quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Como fazer o Estado trabalhar mesmo mal

O atribulado processo de escolha da localização do novo aeroporto de Lisboa tornou evidente a enorme fragilidade do Estado português. Talvez valha a pena tentarmos identificar a sua origem profunda.

Na segunda metade dos anos 80, teve início um processo de progressivo esvaziamento dos departamentos de estudos e planeamento de diversos ministérios. Há que reconhecer uma certa dose de racionalidade na decisão. Nem o Estado precisa de imponentes núcleos de técnicos de variadas especialidades cuja utilização oscila muito de ano para ano, nem tem condições para remunerar adequadamente os mais qualificados dentre eles. Compreende-se, por isso, que recorra com regularidade aos serviços de centros de investigação universitários, empresas de consultoria ou gabinetes de projectos.

O problema é que essa racionalização foi demasiado longe, transformada num dogma inquestionável que perdeu de vista o seu propósito inicial. De modo que, hoje em dia, o Estado encontra-se destituído de competências técnicas efectivas em áreas cada vez mais numerosas.

Esta evolução foi propiciada por doutrinas, tão pacóvias como nefastas, segundo as quais o Estado não necessita de definir estratégias próprias de actuação, limitando-se a responder às solicitações da sociedade civil. O resultado desse liberalismo mal assimilado está à vista de todos: muitas e relevantes instituições estatais carecem de um pensamento próprio acerca da área em que actuam, limitando-se, por isso, a prosseguir políticas e a distribuir recursos sem outro critério visível que não seja o de agradar às associações empresariais e aos lóbis mais influentes.

Os últimos anos têm vindo a comprovar, de modo cada vez mais evidente, os prejuízos resultantes da desvalorização das competências técnicas do Estado. Destacarei três razões por que este estado de coisas não pode continuar.

Em primeiro lugar, o Estado necessita de preservar uma memória inteligente. O planeamento de grandes infraestruturas nacionais – sirva mais uma vez de exemplo o novo aeroporto internacional de Lisboa – leva anos (por vezes décadas), ao longo dos quais são estudadas e avaliadas múltiplas alternativas segundo uma variedade de critérios que, naturalmente, vão também evoluindo com o tempo. Na ausência de instituições públicas sólidas encarregadas de preservar a memória do que se fez e por quê, às tantas ninguém – literalmente ninguém – sabe exactamente se será ou não preciso refazer este ou aquele estudo e com que pressupostos.

Em segundo lugar, a aquisição ao exterior de trabalhos complexos de consultoria e projecto exige elevadas competências técnicas, seja para definir as especificações da encomenda, seja para avaliar criteriosamente as propostas recebidas, seja, finalmente, para interpretar as conclusões a que se chegar. Não se imagina porventura quanto pode perder o Estado anualmente quando este trabalho é mal feito.

Em terceiro lugar, sem uma tecno-estrutura capaz e dedicada ao serviço público, não há condições para estruturar com o necessário detalhe as políticas públicas. Sabe-se como os nossos partidos estudam pouco e superficialmente os assuntos. Com demasiada frequência, só depois de tomarem assento nos ministérios é que os seus titulares começam a debruçar-se mais a sério sobre eles. De modo que, ou se rendem aos encantos do primeiro vendedor de banha da cobra que lhes aparece, ou ficam dependentes de gabinetes técnicos montados à pressa com jovens inexperientes que ignoram quase tudo do que até essa data se fez.

Tudo isto se traduz na notória ausência de políticas devidamente articuladas e pensadas nas suas consequências. Veja-se, por exemplo, como, após anos e anos de planos feitos em cima do joelho e debates caóticos em que o número de linhas de TVG projectadas variou entre zero e sete, tivemos a sorte de a União Europeia e a Espanha decidirem por nós o que de facto irá ser feito. Situações similares ocorreram e ocorrem em múltiplas áreas da governação, incluindo os transportes, as comunicações, a indústria, a agricultura, o comércio externo, a investigação, a saúde ou a educação.

Não faz qualquer sentido, numa época em que tanto se fala do papel central do conhecimento nas sociedades contemporâneas, que o Estado se resigne à desvalorização do capital de know-how que lhe é próprio e que não pode alienar sob pena de todos ficarmos mais pobres.

(Publicado no Jornal de Negócios de 18.11.09)