segunda-feira, 21 de maio de 2012

Evergetismo, disfunção contemporânea do capitalismo

Um conhecido empresário nacional afirmou numa entrevista ser o primeiro da sua família a trabalhar em sete gerações. A diferença entre ele e os seus antepassados será mais semântica do que real, pois jamais ocorreria a Luís XIV chamar trabalho ao exercício do poder ou a actividades de representação social, que é basicamente o que os CEO hoje fazem.

Trabalho era outrora recurso de necessitados, não uma ocupação digna das classes superiores. Mas o triunfo do espírito democrático tornou o ócio vergonhoso: não trabalhar parece mal, pois equivale a viver à custa do suor alheio; de modo que a palavra trabalho abarca agora qualquer forma de agitação quotidiana e sistemática não inteiramente desonrosa.

É assim que o hiper-milionário desta era pós-ociosa circula, hoje, nos mesmos ambientes que a camada superior dos assalariados que asseguram a gestão profissional dos seus empreendimentos. Distinguir entre ambos tornou-se tarefa árdua para o povinho, para o qual presidentes executivos como António Mexia ou capitalistas como Américo Amorim são farinha do mesmo saco.

Trivializaram-se do mesmo passo certos sinais de opulência, por estarem ao alcance tanto duns como doutros. Porém, milionário a valer sabe que menos é mais: Gates, Buffet ou o malogrado Jobs vestem-se sobriamente. A farda de trabalho do super-rico contemporâneo, de que Zuckerberg vale como ícone, resume-se a jeans, t-shirt e sapatilhas.

Por outro lado, na eterna busca de bens posicionais que os distingam dos pequenos e médios ricos, cujas fileiras engrossam a olhos vistos, mansões na Côte d’Azur, iates de 150 metros e ilhas privadas não bastam hoje para sinalizar o nababo genuíno. De modo que, quem quer ser alguém, compra antes um clube de futebol, como fizeram Abramovich ou o xeque Mansour Nayhan. Ou então, imitando Berlusconi, opta por comprar um cargo de primeiro-ministro, com os resultados que se sabe. Num plano incomensuravelmente mais perverso, pode fazer como Bin Laden, que aplicou a riqueza familiar na construção de uma rede terrorista internacional dedicada a chacinar infiéis.

Felizmente, dir-se-á, nem todos os milionários têm o mau gosto de santificar as suas fortunas aplicando-as no futebol, ou a falta de senso de as usarem para conquistar poder político. Assim, Gates, Buffet, Soros e Bloomberg criaram instituições de solidariedade social dotadas de meios financeiros superiores àqueles de que muitos estados dispõem para promoverem o combate à malária ou a melhoria dos sistemas educativos.

A vulgarização das magnânimas excentricidades dos ricos faz lembrar irresistivelmente o "evergetismo", expressão cunhada pelo historiador André Boulanger para designar a prática, comum na Roma Antiga, consistente em os ricos e poderosos oferecerem generosamente à comunidade bibliotecas, templos, banhos públicos e escolas, mas também espectáculos de circo, combates de gladiadores e festividades diversas.

Implícita nestas ofertas está a mensagem: "Disponho-me a contribuir para o bem-estar da comunidade, com a condição de poder decidir como o dinheiro será gasto, visto ter provado que uso melhor os recursos financeiros do que os políticos." Ou seja, a classe dirigente reconhece ter deveres sociais, mas exige ser ela a decidir em que consistirão. O mecenato surge, assim, como uma alternativa (inteiramente satisfatória para ela) à redistribuição promovida pelo estado. Por um lado, exibe o seu poder e afirma a sua superioridade tanto material como espiritual; por outro, livra-se da má consciência que ao sucesso tantas vezes está associada e alcança o perdão dos seus privilégios.

Ora, isto mina os princípios da universalidade e da igualdade de direitos. A sociedade volta a cindir-se em dois campos: de um lado os "homens-bons" que assumem a título privado a gestão do bem-estar colectivo; do outro, uma plebe infantilizada e privada de tomar decisões de relevo no que toca à provisão de bens públicos.

Ouve-se às vezes perguntar qual será o mal de alguém acumular uma riqueza colossal, se isso não implica o empobrecimento dos seus concidadãos. A desigualdade só é nociva, diz-se, quanto resulta da miséria dos de baixo, não quando decorre do enriquecimento dos de cima. Mas o recrudescimento contemporâneo do "evergetismo" típico de sociedades plutocráticas sugere que a crescente desigualdade económica conduz em linha recta à desigual cidadania. Permanecemos na aparência iguais, mas alguns definitivamente mais iguais do que outros.

