seja ela eufórica ou depressiva, toma como ponto de partida alguma oportunidade ou preocupação racional. O problema é que, com demasiada frequência, a loucura dos mercados financeiros se alimenta a si própria, até ao momento em que o último tolo dispende o último cêntimo e o processo se interrompe abruptamente. A períodos relativamente breves de irracionalidade seguem-se, pois, outros de retorno à normalidade. Dir-se-ia, então, que há fortes incentivos para resistir ao comportamento de rebanho.

Acontece que é mais arriscado errar contra o rebanho do que errar com ele. A menos que se preveja com exactidão o ponto de viragem – e não há nenhuma técnica infalível que permita fazê-lo – ir contra o sentimento do mercado é na verdade a coisa mais perigosa que um trader pode fazer, por isso as carteiras de títulos da esmagadora maioria dos gestores acabam por assemelhar-se como duas gotas de água. Keynes, por exemplo, aprendeu à sua custa que o mercado pode persistir no erro durante tempo suficiente para levar à insolvência os investidores mais criteriosos.

O mesmo tipo de cegueira dita o comportamentos dos analistas das agências de rating. Nicolau Santos relatou há tempos no Expresso a cómica conversa que manteve com um deles, especialista em economia portuguesa, cujas fontes de informação se reduziam a uma selecção limitada artigos de jornais. Tudo o que não encaixasse na sua visão obtusa pura e simplesmente não lhe interessava.

O resultado desta forma de conduzir as transacções financeiras está à vista. O sistema financeiro arrastou o mundo para um buraco, forçando uma intervenção de emergência dos estados para evitarem a catástrofe. Em resultado, uma boa parte do endividamento foi transferido do sector privado para o público. Ironicamente, o sector financeiro usa agora as ajudas de que beneficiou para especular contra a dívida pública, ou seja, contra todos nós.

Por que sucede isto? Os desequilíbrios financeiros internacionais persistem, com a poupança e os excedentes comerciais concentrados num punhado de países. Em consequência, não há condições para que a procura privada, seja de consumo ou de investimento, se expanda nos restantes. Há muito dinheiro entesourado, mas escassas oportunidades de aplicação rentável. A manutenção de baixas taxas de juro cria condições favoráveis à especulação, acirrada pelos riscos da dívida de alguns estados.

A voz do mercado diz-nos hoje que os estados devem adoptar políticas restritivas.

Ao invés, a voz da razão diz-nos que subsiste um forte risco de recessão ou, pelo menos, estagnação prolongada. Alerta-nos para a necessidade de os apoios às economias não serem retirados enquanto a procura privada não reanimar. Faz-nos ver que nem todas as dívidas poderão ser pagas. Recomenda, por isso, a renegociação internacional das dívidas e a aceitação de níveis de inflação um pouco mais elevados como forma de desvalorizá-las. Sugere um empenhamento na eliminação dos excedentes persistentes pelo menos tão grande como aquele que é dirigido contra os défices persistentes. Last but not least, recomenda a aceleração das reformas das instituições financeiras e do seu funcionamento.

Por que raio haveriamos nós”, perguntou recentemente Robert Skidelsky, “de tomar mais a sério o sentimento do mercado do que quando ele nos conduziu ao grande deboche de 2007?” Invocar a autoridade do mercado como quem consulta um oráculo para justificarmos as nossas preferências ou cegueiras é uma forma pouco séria de debater. Nenhum suposto determinismo económico pode ilibar-nos da responsabilidade de fazermos as nossas próprias escolhas.

(Artigo publicado no Jornal de Negócios de 2.6.10)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Fomos à Índia por mar porque não havia aviões

O Presidente da República iniciou o seu discurso comemorativo do 25 de Abril apontando a crescente desigualdade como o problema número um do país. Minutos depois, concluíu que o país deve apostar no mar.

Poucos observadores notaram a evidente contradição, sem dúvida porque entre nós não se exige coerência entre o diagnóstico e o propósito, nem se espera que ele se traduza em acção consistente. É por isso que qualquer emaranhado de lugares comuns e intenções piedosas é aceite como um diagnóstico válido. Excita mais a retórica, mesmo que nulamente fundamentada, ou seja, mesmo que permaneça misterioso o modo como as intenções anunciadas contribuirão para a resolução dos problemas de que padecemos.

Alguém que pouco depois subiu ao governo explicou-me um dia que essa minha insistência em pedir que objectivos e estratégias sejam deduzidos de uma análise aprofundada da situação releva de um vício positivista.

Isto só por si seria tema para um artigo, mas, infelizmente, agora não temos tempo.

Certo comentador de sucesso embirra por sistema com os rumos da economia portuguesa. Não gosta dos eucaliptos porque secam os poços, nem das celuloses porque poluem os rios. Não gosta dos têxteis porque pagam salários baixos. Não gosta do turismo porque deu cabo do Algarve. Não gosta do golfe porque consome muita água. Não gosta dos portos porque os contentores tiram a vista às cervejarias, nem dos aeroportos porque custam muito dinheiro.

