quarta-feira, 29 de abril de 2009

Trabalhar para as estatísticas

As gerações actuais devem ter dificuldade em acreditar que houve um tempo em que a discussão política não se centrava nas convoluções do PIB, mas essa é a mais pura das verdades.

Para começar, os sistemas de contabilidade nacional hoje usados foram inventados há apenas 70 anos. Antes disso, ninguém sabia ou cuidava de saber a variação homóloga da produção no último trimestre. Uma vez generalizado o método de medição, demorou ainda algum tempo (e muita lavagem ao cérebro) até que a opinião pública o aceitasse sem reservas como uma razoável aproximação do bem-estar colectivo.

Hoje, porém, poucos contestam a bondade do PIB como critério supremo de avaliação da acção política. Estamos a crescer mais ou menos? Acentuou-se ou reduziu-se a distância em relação aos outros países? A América é mais dinâmica do que a Europa? E o governo estimula ou tolhe o PIB?

Transformar a soma de batatas com cebolas numa operação razoável foi um feito notável dos economistas, cuja relevância depende, todavia, da aceitação da equivalência entre acumulação de bens materiais e felicidade. Como toda a obra humana, também este felicitómetro tem os seus defeitos: o produto nacional aumenta se eu contratar uma mulher a dias, mas reduz-se, contra toda a evidência, se eu me casar com ela. É assim porque a contabilidade valoriza as transacções monetárias e desdenha as que não envolvem dinheiro.

Mais complicado ainda é computar a riqueza gerada quando, ao contrário do que há escassas décadas sucedia, uma grande maioria da população não produz hoje nem batatas nem pregos, mas serviços intangíveis. O engenho dos economistas logrou, porém, superar essas e outras dificuldades de natureza mais técnica. Pelo menos, é assim que pensam os crentes.

Terão razão? A produtividade da UE é, dizem-nos as estatísticas, superior à dos EUA. Porém, como os americanos trabalham em média mais horas, o produto per capita deles é maior que o dos europeus, de onde decorre que eles são mais felizes do que nós. Este raciocínio absurdo explica-se pelo facto de o lazer não ser valorizado por este sistema: trabalhar mais é sempre bom, independentemente das consequências que isso tenha sobre a saúde psicológica e mental dos indivíduos e das famílias.

Mais: para a contabilidade nacional, um euro é um euro, sem interessar quem o recebe. Está aqui implícito que a desigualdade não afecta a felicidade dos cidadãos, embora nós saibamos (e a teoria económica o confirme) que um euro adicional proporciona mais felicidade a um pobre do que a um rico.

Nos tempos longínquos em que o ensino público básico gratuito foi introduzido na Europa, a poucos interessava que isso pudesse eventualmente contribuir para aumentar a produtividade da população. O benefício esperado da educação era, primeiro, a própria educação e, segundo, a promoção da cidadania. Hoje, porém, não só os investimentos na educação, mas também na cultura, na saúde e, mais recentemente, na própria justiça, são olhados com desconfiança se não contribuírem de alguma forma para promover a competitividade das empresas e do país. Tudo o que pareça incomodar o PIB estará ipso facto tramado.

Graças a Deus – há-de haver por força algo de divino nisto - alguma investigação económica parece sugerir que aquilo que é bom para as pessoas acaba mais tarde ou mais cedo por revelar-se bom para a economia. Não sei, todavia, se poderemos ficar tranquilos, dado que, segundo Fogel (Nobel da Economia em 1993), a escravatura era um regime de trabalho eficiente à data da sua abolição nos EUA.

Faz sentido que privilegiemos o objectivo de produzir mais e mais coisas quando a esmagadora maioria dos cidadãos vive na pobreza absoluta, mas as prioridades deveriam ir-se alterando à medida que a carência extrema se reduz e que outros factores se revelam mais decisivos para a promoção da dignidade humana.

Nem o PIB nem qualquer outro indicador sintético é capaz de, isoladamente, elucidar-nos sobre o grau de bem-estar de uma sociedade. Para isso, precisamos de uma pluralidade de metas variáveis em função das circunstâncias e dos desafios do momento.

