segunda-feira, 29 de março de 2010

PIIGS versus FUKD: dilemas do pensamento económico provinciano

É a situação financeira portuguesa comparável à da Grécia? Mais do que responder-lhe directamente – não é – importa compreeender que ambas, e também as da Espanha, da Irlanda e da Itália, têm causas comuns. Nesse sentido, tendo em conta o peso conjunto dos países envolvidos, não estamos perante um problema português, estamos perante um problema europeu.

Nas origens da presente situação encontra-se o desenho do sistema monetário europeu, cujas deficiências são hoje quase universalmente reconhecidas. Mas, se o consenso crítico é novo, não o são as objecções, expressas a tempo e horas por muitos e reputados economistas, com destaque para os americanos Robert Mundell e Paul Krugman e, entre nós, para João Ferreira do Amaral. Sustentavam eles, já então, que as disparidades entre os diversos países componentes da zona euro ameaçavam criar mais e não menos instabilidade monetária e financeira.

A essas críticas responderam na altura os politicos do velho continente e a Comissão Europeia com uma mão cheia de estudos argumentando que o euro traria substanciais ganhos de crescimento, comércio externo e emprego.

As dificuldades desde muito cedo experimentadas por Portugal deveriam ter funcionado como sinal de alerta. Em vez disso, recorreu-se a justificações ad-hoc de carácter predominatemente moralista, tendentes a culpar o comportamento supostamente irresponsável dos consumidores e do Estado.

Ora, o que se passou em Portugal era perfeitamente previsível à luz da mais elementar teoria económica: baixando rapidamente os juros, aumentou como consequência directa e imediata o endividamento dos particulares, das empresas e do Estado, ao mesmo tempo que baixava a poupança interna. Rareando a poupança interna, os bancos foram buscá-la ao exterior, daí resultando o rápido crescimento do endividamento externo. Tudo muito simples e fácil de entender.

Como se isso não bastasse, um outro choque externo de grandes proporções afectou quase em simultâneo a economia portuguesa: a entrada em força das exportações chinesas na Europa, complementada pelo livre acesso ao mesmo mercado dos países do leste. Sabe-se que essa circunstância afectou de modo desigual os países da União Europeia – menos os mais desenvolvidos, mais os da periferia económica e geográfica.

Mercê de uma estrutura económica frágil e pouco qualificada, a indústria portuguesa viu-se quase de um dia para o outro a competir com concorrentes chineses com custos laborais muito mais baixos e soçobrou. A Grécia sofreu menos de imediato, dados o grande peso que na sua economia têm os serviços ligados aos transportes marítimos e ao turismo e a sua fraca integração comercial na União Europeia. A Espanha, pelo seu lado, beneficiou transitoriamente de um brusco afluxo de capitais do Norte da Europa dirigidos ao imobiliário de vocação turística. Mas o problema de base estava lá, à espera de revelar-se.

O caso português é também sintomático na medida em que confirmou a impossibilidade em que os países europeus vítimas de choques assimétricos se encontravam de reagirem adequadamente. A fraca competitividade nacional não tem uma solução simples, muito menos rápida. Trata-se de qualificar as empresas e os trabalhadores de molde a habilitá-los a competirem em condições muito vantajosas, um esforço que só em finais da primeira década do século começou a produzir resultados visíveis, mas insuficientes. Entretanto, o défice externo conduziu ao aumento da dívida do país ao estrangeiro.

Ora, a integração na zona euro privou Portugal de instrumentos de política económica que o ajudassem a reagir às suas dificuldades. Não dispomos de política monetária própria, visto que não controlamos nem a quantidade de moeda em circulação, nem a taxa de juro, nem a taxa de câmbio, e a própria política orçamental encontra-se fortemente condicionada pelo impropriamente chamado Pacto de Estabilidade e Crescimento.

