terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Como tornar-se um sem-abrigo de sucesso

Há meio século, todos concordavam que o lugar dos loucos é no manicómio. A populaça temia e hostilizava os "maluquinhos", mas a sociedade achava seu dever cuidar deles internando-os em instituições para alienados.

Embora por essa altura rareassem já os tratamentos mais violentos, o confinamento de seres humanos para a vida em presídios especializados era crescentemente contestado, tanto mais que a noção de distúrbio mental era (e é) algo vaga. Fazia-se, por exemplo, notar que na União Soviética os opositores eram internados em hospícios sob o pretexto de que a sua resistência a uma sociedade tão racionalmente organizada só poderia dever-se a algum tipo de falha psíquica.

Pensadores como o americano Szaz, o escocês R. D. Laing ou o francês Foucault argumentaram que a impropriamente chamada loucura pode ser um mecanismo perfeitamente racional de ajustamento a um mundo injusto e desumanizado, oferecendo um potencial de libertação e renovação espiritual. Nessas circunstâncias, o internamento compulsivo dos loucos torna-se numa forma de uma maioria de cidadãos conformistas reprimirem impulsos emancipadores e perpetuarem a tirania do "estado terapêutico". Estaríamos assim perante um sistema potencialmente totalitário orientado para a aniquilação de acções, ideias e emoções arbitrariamente classificadas como impróprias.

Por tudo isso, o movimento da "antipsiquiatria" sustentava a eliminação do asilo de alienados e a libertação e reintegração dos loucos na sociedade civil, a qual cuidaria de potenciar as suas capacidades criativas. "Voando Sobre um Ninho de Cucos", o filme realizado por Milos Forman em 1975 e galardoado com cinco Óscares, ajudou muito a popularizar essas teses.

A nova direita não tardou em brandir a bandeira da libertação dos doidos, não só por constatar que o estado despendia rios de dinheiro na manutenção de manicómios, como por a horrorizar a violação dos direitos dos indivíduos aprisionados. Passou a estar em voga a devolução dos loucos a comunidades de reintegração financiadas pelo estado como alternativa mais económica para os contribuintes, mas, em 1982, Ronald Reagan achou que o melhor seria mesmo acabar com esses subsídios, de modo que os doentes começaram a ser lançados nas ruas, dentro do princípio de que cada qual sabe o que é melhor para si – e o resto do mundo aderiu à inovação.

Essa revolução contribuiu para aumentar drasticamente o número de sem-abrigo, dos quais parte considerável manifestamente padece de perturbações psíquicas. Embora escasseiem estatísticas fiáveis, acredita-se que na Europa e nos EUA os sem-abrigo se contem hoje por milhões. Quanto à situação portuguesa, caracteriza-se por um considerável potencial de libertação não concretizado, arriscando-nos inclusive a ser ultrapassados por economias do leste europeu mais dinâmicas na produção de sem-abrigo. Necessitamos urgentemente de uma revolução de mentalidades.

O primeiro preconceito a eliminar é a ideia de que o modo de vida dos sem-abrigo só é indicado para indigentes. Salvo raras excepções, o que singulariza os sem-abrigo é a fragilidade mental; logo, nada impede que a fome de liberdade e espiritualidade inerentes a esse modo de vida atraiam tanto a classe média como gente de posses.

Atente-se em Nicolas Berggruen, que, embora dono de uma fortuna avaliada em 2,2 mil milhões de dólares, decidiu em 2002 vender o seu apartamento em Manhattan e a sua ilha na Florida, mantendo apenas o jacto pessoal Gulfstream e deslocando-se permanentemente de hotel em hotel. Nas suas frequentes entrevistas, exorta toda a gente a abraçar o seu projecto de libertação dos bens materiais e busca espiritual. Tecnicamente, trata-se sem dúvida de um "homeless".

Entretanto, a Sociedade São Vicente de Paulo da Austrália convida desde 2006 os CEO do país a viverem a experiência dos sem-abrigo num "sleepout" que tem lugar em Junho de cada ano. O sucesso da iniciativa não decorre, é óbvio, de esses executivos recearem ver-se um dia, por infortúnio, despromovidos à condição de sem-abrigo, antes de um desejo reprimido de ensaiarem uma experiência que lhes tem sido vedada pelos preconceitos sociais dominantes.

A constatação do fascínio que a vida dos sem-abrigo exerce sobre tantos altos executivos coloca às empresas que eles dirigem um angustioso dilema. Não é ético condicionar a liberdade de alguém, mais a mais quando está em causa a tentativa de dar significado espiritual à sua vida. Porém, a dificuldade que os aspirantes a sem-abrigo têm em assumir a sua vocação pode prejudicar o seu desempenho enquanto hesitam e, por isso, inibir a criação de valor para os accionistas. Eventualmente, a neurose (que é só um problema do próprio) pode evoluir para psicopatia (que ameaça os outros). Que fazer?

Em primeiro lugar, é recomendável que os accionistas e pares do sujeito estejam atentos aos sintomas precoces do distúrbio, incluindo desinteresse pelas opiniões dos outros, obstinação extrema, alheamento do senso comum, recusa de rever as suas opiniões e atitudes, insensibilidade ao sofrimento alheio e incapacidade de pedir desculpa.

Confirmada a condição neurótica, deverão aceitar o facto sem mais delongas, incitar o CEO a seguir a sua vocação e prepará-lo para a sua nova vida, se necessário ajudando-a a adquirir a indispensável formação. Acima de tudo, o candidato a sem-abrigo deve evitar a mediocridade e manter a sua ambição. Desde que convenientemente treinado e motivado, há todas as condições para que, também na nova carreira que abraçou, ele venha a revelar-se um homem de sucesso.

Publicado no Jornal de Negócios em 5.2.13