terça-feira, 30 de outubro de 2012

Tudo o que sempre quis saber sobre as contas públicas mas teve vergonha de perguntar

1. Para começar, 47% da chamada despesa pública de 2011 consistiu em transferências, ou seja, redistribuição de recursos que o estado opera de uns cidadãos para outros, incluindo pensões e outras prestações sociais. Não é pois verdade que o estado se aproprie de metade da riqueza do país, visto que metade dessa metade é devolvida às famílias.


2. As despesas de funcionamento das administrações públicas (salários mais consumos intermediários) representam 39% dos gastos totais. Porém, como abrangem a produção de serviços como a saúde, a educação ou a segurança, a verdade é que o custo da máquina burocrática do estado central se fica pelos 12 mil milhões (15,5% da despesa pública ou 7,2% do PIB). As gorduras do estado são afinal diminutas.

3. Os juros da dívida pública deverão absorver no próximo ano 5% do PIB. É imenso, mas em 1991 chegaram aos 8,5%.

4. O estado português foi recentemente obrigado a corrigir as suas contas incluindo nelas défices ocultos em anos anteriores, o que teve como consequência um aumento brusco da estimativa da dívida pública acumulada. O curioso é que essa dívida escondida foi praticamente toda contraída até 1989. Logo, as revisões recentes emendam falhas cometidas há muitíssimos anos.

5. A despesa pública em proporção do PIB atingiu um máximo em 1993 (46%), depois desceu ligeiramente e só voltou a esse nível, superando-o inclusive, na sequência da crise financeira mundial declarada em 2008. O país sabe conter eficazmente despesa pública, tanto mais que já o fez no passado.

6. O défice das contas públicas atingiu o seu máximo absoluto, segundo o Banco de Portugal, em 1981 – um legado de Cavaco Silva ao segundo governo da Aliança Democrática. Nunca mais se viu nada assim.

7. Em 1986, o sector público absorvia 71,7% do crédito total à economia. Em pouco mais de uma década a situação inverteu-se totalmente, de modo que, em 1999, as empresas e as famílias já absorviam 98% do crédito disponível. A economia não está hoje abafada pelo estado.

8. À data da entrada na CEE, o financiamento externo da economia representava apenas 14% do total. Em resultado da privatização da banca, a captação de recursos financeiros no exterior decuplicou entre 1989 e 1999 e a dívida pública passou a ser financiada esmagadoramente pelo estrangeiro. As instituições financeiras contribuíram para uma entrada líquida de fundos externos equivalente a 6,8% do PIB nesses anos. As responsabilidades dos bancos face ao estrangeiro passaram de 49% do PIB em 1999 para um máximo de 96% em 2007.

9. A baixa das taxas de juro decorrente da integração no euro propiciou a rápida expansão do crédito. Mas o investimento baixou em sete dos onze anos que terminaram em 2010 (variação acumulada de -20%), ao passo que o consumo privado só desceu num ano (variação acumulada de +19%). Quando havia dinheiro a rodos, o sector privado não investiu. Convém investigar porquê.

10. Também o investimento público foi baixando progressivamente até aos 3% do PIB em 2008. Em 2009 subiu um pouco, ficando ainda assim abaixo dos máximos do início da década. Como é possível continuar-se a invocar o excesso de investimento público para explicar as presentes dificuldades financeiras do estado?

11. As despesas do estado com pessoal caíram consistentemente em proporção do PIB a partir de 2002. O tão polémico aumento dos salários dos funcionários públicos em 2009 teve um impacto insignificante nas contas públicas. Em contrapartida, as prestações sociais passaram de 14% para 22% do PIB entre 2003 e 2010, sendo responsáveis por 95% do aumento da despesa corrente primária do estado entre 1999 e 2010.

12. Desmentindo a ideia de que as metas acordadas com a União Europeia nunca se cumpriram, os objectivos dos PECs entre 2006 e 2008 foram sempre confortavelmente atingidos, sem recurso a receitas extraordinárias, no que respeita a receitas, despesas, défice e dívida pública.

13. As medidas selectivas de combate à recessão em 2009 ascenderam a apenas 1,3% do PIB (quase metade pagos com fundos comunitários). O grande aumento do défice nesse ano deveu-se no essencial à quebra em 14% das receitas fiscais e ao crescimento das prestações em decorrência do agravamento da situação social. Acresce que esse aumento não se desviou significativamente do observado no resto da UE.

14. Cada um dos pontos anteriores contraria directa e taxativamente uma ou mais alegações quotidianamente escutadas nas televisões, nas rádios, nos jornais e, por decorrência, nos cafés e nos transportes públicos. Uma opinião pública inquinada por falsidades ou meias verdades não está em condições de formar um juízo válido sobre as alternativas políticas que lhe são propostas. Nestas condições, não admira que cresça descontroladamente o populismo e se degrade a qualidade da democracia.

(Os factos e números citado neste artigo foram extraídos do recentemente editado Sem Crescimento Não Há Consolidação Orçamental: Finanças Públicas, Crise e Programa de Ajustamento, de Emanuel Santos, leitura indispensável para quem deseje documentar-se sobre o tema das contas públicas.)

Publicado no Jornal de Negócios em 23.10.12

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Genuflexão ou resistência

1. “Arrependa-se dos seus pecados e reze dez Ave-Marias e cinco Padre-Nossos.” “Mas, senhor Padre, eu quero ir a Fátima a pé e dar vinte voltas de joelhos à Capela das Aparições…” É isto o que significa ir além da troika.


