quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Um dique contra a estupidez

Há quem ache boa ideia inscrever na Constituição uma interdição genérica dos défices orçamentais tendo em vista impedir desvarios governativos. E que tal aprovar uma lei que obrigue os automobilistas a conduzirem algemados para prevenir manobras perigosas? Muito estúpido, certo?

Taxar algo ou alguém de estúpido é tido como desagradável, um non sequitur que bloqueia o debate e desencadeia uma escalada de insultos. As boas maneiras instituem assim um pudor de nomear a estupidez de que ela se aproveita para andar por aí à solta.

A leitura do debate que, a propósito da utilidade de se construírem estradas, opõe n' "A Morgadinha dos Canaviais" o Sr. Joãozinho, o Brasileiro e o Pertunhas sugere-nos que é muito mais difícil desmontar um argumento estúpido do que enfrentar um inteligente; logo, a estupidez tenderá a crescer mais rapidamente do que a nossa capacidade para contê-la. Da primeira vez que me apercebi disso entrei em pânico. Depois, consolei-me pensando que não é preciso perder demasiado tempo a discutir argumentos estúpidos porque as pessoas são intuitivamente capazes de recusá-los. Mas serão mesmo?

O tema da estupidez tem sido insuficientemente estudado nas suas causas e consequências. Platão discorreu sabiamente sobre a Verdade, o Belo, o Bem ou a Razão, mas omitiu a investigação do Estúpido (os diálogos com Alcibíades, em que o tema é aflorado, são considerado apócrifos), falha que desde então a filosofia ainda não corrigiu.

Embora tenhamos uma variedade de palavras para designar o estúpido - tolo, palerma, idiota, imbecil, parvo, pateta, simplório, medíocre, básico - damos pouca atenção às nuances de significado que implicam. Por exemplo, palermice é estupidez alardeada como coisa esplendorosa, com consistência e orgulho; mediocridade é estupidez grave, majestosa, quase respeitável; já a idiotice implica uma obsessão, uma intenção estratégica, e, frequentemente, um método.

Como Sophia de Mello Breyner observou, a própria inteligência pode ser colocada ao serviço da estupidez. Pode-se, por isso, fazer dela um modo de vida. Errou pois Carlo Cipolla na formulação da sua Terceira Lei da Estupidez: a florescente indústria da estupidez comprova que um estúpido não é forçosamente alguém que prejudica os outros sem ganhar nada com isso.

É útil a distinção que Musil introduziu entre a estupidez honrada ou genuína e a desonesta ou superior. A estupidez honrada resulta da limitada capacidade intelectual de quem a produz, e não tem remédio. Pelo contrário, a estupidez superior comporta uma cegueira interessada e interesseira. Alardeia saber tudo sobre todas as coisas importantes da vida, quando de facto as ignora. Não há domínio em que não se infiltre, nem ideal, por muito nobre, de que não consiga aproveitar-se. Pode ocasionalmente envergar as vestes da verdade. É uma doença espiritual que opera com total desrespeito pelos demais, uma pretensão de superioridade destituída de qualquer fundamento no conhecimento efectivo daquilo de que se fala. É filha da soberba, um pecado capital hoje muito tolerado.

As grandes tragédias humanas não resultam da ignorância, da cobiça ou da malvadez, mas da pura e simples estupidez. Não porque a maioria das pessoas seja estúpida, mas porque em situações de complexidade extrema nos tornamos vulneráveis à estupidez. Há poucas coisas mais poderosas que a estupidez que está na moda. A difusão da estupidez encontra-se aliás tão facilitada pelos meios de comunicação contemporâneos que ela dá a volta ao mundo enquanto a lucidez acaba de calçar as botas.

Flaubert, um persistente estudioso da estupidez humana, concluíu ao cabo de anos de aturada investigação: "Estupidez, egoísmo e boa saúde são as três condições da felicidade; se bem que, faltando a estupidez, tudo estará perdido." Agrada-lhe esse projeto de vida?

Seria estúpido buscar uma solução simples, rápida e eficaz para a estupidez, mas todos podemos exercitar a nossa capacidade de resistir ao seu contágio.

Evite dar ouvidos a monomaníacos, gente de uma só causa e uma só ideia. Mas não desconfie menos daqueles que estão sempre prontos a discorrer a todo o momento sobre qualquer assunto, sobretudo se forem vivos de espírito. Duvide de afirmações taxativas, unilaterais, lapidares. Procure conhecer as opiniões contrárias, principalmente aquelas de que à partida discorda. Lembre-se de que, se toda gente concorda com algo, provavelmente tratar-se-á de um erro.

Faça de conta que o mundo existe fora das suas opiniões. Pratique a ironia em relação às suas certezas pessoais. Ensaie pensamentos desconfortáveis. Duvide. Esqueça. Aprenda.

O cepticismo, outrora luxo de filósofos, é agora necessidade que todo o cidadão precisa de cultivar, sob pena de a estupidez tomar conta do mundo.


(Publicado no Jornal de Negócios em 7.9.11)