Tem-se falado muito do ganho de competitividade que Portugal poderia obter desvalorizando a sua moeda (se acaso ainda tivesse uma), mas a verdade é que isso apenas lhe permitiria ganhar algum tempo enquanto completa o processo de modernização da sua estrutura económica. Mas parece evidente que a taxa de juro deveria ser mais alta para podermos estimular a poupança e dissuadir o consumo excessivo. Nestas circunstâncias, alguns economistas trocam a discussão racional da política económica por sermões moralistas, antecipadamente votados ao fracasso, a favor da moderação e dos bons costumes.

Esta experiência de impotência nacional causada pelo modo como o sistema monetário europeu foi concebido e implementado, que nós temos vivido ao longo da última década, é agora partihada pelo conjunto dos países europeus depreciativamente designados por PIIGS (Portugal, Ireland, Italy, Greece, Spain). Mas é indispensável entender-se que a crise mundial apenas agravou o problema, não o criou.

Vivemos desde a última metade do ano passado a segunda fase da crise económica mundial revelada no fatídico mês de Agosto de 2007. O pior parece ter sido evitado a partir do momento em que intervenções massiva dos governos permitiram deitar mão a sistemas bancários à beira do colapso e estimular a procura intervindo em sectores e empresas e lançando investimentos públicos de emergência.

Um a um, os países começam a sair da recessão técnica, mas o crescimento permanece anémico e o desemprego não interrompeu a sua marcha ascendente. Em resumo, a situação permanece crítica e o paciente não está em condições de sair dos cuidados intensivos.

Eis, porém, que por todo o mundo se ergue um coro de protestos contra o rápido crescimento do endividamento dos estados e uma exigência de medidas urgentes para controlar a situação. Em resposta, Obama anunciou um programa de drástica redução da despesa pública nos EUA até ao final do seu mandato, ao mesmo tempo que a Comissão Europeia impôs aos membros da zona euro uma rápida contracção dos défices registados em 2009.

O centro das atenções deslocou-se, assim, para o problema das dívidas de países (também chamadas dívidas soberanas). As primeiras vítimas foram pequenos países europeus exteriores à zona euro, a começar pela Islândia, vítima de um verdadeiro acto de pirataria moderna. Seguiram-se-lhe a Lituânia e a Hungria, onde a União Europeia e o Banco Central Europeu orquestraram intervenções discretas e rápidas a instâncias dos bancos credores.

Com a Grécia, porém, o drama deslocou-se para o interior da zona euro. Ignora-se ao certo qual foi o déficite das contas públicas gregas em 2009 e nos anos anteriores, mas ninguém dúvida que foi enorme e que está descontrolado. A União Europeia quer a todo o custo que desça para os 3% no prazo de quatro anos, uma tarefa decerto impossível. Declarações de políticos europeus irresponsáveis e de especuladores interessados na subida do juro da dívida grega lançaram de novo o pânico nos mercados financeiros internacionais, com reflexos imediatos nas bolsas de todo o mundo.

Se a Grécia tivesse uma moeda própria, recorreria sem dúvida à política cambial e ao ajustamento da taxa de juro directora para começar a corrigir a situação. Como está amarrada ao euro, exige-se-lhe que ponha ordem na casa ao mesmo tempo que se lhe proibe que o faça. Acresce não estarem previstas nem no Tratado de Maastricht nem nos estatutos do BCE eventuais medidas de socorro a países membros em situações excepcionais.

Surge uma nova versão da teoria do dominó. A eventual bancarrota da Grécia aumentará a pressão sobre Espanha, Portugal e Itália e, em seguida, sobre outros países a braços com grandes desequilíbrios, tais como o Reino Unido e os EUA. Renascerão as dúvidas sobre a solvabilidade de grandes bancos, a começar pelos principais credores dos países em dificuldades.

A solução, pretendem os políticos conservadores de mão dada com os economistas ortodoxos, é inverter rapidamente a deterioração das contas públicas e regressar aos sãos princípios do equilíbrio orçamental. Quanto ao resto, argumentam, a retoma deverá basear-se na expansão do sector privado, não no investimento público.