2. “Não insultar os credores” foi a absurda orientação escolhida para lidar com a nossa crise financeira, suscitando a legítima suspeita de que o tão elogiado bom aluno não passa, afinal, de um manteigueiro carreirista empenhado em vender-nos o ponto de vista alemão.

3. Sabemos que muitas das ideias mais penalizadoras incluídas no Memorando de Entendimento foram directamente sugeridas à troika por Eduardo Catroga (“a negociação foi sobretudo conduzida pelo maior partido da oposição”, afirmou ele em 3 de Maio de 2011). Considerando-se o ulterior percurso profissional do negociador, torna-se evidente o método subjacente a esta loucura. Quem está, afinal de que lado?

4. Salta aos olhos do mais distraído a existência de um conflito de interesses quando Portugal é representado nas negociações com a troika por um Ministro das Finanças que é também alto funcionário da Comissão Europeia. Resulta daí um confronto tão renhido como um desafio entre o Benfica A e o Benfica B. Uma situação em que Governo e troika se comportam como duas faces do mesmo euro revela por si só todo um projecto de subserviência que a ninguém deveria passar despercebido. Repito: quem está de que lado?

5. Nem Zapatero nem Rajoy se apressaram a pedir o resgate da Espanha. Ao contrário de Portugal, onde a embaixada estrangeira foi acolhida com foguetório e alcatifa vermelha, as oposições, os media e os homens de negócios espanhóis não exigiram em coro a aplicação de duras penas ao seu próprio povo. Com isso, o país criou margem de manobra negocial neste difícil transe.

6. É evidente o tratamento de excepção que a Espanha tem recebido nesta crise. Vinte e quatro horas depois de conhecido o pacote de socorro à banca espanhola, já a Irlanda exigia um semelhante, posição em que foi depois imitada pela Grécia. Já o governo português permaneceu e permanece calado. Não admira que o mesmo Draghi que apenas condiciona a compra de dívida espanhola ao pedido formal de ajuda tenha tido a ousadia de declarar há dias que Portugal só beneficiará do apoio do BCE quando regressar aos mercados – ou seja, quando já não precisar dele.

7. Apesar de a medida ser taxativamente prevista no respectivo Memorando de Entendimento, a República da Irlanda não só se recusou a privatizar o seu sector eléctrico como nem sequer separou a produção da distribuição. Estranhou-se muito por lá a pressa com que em Portugal se despachou a EDP e a REN. É o que sucede quando governo e troika não estão do mesmo lado.

8. Quando, em Outubro de 2011, o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros foi interrogado sobre o sentido do voto português no Conselho de Segurança da ONU sobre a possível admissão da Palestina na UNESCO, retorquiu que concertaríamos a nossa posição com os aliados europeus. Colocada a mesma questão ao seu homólogo alemão, a resposta foi pronta: “A Alemanha votará contra”. A nossa margem negocial é escassa, mas existe – só que não há vontade de utilizá-la.

9. A participação nas missões da NATO no Afeganistão e na Bósnia custa ao país uns 75 milhões por ano, o equivalente a mais de dois meses de gastos com o tão fustigado Rendimento Social de Inserção. Mais do que para poupar recursos escassos, a retirada serviria para mostrar aos nossos aliados o desagrado português pela forma como por eles estamos a ser tratados.

10. Não satisfeito com desvalorizar a importância das euro-obrigações, o nosso Primeiro-Ministro chegou a fantasiar em Junho que a compra de dívida pública dos países em dificuldades pelo BCE poderia conduzir a uma guerra na Europa. A sua ausência do encontro que em 21 de Setembro juntou os líderes de Itália, Espanha, Irlanda e Grécia era expectável: toda e qualquer iniciativa que vise reduzir a pressão externa sobre o país merece o desdém do governo português, decerto por embaraçar a hercúlea tarefa de empobrecimento colectivo a que meteu ombros. Não é underacting, é mesmo má vontade.

11. Na política, na guerra, na economia ou na gestão a táctica (as famosas medidas) decorre da estratégia. A margem de manobra é pois escassíssima quando nos limitamos a discutir programas de acção alternativos sem questionar a política de fundo.

12. Prisioneiro do euro e sem condições para o abandonar, pressionado por poderes externos que o esmagam, impedido de recorrer às políticas económicas mais apropriadas, Portugal encontra-se numa situação dificílima. Não podendo de momento ganhar, deve esforçar-se por controlar os danos, preservar as forças e esperar o momento oportuno para contra-atacar. Chama-se a isso defensiva estratégica.

13. Negociação exige, primeiro, vontade de afirmar uma posição própria (aquilo, afinal, de que o governo desde o início abdicou). Segundo, perceber o que é possível conseguir sem jamais perder de vista o que se quer. Terceiro, fazer saber o que jamais se aceitará, invocando se necessário os poderes que não se controla (a Constituição e a rua são excelentes argumentos). Quarto, recorrer a todas as jogadas laterais susceptíveis de reforçarem a sua posição, incluindo buscar novos aliados, fazer bluff ou alargar o terreno de confronto.

14. A estratégia até aqui seguida pelo governo português é inteiramente consistente com o propósito de operar uma alteração radical da relação de forças políticas e sociais no país. Assim, quando nos perguntam por alternativas, devemos começar por questionar o objectivo e a estratégia, e só depois atentar nas medidas que a sua reformulação implica.

Publicado no Jornal de Negócios em 9.10.12