Um conhecido empresário nacional afirmou numa entrevista ser o primeiro
da sua família a trabalhar em sete gerações. A diferença entre ele e os
seus antepassados será mais semântica do que real, pois jamais ocorreria
a Luís XIV chamar trabalho ao exercício do poder ou a actividades de
representação social, que é basicamente o que os CEO hoje fazem.
Trabalho
era outrora recurso de necessitados, não uma ocupação digna das classes
superiores. Mas o triunfo do espírito democrático tornou o ócio
vergonhoso: não trabalhar parece mal, pois equivale a viver à custa do
suor alheio; de modo que a palavra trabalho abarca agora qualquer forma
de agitação quotidiana e sistemática não inteiramente desonrosa.
É
assim que o hiper-milionário desta era pós-ociosa circula, hoje, nos
mesmos ambientes que a camada superior dos assalariados que asseguram a
gestão profissional dos seus empreendimentos. Distinguir entre ambos
tornou-se tarefa árdua para o povinho, para o qual presidentes
executivos como António Mexia ou capitalistas como Américo Amorim são farinha do mesmo saco.
Trivializaram-se
do mesmo passo certos sinais de opulência, por estarem ao alcance tanto
duns como doutros. Porém, milionário a valer sabe que menos é mais:
Gates, Buffet ou o malogrado Jobs vestem-se sobriamente. A farda de
trabalho do super-rico contemporâneo, de que Zuckerberg vale como ícone,
resume-se a jeans, t-shirt e sapatilhas.
Por outro lado, na
eterna busca de bens posicionais que os distingam dos pequenos e médios
ricos, cujas fileiras engrossam a olhos vistos, mansões na Côte d’Azur,
iates de 150 metros e ilhas privadas não bastam hoje para sinalizar o
nababo genuíno. De modo que, quem quer ser alguém, compra antes um clube
de futebol, como fizeram Abramovich ou o xeque Mansour Nayhan. Ou
então, imitando Berlusconi, opta por comprar um cargo de
primeiro-ministro, com os resultados que se sabe. Num plano
incomensuravelmente mais perverso, pode fazer como Bin Laden, que
aplicou a riqueza familiar na construção de uma rede terrorista
internacional dedicada a chacinar infiéis.
Felizmente, dir-se-á,
nem todos os milionários têm o mau gosto de santificar as suas fortunas
aplicando-as no futebol, ou a falta de senso de as usarem para
conquistar poder político. Assim, Gates, Buffet, Soros e Bloomberg
criaram instituições de solidariedade social dotadas de meios
financeiros superiores àqueles de que muitos estados dispõem para
promoverem o combate à malária ou a melhoria dos sistemas educativos.
A
vulgarização das magnânimas excentricidades dos ricos faz lembrar
irresistivelmente o "evergetismo", expressão cunhada pelo historiador
André Boulanger para designar a prática, comum na Roma Antiga,
consistente em os ricos e poderosos oferecerem generosamente à
comunidade bibliotecas, templos, banhos públicos e escolas, mas também
espectáculos de circo, combates de gladiadores e festividades diversas.
Implícita
nestas ofertas está a mensagem: "Disponho-me a contribuir para o
bem-estar da comunidade, com a condição de poder decidir como o dinheiro
será gasto, visto ter provado que uso melhor os recursos financeiros do
que os políticos." Ou seja, a classe dirigente reconhece ter deveres
sociais, mas exige ser ela a decidir em que consistirão. O mecenato
surge, assim, como uma alternativa (inteiramente satisfatória para ela) à
redistribuição promovida pelo estado. Por um lado, exibe o seu poder e
afirma a sua superioridade tanto material como espiritual; por outro,
livra-se da má consciência que ao sucesso tantas vezes está associada e
alcança o perdão dos seus privilégios.
Ora, isto mina os
princípios da universalidade e da igualdade de direitos. A sociedade
volta a cindir-se em dois campos: de um lado os "homens-bons" que
assumem a título privado a gestão do bem-estar colectivo; do outro, uma
plebe infantilizada e privada de tomar decisões de relevo no que toca à
provisão de bens públicos.
Ouve-se às vezes perguntar qual será o
mal de alguém acumular uma riqueza colossal, se isso não implica o
empobrecimento dos seus concidadãos. A desigualdade só é nociva, diz-se,
quanto resulta da miséria dos de baixo, não quando decorre do
enriquecimento dos de cima. Mas o recrudescimento contemporâneo do
"evergetismo" típico de sociedades plutocráticas sugere que a crescente
desigualdade económica conduz em linha recta à desigual cidadania.
Permanecemos na aparência iguais, mas alguns definitivamente mais iguais
do que outros.
Publicado em 21.5.12 no Jornal de Negócios
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