Há aqui um perigoso paralelo com o que sucedeu na Grande Depressão dos anos 30, quando, aos primeiros sinais de estabilização, a retirada prematura dos apoios públicos à actividade económica provocou um novo e prolongado agravamento da situação. Travar bruscamente as ajudas governamentais quando tudo indica não estarem reunidas as condições para a retoma do consumo e do investimento privados é correr o risco de provocar o caos económico e político à escala mundial.

É necessário começar por afirmar com toda a clareza que, embora importante, a dívida não é tudo. Em primeiro lugar, o aumento do endividamento não é a causa dos problemas, mas um mero sintoma. Em segundo lugar, se o que conta é o nível da dívida em proporção do produto, uma quebra acentuada do produto pode contribuir para agravar ainda mais a situação ao contrair os recursos que permitiriam pagá-la. Em terceiro lugar, se às persistentes quebras do consumo e do investimento privado sem fim à vista somarmos a da despesa pública, o mundo pode entrar em colapso.

Todavia, não se pode negar que o endividamento, embora necessário de imediato, hipoteca as hipóteses de crescimento a longo prazo. Segundo Ken Rogoff, o crescimento de um país é seriamente afectado quando a sua dívida pública ultrapassa o patamar dos 90% do produto. Mais endividamento agora implica necessariamente mais impostos no futuro, a menos que ela não seja paga ou que a inflação a desvalorize.

Não podemos sobreviver sem crescimento da dívida a curto prazo, mas tampouco podemos ter esperança num futuro risonho sem diminuí-la a médio prazo. Navegando entre Cila e Caríbdis, temos que negociar habilmente a saída dos trabalhos em que nos encontramos metidos.

Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Húngria, entre outros – tal como, de resto, os EUA e o Reino Unido – apostam tudo no crescimento das suas exportações para sairem da crise. Fazem bem, porque as baixas taxas de poupança e os desequilíbrios comerciais que os afligem não lhes deixam outra via para escapar à estagnação. O problema é que os principais países que exibem supéravites persistentes e excessivos, como a China, o Japão e a Alemanha, também pensam salvar-se exportando cada vez mais. Estamos perante uma impossibilidade lógica: se alguém exporta é porque alguém importa; ao nível global é, portanto, impossível todos crescerem por essa via.

Renasce a ilusão que em 1931 alimentou o proteccionismo: desvalorizar a moeda, fechar os mercados na medida do possível à concorrência estrangeira, congelar ou baixar salários, facilitar despedimentos, reduzir a todo o custo a despesa pública, baixar impostos são outras tantas políticas que ameaçam contrair o comércio internacional e fazer a economia mundial mergulhar de novo no abismo da recessão. Se todos seguirem a receita, não haverá forma de evitá-lo.

Há poucas semanas, quando a crise grega atingiu o seu paroxismo e os mercados financeiros abanaram, os observadores mais ingénuos ou cegos redescobriram uma das leis fundamentais da economia, cujas origens remontam a Quesnay: a cada receita corresponde uma despesa, a cada dívida um empréstimo. Não é possível imaginar-se que a desgraça da Grécia possa deixar de afectar os seus parceiros económicos. Se a Grécia tem problemas para pagar, quem lhe emprestou terá problemas para receber. Se o poder de compra dos gregos se esboroar, isso prejudicará as empresas e os países que satisfaziam a sua procura.

Os problemas dos PIIGS têm como reverso da medalha as aflições dos FUKD (France, United Kingdom, Deutschland). É de crer que, mais dia menos dia, até a Srª Merkel compreenda que não é possível exportar Mercedes se não houver importadores de Mercedes. No fim, todos seremos em maior ou menor grau FUKD, seja qual for o país onde vivemos.