Que espécie de economia deveríamos então construir? Muito fácil, ensina ele: indústrias limpas. Por exemplo, jornais – excepto se são feitos com papel e transportados por aviões ou se alimentam campanhas sujas. Para além disso, é claro, há o mar, uma riqueza limpa, imensíssima e incompreensivelmente desprezada.

Se o nosso mar fosse muito rico em recursos pesqueiros, o prato nacional não seria o bacalhau, que habita a milhares de quilómetros. Apesar de a nossa costa ser extensa, há portos naturais em maior quantidade e qualidade na Galiza do que em todo o Portugal. A energia das marés poderia resolver-nos muito problemas, mas ignora-se ainda quando os avanços tecnológicos viabilizarão a sua utilização em larga escala. Há espaço para o desenvolvimento da piscicultura no alto mar, mas faltam conhecimentos e estruturas empresariais.

Está visto que este nosso mar não é de rosas, de modo que, feitas as contas, a importância dele para a economia resultará antes de mais do modo como saibamos aproveitar a nossa situação geográfica para nos inserirmos nas redes logísticas do comércio mundial – mesmo que isso incomode as cervejarias com vista para o oceano. Esta sólida realidade deve, porém, ser complementada com o entendimento de que, hoje, tão importantes para esse propósito como as ligações marítimas são-no as aéreas. Não é por lhe faltar uma letra que o ar vale menos que o mar.

Ora, desse lado, as notícias não são fantásticas. A fusão da British Airways com a Iberia colocou a TAP numa posição difícil. Historicamente, os britânicos sempre privilegiaram na Península a aliança com Portugal em detrimento da Espanha, mas, agora, ficámos de lado neste projecto de domínio da navegação aérea atlântica. Qual é o futuro da TAP? Como e quando será privatizada? Quem serão os seus donos? Que alianças daí resultarão? Como assegurar que delas não resultarão consequências negativas para a competitividade do país?

É possível que alguém tenha a resposta e guarde o segredo a sete chaves, mas os partidos não querem saber, os media não perguntam e nós interrogamo-nos.

Sucede que o novo aeroporto de Lisboa foi, no essencial, projectado para dotar a TAP de um hub à altura das suas ambições transcontinentais. Sem uma ideia clara sobre o futuro da TAP – ou, sequer, sobre se haverá um futuro para ela – quem quererá investir nessa infraestrutura?

Deveríamos todos meter na cabeça que os aeroportos internacionais são as infraestruturas mais importante que o país tem. Para o entender, exige-se apenas o pequeno esforço de imaginar a desgraçada situação a que ficaríamos reduzidos se não existissem.

Hoje tratámos da água e do ar. Ficam para uma outra ocasião a terra e o fogo.

(Publicado no Jornal de Negócios de 5.5.10)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Fantasia, empreendedorismo e desenvolvimento

Tal como seu irmão Pedro, Henrique operava uma empresa de corso entre o estreito de Gibraltar e o Sul de Marrocos. Após a tomada de Ceuta, o comércio de ouro através do Sará foi naturalmente desviado para outras praças marroquinas, deixando Henrique a sonhar com a possibilidade de atingir directamente a origem do metal precioso navegando ao longo da costa de África.

Essa rota comercial nunca fora explorada antes de forma sistemática devido a dificuldades relacionadas com os baixios ao longo da costa, com a ausência de povoamento humano numa longa extensão e com o regime de ventos que dificultava as viagens de regresso. Mas, em 1434, Gil Eanes atingiu o Cabo Bojador em expedição organizada por Henrique, não conseguindo porém fazer cativos – uma meta muito importante, tanto pela receita que propoporcionava como por permitir recolher informações sobre a localização das zonas produtoras do ouro.

Sem receitas, as explorações rumo ao sul careciam de um modelo de negócio viável. Parte do problema foi resolvido com a descoberta em 1436, na Pedra da Galé, de uma numerosa colónia de leões marinhos, cuja pele e óleo rendiam bom dinheiro. Era fraca recompensa para tão arriscados trabalhos, mas, ainda assim, melhor que nada.

Finalmente, em 1443, Nuno Tristão descobriu perto do Cabo Branco um pequeno conjunto de ilhas habitadas onde era fácil aprisionar os locais e trazê-los para serem vendidos como escravos. Numa das ilhas foi edificada a feitoria de Arguim que, em ligação com uma povoação continental próxima, se tornou num dinâmico entreposto onde um cavalo se trocava por dez cativos. Assim se criou um negócio sustentável, capaz de financiar a continuação das expedições rumo às terras dos negros e às fontes do ouro. O movimento regular de navios intensificou-se e acelerou-se o progresso em direcção ao Sul.

Os descobrimentos portugueses tiveram, pois, a sua origem em actos de pirataria esporádicos que a pouco e pouco assumiram a consistência de uma organização quasi-empresarial. Tendemos a pensar que os esquemas grandiosos começam de forma grandiosa. Mas ninguém na época poderia supor que a busca de ouro e escravos conduziria, por uma série de efeitos em cadeia, à exploração sistemática do Atlântico, à descoberta das Américas, ao comércio marítimo com a Índia, a China e o Japão, e, finalmente, à progressiva decadência do Islão, à submissão da Ásia à Europa e ao triunfo do capitalismo à escala global.