Já que, nesta era obcecada pela quantificação (mesmo que espúria), estamos condenados a trabalhar para as estatísticas, ao menos que seja para aquelas que mais interessam.

(Artigo publicado no Jornal de Negócios de 29.4.09)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Pôr a casa em ordem

Que mundo nos espera nos próximos anos? É mais fácil prever o que já aconteceu, de modo que vamos começar por aí.

Com o sistema financeiro global em estado catatónico, não há crédito nem para as empresas nem para as famílias, as quais reagem adiando as despesas e aumentando as poupanças como precaução contra o que pode vir a caminho. Tal reacção, já se sabe, só torna as coisas piores. Não admira, pois, que as estatísticas que de todo o mundo nos vão chegando mostrem uma quebra abrupta do comércio internacional e do emprego a partir de finais de 2008.

Não teria forçosamente que ser assim, mas a falta de vontade de exercer o poder, nuns casos, ou a própria ausência de centros capazes de exercê-lo, noutros, trouxe-nos até aqui. O pior cenário parece em vias de concretizar-se.

Se somarmos a isto a persistência de colossais desequilíbrios financeiros à escala mundial, não será de espantar que a presente recessão venha a durar anos e não meses. A economia portuguesa pode por isso contar com uma mudança duradoura do contexto internacional, caracterizada pelo recuo da globalização, pela incerteza generalizada e pela quebra da confiança nas empresas e nas instituições. Caso se acentue o reflexo proteccionista já notório aqui e acolá, pequenas economias abertas como a nossa não poderão deixar de ser seriamente afectadas.

O mais natural, nestas circunstâncias, é que as pessoas procurem refúgio junto daquilo que lhes está mais próximo e que, também por isso mesmo, se lhes afigura mais seguro. O mesmo sucederá porventura com as empresas. A confirmar-se a tendência, assistiremos durante algum tempo a uma viragem das economias para dentro.

Do mesmo modo que nos últimos anos nos preocupámos com a competitividade externa, deveremos agora focar-nos na competitividade interna, principalmente nos sectores de bens não-transaccionáveis que tão avessos se têm revelado à renovação.

A protecção de que tais actividades gozam em relação à concorrência internacional é em boa medida responsável pelos lamentáveis níveis de qualidade e eficiência que entre nós exibem. Directamente, essa situação prejudica os cidadãos e os consumidores; indirectamente, degrada as condições de competitividade externa das empresas exportadoras, obrigadas a suportar os custos de contexto que lhe estão associados.

Políticas públicas adequadas, envolvendo entre outras fomento da concorrência, regulamentação exigente, investimento estatal e reorganização dos mercados públicos, podem e devem contribuir para uma transformação positiva do panorama actual.

Os sectores de bens não-transaccionáveis abrangem uma variedade de actividades públicas e privadas, dentre as quais se destacam algumas que poderão vir a desempenhar um papel central na economia renovada pós-recessão. Tal é o caso, por exemplo, dos cuidados de saúde, da educação nos seus diversos graus, da renovação urbana, dos transportes públicos, das energias renováveis e, em geral, da protecção do ambiente.

Não se trata, note-se bem, de desistir dos mercados externos ou de menosprezar a sua importância para o nosso desenvolvimento. Bem pelo contrário, sendo a baixa produtividade dos sectores de bens não-transaccionáveis um dos calcanhares de Aquiles da nossa economia, é claro que a sua renovação se constitui ela própria numa poderosa alavanca da nossa competitividade externa.

Isso é bem evidente, por exemplo, no caso do turismo. Uma actividade que consiste em importar temporariamente gente com dinheiro para vir cá gastá-lo só tem a lucrar com a melhoria da qualidade das cidades e do ambiente, com a qualificação dos transportes públicos e com serviços de saúde de nível internacional.

A crise internacional obriga todos os países a virarem-se por algum tempo para dentro em virtude da quebra abrupta do comércio internacional. Aproveitemos a circunstância para pôr a casa em ordem, impondo novos padrões de exigência a actividades que, apesar de cruciais para a revitalização da nossa economia, se têm dado ao luxo de permanecer à margem das transformações que delas temos o direito de esperar. Mas criemos também incentivos capazes de estimulá-las e acelerá-las.