segunda-feira, 18 de junho de 2012

Não se pode tomar banho duas vezes nas águas da mesma Europa

Lembrem-se. Angela Merkel proclamou há apenas dois anos que cada país da zona euro só poderia contar consigo mesmo para reequilibrar as suas finanças no rescaldo da recessão de 2009: nada de "bail-outs", nada de intervenções do BCE, nada de união fiscal e, além disso, nem pensar em pedir ajuda ao FMI. Em suma, cada um por si.

É inquestionável que a actuação errática do governo do mais poderoso país europeu, acossado pela xenofobia dos tablóides domésticos e pela intransigência do Tribunal Constitucional alemão, foi determinante no agravamento da presente crise.

Pelo caminho, não hesitou em subverter o funcionamento das instituições europeias. Tratados, procedimentos, regras de salutar convivência, vontade dos povos, soberania dos estados-membros, simples normas de boa educação, tudo isso foi posto de parte. A Alemanha é hoje um camião TIR a circular pelas auto-estradas europeias na noite escura, de luzes apagadas e fora da mão. Para cúmulo, Merkel adormece com frequência ao volante.

O resultado da imposição alemã foi mergulhar a Europa num estado generalizado de excepção. O combate aos vícios da indisciplina e da preguiça das raças católicas (Irlanda incluída) justifica e exige todas as punições, forçando-as, se necessário, a morrer acima das suas possibilidades. É preciso governar para alemão ver. Mas a estratégia revelou-se tão absurda que até em Berlim já há quem desconfie que não se pode ir ao bolso a um homem nu.

Fracassada a doutrina da "austeridade expansionista", a mais recente lengalenga é a compatibilização do crescimento com a austeridade. Infelizmente, acrescentam, não se pode decretar o crescimento. E que tal se se começasse por remover as políticas que o inibem, tais como o pacto orçamental, a contenção da procura interna nos países com baixos níveis de desemprego e as proibições de o BCE emprestar directamente aos estados e recapitalizar os bancos em dificuldades?

Dados os elevadíssimos níveis de endividamento públicos e privados, só há duas alternativas para reactivar a procura e relançar o crescimento: ou se espera vinte anos até que se complete a desalavancagem; ou se desvaloriza as dívidas e se imprime dinheiro para recapitalizar os bancos.

Embora, nas palavras de Martin Wolf, o pânico se tenha transformado, nas presentes circunstâncias de inacção europeia, na única reacção racional perante o progressivo afundamento da zona euro, há ainda quem acredite que o que tem de ser feito acabará por ser feito, uma vez esgotado o repertório de políticas insensatas.

Esta esperança afigura-se infundada, visto que um rearranjo racional da zona euro exigirá sempre profundas transformações políticas, que esbarrarão, em última análise, na oposição do tribunal constitucional alemão. A única moeda única que ele alguma vez reconhecerá será o euro do Reno.

Mas há um problema ainda mais grave do que esse. Fala-se muito em reconquistar a confiança dos mercados, mas o que irremediavelmente se destruiu na Europa foi a confiança dos cidadãos.
Sabemos hoje de ciência certa que a Alemanha, além de só cumprir os tratados e as leis da União Europeia quando lhe convém, tem ainda o poder de espezinhar as constituições dos estados-membros, de derrubar governos eleitos, de se sobrepor aos governos legítimos, de impor as políticas que mais lhe agradam, de forçar a ruptura dos contratos implícitos e explícitos entre os estados e os seus cidadãos. Como pode alguém confiar num parceiro assim?

A inocência, uma vez perdida, não se recupera. O idealismo não se fabrica. O sonho da cidadania europeia foi brutalmente aniquilado. A presunção de má-fé conduz inevitavelmente à desagregação. Liquidada a confiança nas elites europeias, está, de facto, bloqueado o caminho para o aprofundamento da união política.

Não se pode tomar banho duas vezes nas águas do mesmo rio, pois que o rio, entretanto, já não é o mesmo. O que se fez pode eventualmente ser desfeito, mas sempre deixará marcas. Espíritos obtusos, enfronhados no dogma, lentos a reagir, atolados na pasmaceira, adeptos de Parménides contra Heráclito, têm grande dificuldade em entender isto. "Verstehen sie mich wenn ich langsam spreche?"

Publicado em 18.6.12 no Jornal de Negócios

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Grátis!