Repito: não há uma crise portuguesa, nem irlandesa, nem espanhola, nem grega, tampouco americana ou inglesa – mas uma crise europeia dentro de uma crise mundial. Acreditar no contrário pode servir para alimentar a politiquice interna, mas nada mais. Como Martin Wolf há semanas escreveu: “Enquanto o BCE tolerar uma procura fraca na eurozona no seu todo e enquanto os países nucleares, antes de mais a Alemanha, continuarem a manter vastos excedentes comerciais, será impossível que os membros mais fracos escapem à armadilha da insolvência. O problema deles não pode resolver-se pela mera austeridade fiscal. Precisam de uma acentuada melhoria na procura externa do seu produto.”

O provincianismo, entendido como aquela peculiar forma de miopia que consiste em ignorar o carácter global da presente crise, é, por conseguinte, o principal problema com que nos defrontamos. Decerto, Portugal necessita de conter e reduzir o seu défice público, mas com prudência e sem precipitações. Nas actuais circunstâncias, o essencial é que não sejamos ou não pareçamos demasiado mal comportados.

Todavia, não só isso não basta como nem sequer toca no essencial. A necessidade de reformar o sistema monetário europeu deve ser decididamente assumida e colocada em cima da mesa. Isso implica, desde logo, questionar os objectivos do BCE, que agora escandalosamente secundarizam o crescimento e o emprego; exigir maior transparência no seu funcionamento; e impor-lhe a obrigação de prestar contas. Em nenhum país importante possui o banco central um tal grau de independência em relação ao poder político e nenhum outro faz tão pouco caso de objectivos não especificamente monetários.

O euro não cumpriu boa parte das promessas que fez aos europeus. Não contribuíu para melhorar o crescimento económico em comparação com outros países, tal como não reduziu o desemprego. Mais surpreendentemente ainda, como faz notar Paul de Grouwe, a sua introdução não reforçou notoriamente a sincronização entre os ciclos económicos dos países membros.

Sabe-se há muito tempo que as dificuldades que as assimetrias entre peíses ou regiões podem criar a uma união monetária podem ser superadas através do reforço da união política.

Não faz sentido submeter os países membros a uma rígida disciplina financeira sem, em contrapartida, instituir mecanismos europeus de apoio àqueles que enfrentem dificuldades particulares. Mas é claro que a atribuição ao centro de uma tal função redistributiva implica que a União seja dotada de um orçamento capaz de fazer face a essas situações, muito acima dos parcos recursos que hoje lhe são atribuídos e eventualmente financiado pela emissão de euro-obrigações.

Essa centralização orçamental deveria por sua vez ser acompanhada de um reforço dos poderes do Parlamento Europeu por forma a assegurar o controlo democrático do processo político. O primado da economia será substituído pelo da política, como é de boa regra numa democracia bem formada.

As consequências destas reformas serão complexas, difíceis e profundas. Por isso mesmo, defrontar-se-ão com uma grande oposição, mas a resposta à presente crise da Europa não poderá vir senão da política europeia.

(Artigo publicado na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique de Março de 2010)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Desconstruindo a paranóia

Boris, o personagem central de Whatever Works, último filme de Woody Allen, tem uma visão azeda sobre o mundo: a religião não passa de um negócio, os americanos elegeram um presidente negro para evitarem ter um judeu, o amor é uma vigarice, a estupidez dos jovens vai destruir a raça humana e por aí fora. Só guarda uma opinião favorável de si próprio e daquilo que possa contribuir para confirmá-la.

Pelo seu lado, Melodie traz da small town America para Nova Iorque uma concepção do mundo igualmente fechada, mas de sinal contrário: provinciana, religiosa e orientada para os chamados “valores familiares”. O mesmo se poderia dizer de John e Marietta Celestine, os pais de Melodie que, inopinadamente, fazem a sua aparição em momentos críticos do enredo.

O interessante é a facilidade com que convicções aparentemente tão sólidas se esboroam ao primeiro embate com experiências não previstas no guião ideológico dos personagens. Boris, o auto-proclamado egoísta racional, dá guarida a uma rapariga a quem não reconhece de início dotes de inteligência, sensibilidade ou beleza, envolve-se emocionalmente com ela e acaba por desposá-la. Melodie, a rapariguinha estouvada que sonha com bailes de debutantes e rapazes atléticos e tontos, apaixona-se pela suposta superioridade intelectual de Boris; Marietta descobre uma vocação artística e adere a um menage à trois; e John conclui que toda a vida desejara ser gay sem o saber.