Não é preciso acreditar que Henrique concebera desde o primeiro momento um grandioso plano para tornear a África, desviar o comércio das especiarias e atacar o Islão pela retaguarda – lenda que a investigação não confirma – para entender que na base dos descobrimentos ao longo da costa de África esteve um ousado esforço de imaginação e vontade.

Os ganhos que Henrique de início obteve não eram muito significativos no conjunto dos vastos negócios de um homem que, além de ser Grão-Mestre da poderosa Ordem de Cristo e Duque de Viseu, detinha, entre outros, os monopólios da pesca do atum no Algarve, do fabrico e comércio do sabão e da navegação para as Canárias. O mero ganho económico não explica o entusiasmo pelas navegações atlânticas, sobretudo tento presente quão elevado era o risco e incertos os lucros.

Recordar esta estória pode porventura inspirar-nos alguns pensamentos úteis para os dias de hoje. A administração quotidiana de uma empresa, centrada na resolução de problemas triviais, é já de si uma tarefa altamente exigente, pouco tempo sobrando para conceber e pôr em prática novos projectos. Os recursos dedicados à inovação são retirados aos lucros actuais da empresa na mira de ganhos futuros cuja probabilidade não pode ser estimada. Não há nisto, reconheça-se, nada de financeiramente racional.

O gestor comum cuida de resolver problemas ou de eliminar factores negativos. O empreendedor entusiasma-se com a possibilidade de fazer o que nunca ninguém fez: a sua motivação não é remendar, mas transformar. Este impulso pode ter as mais variadas origens – afirmação social, espírito competitivo, realização pessoal, alguma loucura – do que não sobra dúvida é que ele é extra-económico.

Uma economia equilibrada, estável e bem administrada reproduz-se eternamente tal qual, não se desenvolve. O desenvolvimento vem de fora da economia, espicaçado pelo aguilhão da fantasia, do espírito de aventura e do optimismo imoderado. Um país macambúzio, cujos fazedores de opinião mesquinhamente se entretêm a apoucar toda e qualquer iniciativa que não provenha dos mais poderosos interesses instalados, não tem condições para progredir significativamente.

Perceber isto é identificar o inimigo.

(Publicado no Jornal de Negócios de 7.4.10)

segunda-feira, 29 de março de 2010

PIIGS versus FUKD: dilemas do pensamento económico provinciano

É a situação financeira portuguesa comparável à da Grécia? Mais do que responder-lhe directamente – não é – importa compreeender que ambas, e também as da Espanha, da Irlanda e da Itália, têm causas comuns. Nesse sentido, tendo em conta o peso conjunto dos países envolvidos, não estamos perante um problema português, estamos perante um problema europeu.

Nas origens da presente situação encontra-se o desenho do sistema monetário europeu, cujas deficiências são hoje quase universalmente reconhecidas. Mas, se o consenso crítico é novo, não o são as objecções, expressas a tempo e horas por muitos e reputados economistas, com destaque para os americanos Robert Mundell e Paul Krugman e, entre nós, para João Ferreira do Amaral. Sustentavam eles, já então, que as disparidades entre os diversos países componentes da zona euro ameaçavam criar mais e não menos instabilidade monetária e financeira.

A essas críticas responderam na altura os politicos do velho continente e a Comissão Europeia com uma mão cheia de estudos argumentando que o euro traria substanciais ganhos de crescimento, comércio externo e emprego.

As dificuldades desde muito cedo experimentadas por Portugal deveriam ter funcionado como sinal de alerta. Em vez disso, recorreu-se a justificações ad-hoc de carácter predominatemente moralista, tendentes a culpar o comportamento supostamente irresponsável dos consumidores e do Estado.

Ora, o que se passou em Portugal era perfeitamente previsível à luz da mais elementar teoria económica: baixando rapidamente os juros, aumentou como consequência directa e imediata o endividamento dos particulares, das empresas e do Estado, ao mesmo tempo que baixava a poupança interna. Rareando a poupança interna, os bancos foram buscá-la ao exterior, daí resultando o rápido crescimento do endividamento externo. Tudo muito simples e fácil de entender.

Como se isso não bastasse, um outro choque externo de grandes proporções afectou quase em simultâneo a economia portuguesa: a entrada em força das exportações chinesas na Europa, complementada pelo livre acesso ao mesmo mercado dos países do leste. Sabe-se que essa circunstância afectou de modo desigual os países da União Europeia – menos os mais desenvolvidos, mais os da periferia económica e geográfica.

Mercê de uma estrutura económica frágil e pouco qualificada, a indústria portuguesa viu-se quase de um dia para o outro a competir com concorrentes chineses com custos laborais muito mais baixos e soçobrou. A Grécia sofreu menos de imediato, dados o grande peso que na sua economia têm os serviços ligados aos transportes marítimos e ao turismo e a sua fraca integração comercial na União Europeia. A Espanha, pelo seu lado, beneficiou transitoriamente de um brusco afluxo de capitais do Norte da Europa dirigidos ao imobiliário de vocação turística. Mas o problema de base estava lá, à espera de revelar-se.

