segunda-feira, 26 de março de 2012

Como governar com um martelo

Entende o leitor que a irracionalidade é o contrário da racionalidade? Considere o que se segue e diga-me no final se mantém essa opinião.

Controlar a execução do orçamento do estado é tarefa bem mais complexa do que à partida possa parecer, designadamente porque muitos organismos dispõem de considerável autonomia de gestão. Como assegurar que os municípios, institutos e empresas públicas não incorrerão em gastos excessivos que mais tarde se traduzirão em dívidas acumuladas?

O ovo de Colombo concebido pelo governo para contornar a dificuldade foi proibir toda e qualquer despesa que não possa ser paga com receitas já disponíveis à data da sua autorização. Esta ideia foi em 21 de Fevereiro deste ano perpetrada, com efeitos imediatos, sob a forma da lei 8/2012, também conhecida como Lei dos Compromissos. Poderá alguém discordar disto?

As universidades afirmaram que não poderiam pagar salários no primeiro trimestre, dado que nesta época ao ano quase não têm receitas. Em alternativa, consideram a hipótese de suspenderem os serviços de limpeza e cantina ou o funcionamento dos laboratórios. Os hospitais alertaram para a eventualidade de problemas de tesouraria se traduzirem na quebra dos cuidados prestados por falta de medicamentos ou materiais, para além de a lei os impedir de assumirem novos compromissos enquanto não liquidarem encargos transitados de anos anteriores. As transportadoras não sabem como garantir a circulação se a todo o momento correrem o risco de rupturas dos stocks de combustíveis e peças de substituição. A direcção-geral da cultura não entende como poderá assumir programas plurianuais. Finalmente, o bastonário da Ordem dos Engenheiros afirmou que, se fosse gestor público, pediria a demissão na sequência da promulgação da Lei dos Compromissos.

O pecado da lei 8/2012 é, em suma, ignorar as prosaicas minudências da vida, lá onde ocorrem os míseros factos que dão origem a movimentos contabilísticos e compromissos financeiros. Alguma vez se perguntou o leitor por que é que a gestão quotidiana de uma organização não pode ser assegurada automaticamente por um algoritmo processado por um computador? Eis a resposta: porque no mundo real há imprevistos.

As receitas e os custos são instáveis por causa dos caprichos das pessoas que decidem ficar doentes nos momentos mais inconvenientes ou porque os equipamentos nem sempre avisam antecipadamente que tencionam avariar. Digamos que as razões dos utilizadores e do material acreditam ter prioridade em relação às razões do Ministério das Finanças, essa incompreendida ilha de racionalidade num mundo governado pela loucura.

Que se saiba, só há duas formas de jamais enfrentar problemas de tesouraria: a) aceitar como coisa natural as falhas na prestação do serviço; b) ter excesso de dinheiro imobilizado. Logo, restam às instituições abrangidas pela Lei dos Compromissos duas soluções: a) ineficácia, reduzindo por sistema a quantidade e a qualidade do serviço prestado; b) ineficiência, operando em permanência com excesso de capital circulante.

Nada disso é grave, se admitirmos que o propósito dos serviços públicos é facilitar a vida ao Ministério das Finanças, não zelar pelo bem-estar do cidadão ou fazer uma gestão eficiente dos recursos à sua guarda.

Resta uma solução para obviar às dificuldades mencionadas, aliás prevista na lei: abrir constantemente excepções para assegurar o funcionamento de um sistema que as regras visam impedir de funcionar. Assim, fomos já informados pelos jornais que serão aligeiradas as exigências para as universidades, os hospitais, os municípios, as transportadoras, talvez até para a própria direcção geral da cultura – e, note-se, a lei ainda só tem um mês.

Deus ao criar o mundo quis dotá-lo de múltiplas variantes de absurdo, mas nem ele terá imaginado que sujeitos doutorados pelas melhores universidades poderiam conceber a lei 8/2012. Reduzir a despesa é, afinal, muito fácil: basta dilatar os prazos de espera pelas cirurgias, deixar a população à míngua, paralisar as universidades e os centros de investigação, aniquilar o sistema de transportes públicos, arrasar as empresas públicas, minar a confiança dos cidadãos nas instituições e uns nos outros, e o sucesso estará assegurado.

Tal como o Capitão Ahab no romance Moby Dick, também Vítor Gaspar poderia exclamar: "Todos os meus métodos se pautam pela racionalidade, apenas os propósitos são desvairados."