Há aqui um evidente padrão de pronta transmutação da rigidez ideológica em simpatia pela perspectiva contrária ao mínimo contacto com outras formas de ver as coisas. Os sujeitos mais desconfiados, lá dizia o bom do Cardeal de Retz, revelam-se sempre os maiores trouxas.

Dizem-me que, embora só agora o tenha filmado, Woody Allen criou o guião de Whatever Works há umas boas três décadas. Fez bem em esperar, pois no mundo de hoje afigura-se muito mais verosímil esta estranha combinação de crispação e permeabilidade nos comportamentos humanos.

O 11 de Setembro de 2001 constituíu um marco assinalável na consolidação do estado de espírito característico da nossa época, e que é em simultâneo de credulidade absoluta e desconfiança extrema. O fascínio da imagem do primeiro avião mergulhando nas torres gémeas pode ser assim imperfeitamente verbalizado: “Se isto é possível, então nada do que possamos imaginar está fora de cogitação e todos os perigos nos ameaçam.” Predispomo-nos a acreditar em tudo o que se afigure suficientemente ameaçador, desde a gripe das aves ao aquecimento global, desde o armamento nuclear iraniano à ruína do euro, não porque nos pareça verosímil, mas precisamente porque nos parece impossível, numa recuperação do “creio porque é absurdo” que Tertuliano definia como a essência da fé.

A obsessão contemporânea com a transparência é justificada como exigência irredutível da democracia: numa sociedade verdadeiramente governada pelo povo e para o povo não há lugar para o segredo, tudo deve ser continuamente escrutinado e explicado. Mas é pelo menos estranho que o clamor pela transparência cresça em vez de diminuir quando ela é indiscutível e incomparavelmente superior àquilo que alguma vez foi ao longo da história, incluindo a mais recente. Dir-se-ia que quanto maior a transparência, maior a suspeição.

Não se trata, é claro, de uma reivindicação racional, mas de um sintoma mórbido de uma situação cultural marcada pela incapacidade colectiva de lidar com a complexidade do mundo contemporâneo, esteja em causa a concessão de um terminal de contentores, a arbitragem do futebol ou a regulação do sistema bancário internacional. As nossas vivências fragmentadas pós-modernas inspiram crenças fragmentadas. A escassez de cultura partilhada bloqueia o diálogo e rigidifica posições.

Curiosamente, o filme de Woody Allen mostra-nos que essa situação pode ser superada na condição de alguém se revelar disposto a servir de via de comunicação entre mundos hostis. Em Whatever Works esse papel incumbe a Melodie, a agente de contaminação entre culturas que não receia passar por tola.

Num mundo hegemonizado pelo cinismo, a inocência é a suprema forma de coragem. Mas o suposto tolo poderá sempre invocar em sua defesa a máxima de Bacon: “Nada torna um homem mais desconfiado do que saber pouco”. E não foi, afinal, Alberto João Jardim quem veio reconhecer que, ao cabo de todos estes anos, ainda não conhecia bem o Primeiro Ministro?

(Publicado no Jornal de Negócios de 10.3.10)

A Cidade e as Serras

Na minha geração aprendia-se a ler em livros escolares povoados por uma pitoresca galeria de figuras campesinas conduzindo carros de bois, lavrando a terra com arados ou apascentando o gado, extravagantemente misturadas com humildes santinhos de pés descalços, intrépidos navegadores de quinhentos e sorridentes guerreiros medievais. Eram mínimas as referências ao mundo urbano: praticamente não se via prédios altos, nem automóveis, nem aviões.
Esta retrógrada fantasia icónica parecia estranha àqueles que, como eu, vivendo em Lisboa, só nas férias conviviam um pouco com a vida rural, mas guardava alguma relação, ficcionada embora, com o dia a dia de uma boa parte do povo português.