O caso português é também sintomático na medida em que confirmou a impossibilidade em que os países europeus vítimas de choques assimétricos se encontravam de reagirem adequadamente. A fraca competitividade nacional não tem uma solução simples, muito menos rápida. Trata-se de qualificar as empresas e os trabalhadores de molde a habilitá-los a competirem em condições muito vantajosas, um esforço que só em finais da primeira década do século começou a produzir resultados visíveis, mas insuficientes. Entretanto, o défice externo conduziu ao aumento da dívida do país ao estrangeiro.

Ora, a integração na zona euro privou Portugal de instrumentos de política económica que o ajudassem a reagir às suas dificuldades. Não dispomos de política monetária própria, visto que não controlamos nem a quantidade de moeda em circulação, nem a taxa de juro, nem a taxa de câmbio, e a própria política orçamental encontra-se fortemente condicionada pelo impropriamente chamado Pacto de Estabilidade e Crescimento.

Tem-se falado muito do ganho de competitividade que Portugal poderia obter desvalorizando a sua moeda (se acaso ainda tivesse uma), mas a verdade é que isso apenas lhe permitiria ganhar algum tempo enquanto completa o processo de modernização da sua estrutura económica. Mas parece evidente que a taxa de juro deveria ser mais alta para podermos estimular a poupança e dissuadir o consumo excessivo. Nestas circunstâncias, alguns economistas trocam a discussão racional da política económica por sermões moralistas, antecipadamente votados ao fracasso, a favor da moderação e dos bons costumes.

Esta experiência de impotência nacional causada pelo modo como o sistema monetário europeu foi concebido e implementado, que nós temos vivido ao longo da última década, é agora partihada pelo conjunto dos países europeus depreciativamente designados por PIIGS (Portugal, Ireland, Italy, Greece, Spain). Mas é indispensável entender-se que a crise mundial apenas agravou o problema, não o criou.

Vivemos desde a última metade do ano passado a segunda fase da crise económica mundial revelada no fatídico mês de Agosto de 2007. O pior parece ter sido evitado a partir do momento em que intervenções massiva dos governos permitiram deitar mão a sistemas bancários à beira do colapso e estimular a procura intervindo em sectores e empresas e lançando investimentos públicos de emergência.

Um a um, os países começam a sair da recessão técnica, mas o crescimento permanece anémico e o desemprego não interrompeu a sua marcha ascendente. Em resumo, a situação permanece crítica e o paciente não está em condições de sair dos cuidados intensivos.

Eis, porém, que por todo o mundo se ergue um coro de protestos contra o rápido crescimento do endividamento dos estados e uma exigência de medidas urgentes para controlar a situação. Em resposta, Obama anunciou um programa de drástica redução da despesa pública nos EUA até ao final do seu mandato, ao mesmo tempo que a Comissão Europeia impôs aos membros da zona euro uma rápida contracção dos défices registados em 2009.

O centro das atenções deslocou-se, assim, para o problema das dívidas de países (também chamadas dívidas soberanas). As primeiras vítimas foram pequenos países europeus exteriores à zona euro, a começar pela Islândia, vítima de um verdadeiro acto de pirataria moderna. Seguiram-se-lhe a Lituânia e a Hungria, onde a União Europeia e o Banco Central Europeu orquestraram intervenções discretas e rápidas a instâncias dos bancos credores.

Com a Grécia, porém, o drama deslocou-se para o interior da zona euro. Ignora-se ao certo qual foi o déficite das contas públicas gregas em 2009 e nos anos anteriores, mas ninguém dúvida que foi enorme e que está descontrolado. A União Europeia quer a todo o custo que desça para os 3% no prazo de quatro anos, uma tarefa decerto impossível. Declarações de políticos europeus irresponsáveis e de especuladores interessados na subida do juro da dívida grega lançaram de novo o pânico nos mercados financeiros internacionais, com reflexos imediatos nas bolsas de todo o mundo.

Se a Grécia tivesse uma moeda própria, recorreria sem dúvida à política cambial e ao ajustamento da taxa de juro directora para começar a corrigir a situação. Como está amarrada ao euro, exige-se-lhe que ponha ordem na casa ao mesmo tempo que se lhe proibe que o faça. Acresce não estarem previstas nem no Tratado de Maastricht nem nos estatutos do BCE eventuais medidas de socorro a países membros em situações excepcionais.

Surge uma nova versão da teoria do dominó. A eventual bancarrota da Grécia aumentará a pressão sobre Espanha, Portugal e Itália e, em seguida, sobre outros países a braços com grandes desequilíbrios, tais como o Reino Unido e os EUA. Renascerão as dúvidas sobre a solvabilidade de grandes bancos, a começar pelos principais credores dos países em dificuldades.