Publicado no Jornal de Negócios em 26.3.12

quarta-feira, 14 de março de 2012

Arrasar e fazer de novo

Entre 1405 e 1433, o almirante chinês Zeng He comandou sete ambiciosas viagens marítimas de exploração no Oceano Índico. Na sexta delas, em 1421, desceu a costa da África Oriental visitando Mogadixo, Mombaça, Melinde, Zanzibar e Quiloa (perto da fronteira sul da actual Tanzânia), onde voltou, mais tarde, em 1433. Depois disso, foram bruscamente interrompidas as expedições chinesas a essa parte do mundo.

Parece provável que estivessem informados de que, passando o cabo mais meridional da África, poderiam depois navegar para norte a caminho da Europa. Porém, nunca o fizeram. Ao invés, os portugueses, que nessa mesma época haviam acabado de chegar ao Bojador, prosseguiram a exploração da costa africana rumo ao sul, dobraram em 1487 o Cabo da Boa Esperança e chegaram em 1498 à Índia. Como se explica esta disparidade de ambição entre chineses e portugueses?

David Landes opina, no seu The Wealth and Power of Nations: Why Some Are So Rich and Some Are So Poor, que aos chineses faltavam visão, foco e, acima de tudo, curiosidade. Não estavam interessados em aprender e ver coisas novas, apenas em subjugar e cobrar tributos. Este ponto de vista é genericamente subscrito por Niall Ferguson em Civilization: The West and the Rest (recentemente traduzido para português), um panegírico da suposta superioridade cultural do ocidente sobre o oriente.

Ao invés, Fernandez-Armesto faz notar (1492: The Year Our World Began) que a passagem do Índico para o Atlântico era perigosa e pouco atraente. Porque haveriam os marinheiros chineses de arriscar-se a tornear a África e a percorrer um longo caminho marítimo para chegarem a uma região distante do mundo onde – sabiam-no bem – pouco havia que lhes interessasse? Pelo contrário, uma nação de fracos recursos como Portugal, situada nos confins da Euroásia e do seu próprio continente, tinha um forte incentivo para curto-circuitar as rotas tradicionais do comércio entre o ocidente e o oriente e, enfrentando grandes perigos, chegar à Índia pela rota do cabo. Mera análise custo-benefício, pois.

Landes detecta no episódio uma diferença de atitude cultural, à qual atribui a responsabilidade decisiva na viragem histórica que conduziu à hegemonia europeia duradoura sobre o planeta. Fernandez-Armesto sugere que essa disparidade é ela própria fruto de uma multiplicidade de circunstâncias geográficas, políticas, económicas, sociais e tecnológicas. Por outras palavras, havia muitas razões para os europeus sentirem curiosidade pelo Oriente, e quase nenhumas para os chineses se interessarem pela Europa. Qual das duas interpretações é então mais profunda: a de Landes ou a de Armesto?

Uma corrente hoje dominante entre os economistas sustenta, na esteira de Landes e Ferguson, que as diferenças de desenvolvimento entre países se explicam principalmente pelas suas culturas e pelas instituições que as corporizam – o que equivale, afinal, a reconhecer que, na sua essência, o desenvolvimento económico não é um fenómeno económico. Ninguém pode seriamente negar a importância desses factores, mas, como Armesto mostra, também eles exigem uma explicação. Há, de facto, suficiente evidência histórica para nos levar a pensar que as instituições são tanto causa como resultado desse mesmo desenvolvimento: por exemplo, a investigação científica é tanto motor do crescimento quanto resultado dele.

Não se pode, além disso, pretender que existe um conjunto bem definido de instituições e traços culturais ideais que todos deveremos obrigatoriamente copiar, dado que as mesmíssimas instituições se revelam excelentes em certos contextos e péssimas noutros. Se a população da Holanda trocasse connosco de lugar, ambos os povos teriam por força que rever em profundidade e com a máxima urgência as suas respectivas atitudes. É, por isso, absurda a ideia em voga de que nos desenvolveremos copiando as instituições da Irlanda, da Finlândia, da Coreia do Sul ou de qualquer outro país.

As instituições alheias não se macaqueiam: adoptam-se sob condição e depois adaptam-se por tentativa e erro. A ilusão de que pode ser vantajoso arrasar periodicamente o que existe para recomeçar do zero é, precisamente, uma característica distintiva de sociedades frágeis, que carecem de uma forte cultura partilhada e de instituições resistentes às contrariedades – por outras palavras, é um traço característico de sociedades subdesenvolvidas.