Passado meio século, habitamos um país totalmente distinto: reduziu-se drasticamente a parcela da população ocupada na agricultura, dilataram-se e modernizaram-se as principais cidades, cresceram a perder de vista os subúrbios. Dir-se-ia que, na esteira do mundo desenvolvido, também nós, tarde e a contragosto, nos convertemos numa sociedade urbana.

Sucede, porém, que, segundo as estatísticas disponíveis, Portugal permanece uma sociedade comparativamente pouco urbanizada. Em concreto, somos o país da Europa Ocidental e Central com mais baixos índices de concentração urbana. Não há como pôr números nas coisas: a população portuguesa residente em áreas urbanas ronda os 37%, contra, por exemplo, 67% na Itália e 77% na Espanha. A nossa taxa de urbanização será mesmo inferior à da Albânia em um ponto percentual.

Como todas as estatísticas, também estas terão alguma margem de erro, sendo a comparação com a Albânia especialmente difícil de engolir. Mas não duvidemos que a nossa taxa de urbanização não é meramente baixa – ela é patologicamente baixa.

Acresce que o tema não traz a nossa opinião pública preocupada como deveria. Bem pelo contrário, o que frequentemente se escuta por aí são queixas contra a macrocefalia do país ou o progressivo abandono de aldeias tradicionais perdidas no cocuruto de uma serra distante.

Acontece que a persistente dispersão da população portuguesa por uma miríade de vilas e aldeias espalhadas pelo território acarreta elevadíssimos custos sociais e motiva consideráveis perdas de produtividade. Fica caríssimo ao Estado levar estradas, escolas, cuidados médicos, electricidade, água e telecomunicações a uma população tão dispersa como a nossa, ainda por cima para, no final, lhe proporcionar um serviço que não pode deixar de ser medíocre.

Considere-se, por exemplo, o caso da educação. Cerca de dois terços das escolas portuguesas tinham há pouco tempo menos que 30 alunos, e um terço menos que 10. Por comparação, a França, país do G7 com o mais baixo indicador, tinha em média 166 alunos por escola. Ora, escolas minúsculas cumprem necessariamente mal a sua função educativa, sejam quais forem os critérios de avaliação utilizados.

Ao invés, as cidades são uma forma económica de organizar a vida em sociedade, visto que, aproximando as pessoas, reduzem custos de transacção e determinam rendimentos crescentes de proximidade. As cidades são mais eficientes do ponto de vista energético, porque reduzem os custo de transporte de pessoas e bens e estimulam o recurso ao transporte público. A proximidade das pessoas facilita a circulação de informação e conhecimento, a observação e cópia de boas experiências, o debate de ideias e a inovação. Nas cidades fomentam-se complementaridades produtivas, decisivas numa era em que o crescimento depende antes de mais da cooperação entre empresas e trabalhadores qualificados orientada para o desenvolvimento de novos processos e novos produtos.

Ora, não só nós temos poucas e pequenas cidades, como as nossas áreas metropolitanas, também elas muito dispersas, se encontram por isso mesmo mal habilitadas a proporcionar os ganhos de eficiência potenciais. Cidades mais densas são cidades mais produtivas; cidades dispersas diluem as vantagens da proximidade.

A preocupantemente baixa produtividade total dos factores da economia portuguesa decorre em boa parte deste deficiente padrão de ocupação e organização do território, fonte de desperdícios e encargos adicionais tanto para o Estado como para as empresas. Todavia, a intervenção dos poderes públicos, orientada por preconceitos injustificados e condicionada pelas pressões dos interesses locais, tem não raro sido hostil ao necessário esforço de concentração e qualificação urbana.
É, por isso, oportuno lembrar que poucas áreas de intervenção encerram um tão grande potencial de melhoria da competividade do país e de redução da sua dependência energética, contribuindo ao mesmo tempo para o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos.

(Publicado no Jornal de Negócios de 10.2.10)