A solução, pretendem os políticos conservadores de mão dada com os economistas ortodoxos, é inverter rapidamente a deterioração das contas públicas e regressar aos sãos princípios do equilíbrio orçamental. Quanto ao resto, argumentam, a retoma deverá basear-se na expansão do sector privado, não no investimento público.

Há aqui um perigoso paralelo com o que sucedeu na Grande Depressão dos anos 30, quando, aos primeiros sinais de estabilização, a retirada prematura dos apoios públicos à actividade económica provocou um novo e prolongado agravamento da situação. Travar bruscamente as ajudas governamentais quando tudo indica não estarem reunidas as condições para a retoma do consumo e do investimento privados é correr o risco de provocar o caos económico e político à escala mundial.

É necessário começar por afirmar com toda a clareza que, embora importante, a dívida não é tudo. Em primeiro lugar, o aumento do endividamento não é a causa dos problemas, mas um mero sintoma. Em segundo lugar, se o que conta é o nível da dívida em proporção do produto, uma quebra acentuada do produto pode contribuir para agravar ainda mais a situação ao contrair os recursos que permitiriam pagá-la. Em terceiro lugar, se às persistentes quebras do consumo e do investimento privado sem fim à vista somarmos a da despesa pública, o mundo pode entrar em colapso.

Todavia, não se pode negar que o endividamento, embora necessário de imediato, hipoteca as hipóteses de crescimento a longo prazo. Segundo Ken Rogoff, o crescimento de um país é seriamente afectado quando a sua dívida pública ultrapassa o patamar dos 90% do produto. Mais endividamento agora implica necessariamente mais impostos no futuro, a menos que ela não seja paga ou que a inflação a desvalorize.

Não podemos sobreviver sem crescimento da dívida a curto prazo, mas tampouco podemos ter esperança num futuro risonho sem diminuí-la a médio prazo. Navegando entre Cila e Caríbdis, temos que negociar habilmente a saída dos trabalhos em que nos encontramos metidos.

Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Húngria, entre outros – tal como, de resto, os EUA e o Reino Unido – apostam tudo no crescimento das suas exportações para sairem da crise. Fazem bem, porque as baixas taxas de poupança e os desequilíbrios comerciais que os afligem não lhes deixam outra via para escapar à estagnação. O problema é que os principais países que exibem supéravites persistentes e excessivos, como a China, o Japão e a Alemanha, também pensam salvar-se exportando cada vez mais. Estamos perante uma impossibilidade lógica: se alguém exporta é porque alguém importa; ao nível global é, portanto, impossível todos crescerem por essa via.

Renasce a ilusão que em 1931 alimentou o proteccionismo: desvalorizar a moeda, fechar os mercados na medida do possível à concorrência estrangeira, congelar ou baixar salários, facilitar despedimentos, reduzir a todo o custo a despesa pública, baixar impostos são outras tantas políticas que ameaçam contrair o comércio internacional e fazer a economia mundial mergulhar de novo no abismo da recessão. Se todos seguirem a receita, não haverá forma de evitá-lo.

Há poucas semanas, quando a crise grega atingiu o seu paroxismo e os mercados financeiros abanaram, os observadores mais ingénuos ou cegos redescobriram uma das leis fundamentais da economia, cujas origens remontam a Quesnay: a cada receita corresponde uma despesa, a cada dívida um empréstimo. Não é possível imaginar-se que a desgraça da Grécia possa deixar de afectar os seus parceiros económicos. Se a Grécia tem problemas para pagar, quem lhe emprestou terá problemas para receber. Se o poder de compra dos gregos se esboroar, isso prejudicará as empresas e os países que satisfaziam a sua procura.

Os problemas dos PIIGS têm como reverso da medalha as aflições dos FUKD (France, United Kingdom, Deutschland). É de crer que, mais dia menos dia, até a Srª Merkel compreenda que não é possível exportar Mercedes se não houver importadores de Mercedes. No fim, todos seremos em maior ou menor grau FUKD, seja qual for o país onde vivemos.

Repito: não há uma crise portuguesa, nem irlandesa, nem espanhola, nem grega, tampouco americana ou inglesa – mas uma crise europeia dentro de uma crise mundial. Acreditar no contrário pode servir para alimentar a politiquice interna, mas nada mais. Como Martin Wolf há semanas escreveu: “Enquanto o BCE tolerar uma procura fraca na eurozona no seu todo e enquanto os países nucleares, antes de mais a Alemanha, continuarem a manter vastos excedentes comerciais, será impossível que os membros mais fracos escapem à armadilha da insolvência. O problema deles não pode resolver-se pela mera austeridade fiscal. Precisam de uma acentuada melhoria na procura externa do seu produto.”

O provincianismo, entendido como aquela peculiar forma de miopia que consiste em ignorar o carácter global da presente crise, é, por conseguinte, o principal problema com que nos defrontamos. Decerto, Portugal necessita de conter e reduzir o seu défice público, mas com prudência e sem precipitações. Nas actuais circunstâncias, o essencial é que não sejamos ou não pareçamos demasiado mal comportados.