Publicado em 21.5.12 no Jornal de Negócios

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Histórias da carochinha para graúdos

Os portugueses estão habituados a esperar que alguém, de preferência o Estado, lhes arranje emprego. Falta-lhes capacidade de ir à luta, criar o seu próprio posto de trabalho e produzir riqueza. Vivem demasiado acomodados à sombra de direitos adquiridos. Esperam que alguém lhes resolva os problemas, enfronhados numa atitude resignada e fatalista.

Alguém se atreve a duvidar da justeza deste diagnóstico quotidianamente repetido ad nauseam por empresários, professores universitários, consultores e jornalistas

Ora vamos, por um instante, fazer de conta que a realidade existe – pode ser? Consultando as estatísticas, constata-se que temos já uma brutalidade de gente a trabalhar por conta própria ou em empresas familiares – nada menos que 42% de activos empregados em empresas com 9 ou menos trabalhadores. Por comparação, apenas 19% dos trabalhadores alemães e 11% dos americanos laboram em empresas dessa dimensão. Aparentemente, atitude empreendedora é coisa que não falta por cá.

Nada há de estranho, note-se, neste fenómeno, dado que, ao contrário do que se diz, os níveis mais elevados de iniciativa empresarial são registados nos países mais atrasados. O auto-emprego abrange 67% dos activos no Gana e 75% no Bangladesh, mas apenas 7% na Noruega, 8% nos EUA e 9% na França. Mesmo excluindo os camponeses, a probabilidade de alguém ser empresário é duas vezes maior nos países atrasados do que nos desenvolvidos.

A esmagadora maioria das pessoas dos países ricos emprega-se em organizações que agrupam centenas ou milhares de trabalhadores e jamais sonha criar a sua própria empresa. Isso é excelente, porque pouquíssimos dispõem de vocação ou competência para fazê-lo. Em contrapartida, nos países pobres muitos são forçados a criar o seu próprio negócio para fugirem ao desemprego.

O facto indesmentível é que, entre nós, o sector propriamente capitalista da economia jamais conseguiu criar postos de trabalho em quantidade (e, já agora, em qualidade) capaz de dar ocupação a uma parte substancial da força de trabalho nacional. Seja qual for a explicação, podemos estar certos de que esta proliferação de empresas anãs – que, espantosamente, se acentuou nas últimas décadas e, ainda mais espantosamente, alguns querem consolidar – é uma receita infalível para a improdutividade e a pobreza.

A promoção do empreendedorismo heróico individual é um anacronismo, que serve apenas para culpar os desempregados da sua própria infelicidade. O empreendedorismo relevante, que gera inovações úteis e desenvolvimento, é, no mundo contemporâneo, um fenómeno essencialmente colectivo. Steve Jobs nunca passaria de um amável biscateiro se não beneficiasse das invenções do Centro de Palo Alto da Xerox, se não dispusesse de uma plêiade de engenheiros formados por grandes universidades, se não houvesse um mercado de milhões de pessoas cultas e qualificadas ansiosas por utilizar os seus produtos e se não tivesse acesso a fontes de financiamento adequadas às necessidades de uma start-up.

Por outras palavras, o que distingue as sociedades progressivas é a sua capacidade de orientar os instintos criativos dos cidadãos para actividades socialmente úteis e economicamente valiosas, pondo ao seu alcance um acervo de recursos humanos, tecnológicos e financeiros de grande nível.

Acresce que o empreendedorismo de maior sucesso tem origem em grandes empresas, usualmente em cooperação com outras. O sistema operativo da Microsoft foi um subproduto de um projecto da IBM. Em Portugal, as mais marcantes inovações das últimas décadas – o telemóvel pré-pago e a portagem electrónica – resultaram de iniciativas de grandes empresas (ainda por cima, públicas).

Não precisamos de exortações ao espírito empreendedor da população, meras histórias da carochinha para adultos. Não precisamos de mais empresas sem escala nem competências. Precisamos de melhores empresas e, sobretudo, de melhor empreendedorismo orientado para o desenvolvimento de actividades inovadoras e geradoras de emprego qualificado.

Padecemos de um excesso de empreendedorismo do tipo errado. Em contrapartida, o empreendedorismo do tipo certo não floresce em Portugal porque as empresas que dispõem dos indispensáveis recursos se dedicam a actividades de extracção de rendas económicas, enquanto as restantes não têm acesso ao financiamento de que necessitam para poderem expandir-se com a necessária rapidez. Cuide-se dessa deformidade, que o empreendedorismo cuidará de si próprio.

Publicado no Jornal de Negócios em 8.5.12