"Grátis" é, segundo David Ogilvy, a palavra mais poderosa em publicidade. Toda a gente gosta de receber algo de graça, mesmo que de valor insignificante, como as calculadoras que são oferecidas aos novos assinantes de uma publicação que se decidam no prazo de quinze dias.

Quando, em plena Grande Depressão, procurava emprego em Nova Iorque, Lester Wunderman, o pai do marketing directo, lembrou-se de fazer aos potenciais empregadores uma proposta imbatível: pelo salário de uma só pessoa contratá-lo-iam a ele e ao irmão. Funcionou, porque "paga um e leva dois" (aritmeticamente equivalente a um desconto de 50%) dá a satisfação irresistível de se levar qualquer coisa à borla.

A fúria do grátis tomou conta da Internet, onde a imensa maioria da informação, do entretenimento e dos serviços disponíveis exibe um preço zero. A explicação económica do fenómeno reside na facilidade da cópia que, no mundo digital, aproxima os custos marginais do zero. Por isso, o modelo de negócio preferido na Net consiste em fazer pagar não os utilizadores, mas os anunciantes em busca de audiências a todo o preço.

A moda extravasou entretanto para o mundo "offline", e dir-se-ia que, ao menos aqui, Portugal está na vanguarda.

Tudo começou com a generalização dos estágios profissionais não remunerados, mediante os quais multidões de jovens são persuadidas a trabalhar anos a fio sem remuneração na esperança de um futuro radioso que jamais virá. Entretanto, ajudada pelo estranho espírito do tempo, essa estratégia de recursos humanos foi paulatinamente subindo na escala social.

E foi assim que, no ano passado, passámos a ter um Presidente da República grátis, quando Aníbal Cavaco Silva prescindiu do seu salário de supremo magistrado da nação para, em compensação, poder auferir uma reforma de valor bem mais elevado.

O exemplo vem de cima? Mais recentemente, o país ficou a saber que também o Presidente da Caixa Geral de Depósitos preferiu desistir do seu vencimento, degradado por regras que condicionam o que pode ser pago aos gestores de empresas públicas ou propriedade do estado. O expediente aqui encontrado foi mais original: Faria e Oliveira foi eleito Presidente da Associação Portuguesa de Bancos, bem mais generosa que o sector público a pagar quem a serve com lealdade.

Mas o caso mais interessante de gratuitidade é sem dúvida o de António Borges. Borges não tem em teoria nenhum cargo oficial no governo, visto ter sido contratado apenas para superintender no processo de privatizações. Na prática, percebe-se que o seu papel é suprir a notória incapacidade do actual ministro da Economia, retirando a Álvaro Santos Pereira um dos dossiês mais quentes. O arranjo só tem vantagens: Borges tem funções políticas, comporta-se como um político e dá entrevistas políticas; porém, não presta contas perante a opinião pública e, sobretudo, não se rebaixa a ganhar como um político.

Trata-se de um político e governante em "part-time", gentilmente cedido pela Fundação Champallimaud e pela Jerónimo Martins, entidades com liberdade para o remunerar como decerto merece. Digamos que praticam uma espécie de benemerência permitindo a um dos seus mais destacados quadros que exerça uma actividade "pro bono" em benefício de todos nós; ou, em alternativa, que patrocinam o Ministério da Economia pagando a um alto funcionário um vencimento que ele não está autorizado a desembolsar.

Um bocado confuso, não é? Sim, mas não absolutamente inédito se considerarmos a situação numa perspectiva histórica. No Antigo Regime, era corrente os altos funcionários do Estado pagarem pelo direito a ascenderem a certos cargos especialmente cobiçados pelo poder tanto real como simbólico de que se encontravam investidos.

Começamos assim a perceber onde nos leva a arruaça demagógica que, desde há tempos, se encarregou de empurrar cada vez mais para baixo os vencimentos dos titulares de cargos públicos e similares. Não tarda, ninguém oriundo da classe média poderá dar-se ao luxo de dedicar a sua vida à actividade política, seja como autarca, deputado, ministro ou Presidente da República. Tais posições só poderão ser assumidas por aqueles que, dispondo de fortuna pessoal ou de outros rendimentos de proveniência mais ou menos clara, possam dar-se ao luxo de trabalhar gratuitamente.

É isso o que queremos?

Publicado em 4.6.12 no Jornal de Negócios