Todavia, não só isso não basta como nem sequer toca no essencial. A necessidade de reformar o sistema monetário europeu deve ser decididamente assumida e colocada em cima da mesa. Isso implica, desde logo, questionar os objectivos do BCE, que agora escandalosamente secundarizam o crescimento e o emprego; exigir maior transparência no seu funcionamento; e impor-lhe a obrigação de prestar contas. Em nenhum país importante possui o banco central um tal grau de independência em relação ao poder político e nenhum outro faz tão pouco caso de objectivos não especificamente monetários.

O euro não cumpriu boa parte das promessas que fez aos europeus. Não contribuíu para melhorar o crescimento económico em comparação com outros países, tal como não reduziu o desemprego. Mais surpreendentemente ainda, como faz notar Paul de Grouwe, a sua introdução não reforçou notoriamente a sincronização entre os ciclos económicos dos países membros.

Sabe-se há muito tempo que as dificuldades que as assimetrias entre peíses ou regiões podem criar a uma união monetária podem ser superadas através do reforço da união política.

Não faz sentido submeter os países membros a uma rígida disciplina financeira sem, em contrapartida, instituir mecanismos europeus de apoio àqueles que enfrentem dificuldades particulares. Mas é claro que a atribuição ao centro de uma tal função redistributiva implica que a União seja dotada de um orçamento capaz de fazer face a essas situações, muito acima dos parcos recursos que hoje lhe são atribuídos e eventualmente financiado pela emissão de euro-obrigações.

Essa centralização orçamental deveria por sua vez ser acompanhada de um reforço dos poderes do Parlamento Europeu por forma a assegurar o controlo democrático do processo político. O primado da economia será substituído pelo da política, como é de boa regra numa democracia bem formada.

As consequências destas reformas serão complexas, difíceis e profundas. Por isso mesmo, defrontar-se-ão com uma grande oposição, mas a resposta à presente crise da Europa não poderá vir senão da política europeia.

(Artigo publicado na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique de Março de 2010)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Desconstruindo a paranóia

Boris, o personagem central de Whatever Works, último filme de Woody Allen, tem uma visão azeda sobre o mundo: a religião não passa de um negócio, os americanos elegeram um presidente negro para evitarem ter um judeu, o amor é uma vigarice, a estupidez dos jovens vai destruir a raça humana e por aí fora. Só guarda uma opinião favorável de si próprio e daquilo que possa contribuir para confirmá-la.

Pelo seu lado, Melodie traz da small town America para Nova Iorque uma concepção do mundo igualmente fechada, mas de sinal contrário: provinciana, religiosa e orientada para os chamados “valores familiares”. O mesmo se poderia dizer de John e Marietta Celestine, os pais de Melodie que, inopinadamente, fazem a sua aparição em momentos críticos do enredo.

O interessante é a facilidade com que convicções aparentemente tão sólidas se esboroam ao primeiro embate com experiências não previstas no guião ideológico dos personagens. Boris, o auto-proclamado egoísta racional, dá guarida a uma rapariga a quem não reconhece de início dotes de inteligência, sensibilidade ou beleza, envolve-se emocionalmente com ela e acaba por desposá-la. Melodie, a rapariguinha estouvada que sonha com bailes de debutantes e rapazes atléticos e tontos, apaixona-se pela suposta superioridade intelectual de Boris; Marietta descobre uma vocação artística e adere a um menage à trois; e John conclui que toda a vida desejara ser gay sem o saber.

Há aqui um evidente padrão de pronta transmutação da rigidez ideológica em simpatia pela perspectiva contrária ao mínimo contacto com outras formas de ver as coisas. Os sujeitos mais desconfiados, lá dizia o bom do Cardeal de Retz, revelam-se sempre os maiores trouxas.

Dizem-me que, embora só agora o tenha filmado, Woody Allen criou o guião de Whatever Works há umas boas três décadas. Fez bem em esperar, pois no mundo de hoje afigura-se muito mais verosímil esta estranha combinação de crispação e permeabilidade nos comportamentos humanos.

O 11 de Setembro de 2001 constituíu um marco assinalável na consolidação do estado de espírito característico da nossa época, e que é em simultâneo de credulidade absoluta e desconfiança extrema. O fascínio da imagem do primeiro avião mergulhando nas torres gémeas pode ser assim imperfeitamente verbalizado: “Se isto é possível, então nada do que possamos imaginar está fora de cogitação e todos os perigos nos ameaçam.” Predispomo-nos a acreditar em tudo o que se afigure suficientemente ameaçador, desde a gripe das aves ao aquecimento global, desde o armamento nuclear iraniano à ruína do euro, não porque nos pareça verosímil, mas precisamente porque nos parece impossível, numa recuperação do “creio porque é absurdo” que Tertuliano definia como a essência da fé.

A obsessão contemporânea com a transparência é justificada como exigência irredutível da democracia: numa sociedade verdadeiramente governada pelo povo e para o povo não há lugar para o segredo, tudo deve ser continuamente escrutinado e explicado. Mas é pelo menos estranho que o clamor pela transparência cresça em vez de diminuir quando ela é indiscutível e incomparavelmente superior àquilo que alguma vez foi ao longo da história, incluindo a mais recente. Dir-se-ia que quanto maior a transparência, maior a suspeição.