Publicado no Jornal de Negócios em 13 de Março de 2012

quinta-feira, 1 de março de 2012

Geraldo, um case-study

Como tantos outros que subiram na vida a pulso, Geraldo ora invocava origens humildes para realçar o seu mérito pessoal, ora insinuava uma vaga ascendência nobre de que fora misteriosamente separado pela força na infância.

Certo é que cresceu nas serranias entre os lobos, habituado a pernoitar ao relento, a suportar frio e calor extremos, comendo o que calhava. Ainda criança, juntou-se a bandos de ladrões que aterrorizavam aldeias isoladas das terras do Guadiana. Começou depois a acompanhar fossados de cavaleiros-vilões vindos de Santarém que penetravam fundo em território mouro, às vezes indo até às portas de Sevilha. Na volta, traziam consigo cativos, cavalos e rebanhos, mas também armas e moedas de ouro.

Geraldo não nascera para ser mandado, por isso em breve criou a sua própria mesnada. Inventou uma inovadora tática de assalto a povoações fortificadas à medida do feroz destemor que o movia. No inverno, recolhidos os outros bandidos às suas tocas, era quando ele se metia aos caminhos transportando enormes escadotes por léguas a fio e, no mais escuro da noite, de preferência sob pavorosa tempestade, degolava as sentinelas desprevenidas, chacinava os defensores, apoderava-se dos castelos e espoliava os habitantes.

Um letrado de Coimbra traçou-lhe num pedaço de pergaminho uma análise SWOT. Fez-lhe ver que a oportunidade residia no vazio administrativo e militar num vasto território que o conflito entre almorávidas e almóadas deixara ao abandono. Entre os pontos fortes destacou o conhecimento íntimo do terreno, a familiaridade com os dialectos locais e a ousadia sem limites. Para lisonjeá-lo, calou as fraquezas. Propôs-se redigir-lhe uma declaração de missão, visão e valores, mas Geraldo prescindiu dessa parte porque já seria a pagar.

No espaço de breves semanas, atacava em locais separados por mais de duzentos quilómetros à frente do seu bando, numa espécie de movimento browniano que atordoava as prezas. Trujillo, Évora, Cáceres, Montánchez, Serpa, Juromenha, Santa Cruz, Monfrague, Moura, Monsaraz, Alconchel e Lobón tombaram às suas mãos entre 1165 e 1168. Aos que lhe censuravam a ferocidade respondia que os players que não se adaptassem aos novos tempos seriam liquidados. E que julgavam esses pedantes poder ensinar-lhe, a ele que criava valor e emprego?

Reconheceu que enfrentar mil perigos para tomar cidades e logo depois abandoná-las era ineficiente e prejudicava o bottom-line. Concebeu por isso um novo modelo de negócio, consistente em vendê-las a quem mais oferecesse depois de conquistadas. Entre os seus melhores clientes contavam-se Rodríguez de Castro, fidalgo castelhano a quem cedeu Trujillo, e Afonso Henriques, que se apressou a comprar-lhe Évora – embora fossem frequentes as reclamações por atrasos nos deliverables.

Pensou depois reforçar a integração da cadeia de valor. Transformou Juromenha, um pobre refúgio fortificado, na base logística de um cluster de banditismo. Propôs em 1169 a Afonso Henriques uma joint-venture contra Badajoz para alavancar sinergias, mas a operação redundou num fracasso. O rei (Idfunsh ibn Al-Anrik, para os muçulmanos) fracturou uma perna, foi capturado, teve que devolver várias praças-fortes a troco da libertação, ficou inválido e culpou Geraldo do sucedido.

Persuadido de que errara ao descurar o core business e vendo o crescimento do bando minar a organização flat de que tanto se orgulhara, Geraldo optou pela internacionalização. No verão de 1176 passou-se com 350 homens de armas para Marrocos. Deram-lhe terras e riquezas, incluindo o comando militar de Tarudant, mas o seu espírito irrequieto não sossegou. Sempre orientado para os resultados, escreveu a Afonso Henriques apresentando-lhe uma nova proposta de valor e exortando-o a sair da sua zona de conforto para armar galeras e partir à conquista de Marrocos.

Descoberta a tramóia, Geraldo Geraldes, o Sem Pavor, foi convocado pelo califa de Marraquexe e sumariamente assassinado, provavelmente maldizendo a sina de ter nascido entre gente invejosa e piegas que não valoriza a iniciativa individual.

Publicado no Jornal de Negócios em 28.2.12