Não se trata, é claro, de uma reivindicação racional, mas de um sintoma mórbido de uma situação cultural marcada pela incapacidade colectiva de lidar com a complexidade do mundo contemporâneo, esteja em causa a concessão de um terminal de contentores, a arbitragem do futebol ou a regulação do sistema bancário internacional. As nossas vivências fragmentadas pós-modernas inspiram crenças fragmentadas. A escassez de cultura partilhada bloqueia o diálogo e rigidifica posições.

Curiosamente, o filme de Woody Allen mostra-nos que essa situação pode ser superada na condição de alguém se revelar disposto a servir de via de comunicação entre mundos hostis. Em Whatever Works esse papel incumbe a Melodie, a agente de contaminação entre culturas que não receia passar por tola.

Num mundo hegemonizado pelo cinismo, a inocência é a suprema forma de coragem. Mas o suposto tolo poderá sempre invocar em sua defesa a máxima de Bacon: “Nada torna um homem mais desconfiado do que saber pouco”. E não foi, afinal, Alberto João Jardim quem veio reconhecer que, ao cabo de todos estes anos, ainda não conhecia bem o Primeiro Ministro?

(Publicado no Jornal de Negócios de 10.3.10)

A Cidade e as Serras

Na minha geração aprendia-se a ler em livros escolares povoados por uma pitoresca galeria de figuras campesinas conduzindo carros de bois, lavrando a terra com arados ou apascentando o gado, extravagantemente misturadas com humildes santinhos de pés descalços, intrépidos navegadores de quinhentos e sorridentes guerreiros medievais. Eram mínimas as referências ao mundo urbano: praticamente não se via prédios altos, nem automóveis, nem aviões.
Esta retrógrada fantasia icónica parecia estranha àqueles que, como eu, vivendo em Lisboa, só nas férias conviviam um pouco com a vida rural, mas guardava alguma relação, ficcionada embora, com o dia a dia de uma boa parte do povo português.

Passado meio século, habitamos um país totalmente distinto: reduziu-se drasticamente a parcela da população ocupada na agricultura, dilataram-se e modernizaram-se as principais cidades, cresceram a perder de vista os subúrbios. Dir-se-ia que, na esteira do mundo desenvolvido, também nós, tarde e a contragosto, nos convertemos numa sociedade urbana.

Sucede, porém, que, segundo as estatísticas disponíveis, Portugal permanece uma sociedade comparativamente pouco urbanizada. Em concreto, somos o país da Europa Ocidental e Central com mais baixos índices de concentração urbana. Não há como pôr números nas coisas: a população portuguesa residente em áreas urbanas ronda os 37%, contra, por exemplo, 67% na Itália e 77% na Espanha. A nossa taxa de urbanização será mesmo inferior à da Albânia em um ponto percentual.

Como todas as estatísticas, também estas terão alguma margem de erro, sendo a comparação com a Albânia especialmente difícil de engolir. Mas não duvidemos que a nossa taxa de urbanização não é meramente baixa – ela é patologicamente baixa.

Acresce que o tema não traz a nossa opinião pública preocupada como deveria. Bem pelo contrário, o que frequentemente se escuta por aí são queixas contra a macrocefalia do país ou o progressivo abandono de aldeias tradicionais perdidas no cocuruto de uma serra distante.

Acontece que a persistente dispersão da população portuguesa por uma miríade de vilas e aldeias espalhadas pelo território acarreta elevadíssimos custos sociais e motiva consideráveis perdas de produtividade. Fica caríssimo ao Estado levar estradas, escolas, cuidados médicos, electricidade, água e telecomunicações a uma população tão dispersa como a nossa, ainda por cima para, no final, lhe proporcionar um serviço que não pode deixar de ser medíocre.

Considere-se, por exemplo, o caso da educação. Cerca de dois terços das escolas portuguesas tinham há pouco tempo menos que 30 alunos, e um terço menos que 10. Por comparação, a França, país do G7 com o mais baixo indicador, tinha em média 166 alunos por escola. Ora, escolas minúsculas cumprem necessariamente mal a sua função educativa, sejam quais forem os critérios de avaliação utilizados.

Ao invés, as cidades são uma forma económica de organizar a vida em sociedade, visto que, aproximando as pessoas, reduzem custos de transacção e determinam rendimentos crescentes de proximidade. As cidades são mais eficientes do ponto de vista energético, porque reduzem os custo de transporte de pessoas e bens e estimulam o recurso ao transporte público. A proximidade das pessoas facilita a circulação de informação e conhecimento, a observação e cópia de boas experiências, o debate de ideias e a inovação. Nas cidades fomentam-se complementaridades produtivas, decisivas numa era em que o crescimento depende antes de mais da cooperação entre empresas e trabalhadores qualificados orientada para o desenvolvimento de novos processos e novos produtos.

Ora, não só nós temos poucas e pequenas cidades, como as nossas áreas metropolitanas, também elas muito dispersas, se encontram por isso mesmo mal habilitadas a proporcionar os ganhos de eficiência potenciais. Cidades mais densas são cidades mais produtivas; cidades dispersas diluem as vantagens da proximidade.

A preocupantemente baixa produtividade total dos factores da economia portuguesa decorre em boa parte deste deficiente padrão de ocupação e organização do território, fonte de desperdícios e encargos adicionais tanto para o Estado como para as empresas. Todavia, a intervenção dos poderes públicos, orientada por preconceitos injustificados e condicionada pelas pressões dos interesses locais, tem não raro sido hostil ao necessário esforço de concentração e qualificação urbana.
É, por isso, oportuno lembrar que poucas áreas de intervenção encerram um tão grande potencial de melhoria da competividade do país e de redução da sua dependência energética, contribuindo ao mesmo tempo para o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos.

(Publicado no Jornal de Negócios de 10.2.10)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa e o euro

O caso é grave, na medida em que prejudica seriamente a ambição de auto-flagelação nacional, mas os portugueses têm o direito de saber a verdade.

E a verdade é que o nosso elevado nível de endividamento externo não pode mais continuar a ser encarado como um problema especificamente português. Primeiro, porque, demagogias à parte, a causa imediata do seu agravamento reside na crise financeira internacional que se propagou a partir dos EUA. Segundo, porque é comum a um grande número de países europeus, entre os quais alguns que integram a zona euro e onde vivem mais de um terço dos seus habitantes. Terceiro, porque - cúmulo do desespero! - a nossa situação está longe de ser a mais grave.

Resulta daqui que, ao contrário do que se passava há cinco anos, não estamos hoje desalinhados dos nossos parceiros europeus. Estamos no mesmo barco que eles enfrentando a mesma tempestade.

Ora, as dificuldades simultâneas e semelhantes da Grécia, da Irlanda, da Espanha, da Itália e de Portugal não podem ser consideradas obra do acaso. São inerentes a um sistema mal concebido e pior governado.

Na época em que o euro foi criado, muitos economistas (principalmente do lado de lá do Atlântico) questionaram a sabedoria de se juntarem num mesmo espaço monetário países com níveis de desenvolvimento tão diferentes, ainda para mais na ausência de mecanismos de apoio àqueles que pudessem vir a experimentar dificuldades devidas a situações particulares ("choques assimétricos", no calão dos economistas).

Face às presentes ameaças, muitos continuam a garantir que o problema é dos devedores, e que, por isso, a preocupação deve ser apenas deles. Mas será possível penalizar a Grécia sem ao mesmo tempo penalizar os investidores alemães, austríacos, franceses ou ingleses que lhes emprestaram dinheiro?

Por muito que se assobie para o ar, ninguém duvida de que, diga o que disser o tratado de Mastricht, a eventualidade de um afundamento grego obrigaria a União Europeia e o Banco Central Europeu a uma intervenção de emergência. Mas, se assim é, o melhor é agirem imediatamente, caso contrário não só a crise grega continuará a agravar-se, como crescerá a percepção de risco dos outros países em dificuldades.

E o que deveremos nós fazer?

Em primeiro lugar, proteger e reforçar a actual percepção internacional de que a nossa situação não é especialmente preocupante. Isso conseguir-se-á comportando-nos um bocadinho melhor do que os outros. Uma redução em dois pontos percentuais do défice público em proporção do produto já em 2010 seria um excelente resultado, embora muito difícil de conseguir. Precisamos de ganhar tempo para respirar.

Em segundo lugar, Portugal tem que continuar o esforço de requalificação do trabalho e das empresas que tem vindo a desenvolver. Na década de 90, o país deixou-se ficar preso a um padrão de especialização produtiva inviável que ao mesmo tempo entravou o crescimento da produtividade, condenou os salários à estagnação, aumentou a taxa de desemprego e agravou o défice externo. Este processo é lento e difícil por natureza, mais ainda agora que as circunstâncias externas se tornaram mais adversas.

Em terceiro lugar, não podemos manter-nos na expectativa em relação à evolução futura do sistema monetário e financeiro europeu. Não somos meros espectadores, estamos dentro, pelo que temos uma palavra a dizer na matéria.

Não fazem sentido nem a total independência do Banco Central Europeu nem a sua preocupação exclusiva com a inflação. Não faz sentido o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Não faz sentido a ausência de disposições que autorizem medidas excepcionais em situações excepcionais. Finalmente, não faz sentido que haja tanta preocupação com défices externos excessivos e nenhuma com superávites excessivos, quando uns se ligam necessariamente aos outros.

Fernando Pessoa definiu o provincianismo português como esta inclinação para "pertencermos a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela - em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz."

A ideia de que o endividamento externo é um problema especificamente nosso - seja nas causas seja nas manifestações - não passa de mais uma manifestação do provincianismo das elites portuguesas que Pessoa tão justamente abominava.

(Publicado no Jornal de Negócios de 13.1.10)