"Grátis" é, segundo David Ogilvy, a palavra mais poderosa em
publicidade. Toda a gente gosta de receber algo de graça, mesmo que de
valor insignificante, como as calculadoras que são oferecidas aos novos
assinantes de uma publicação que se decidam no prazo de quinze dias.
Quando, em plena Grande Depressão, procurava emprego em Nova Iorque,
Lester Wunderman, o pai do marketing directo, lembrou-se de fazer aos
potenciais empregadores uma proposta imbatível: pelo salário de uma só
pessoa contratá-lo-iam a ele e ao irmão. Funcionou, porque "paga um e
leva dois" (aritmeticamente equivalente a um desconto de 50%) dá a
satisfação irresistível de se levar qualquer coisa à borla.
A
fúria do grátis tomou conta da Internet, onde a imensa maioria da
informação, do entretenimento e dos serviços disponíveis exibe um preço
zero. A explicação económica do fenómeno reside na facilidade da cópia
que, no mundo digital, aproxima os custos marginais do zero. Por isso, o
modelo de negócio preferido na Net consiste em fazer pagar não os
utilizadores, mas os anunciantes em busca de audiências a todo o preço.
A moda extravasou entretanto para o mundo "offline", e dir-se-ia que, ao menos aqui, Portugal está na vanguarda.
Tudo
começou com a generalização dos estágios profissionais não remunerados,
mediante os quais multidões de jovens são persuadidas a trabalhar anos a
fio sem remuneração na esperança de um futuro radioso que jamais virá.
Entretanto, ajudada pelo estranho espírito do tempo, essa estratégia de
recursos humanos foi paulatinamente subindo na escala social.
E foi assim que, no ano passado, passámos a ter um Presidente da República grátis, quando Aníbal Cavaco Silva
prescindiu do seu salário de supremo magistrado da nação para, em
compensação, poder auferir uma reforma de valor bem mais elevado.
O
exemplo vem de cima? Mais recentemente, o país ficou a saber que também
o Presidente da Caixa Geral de Depósitos preferiu desistir do seu
vencimento, degradado por regras que condicionam o que pode ser pago aos
gestores de empresas públicas ou propriedade do estado. O expediente
aqui encontrado foi mais original: Faria e Oliveira foi eleito
Presidente da Associação Portuguesa de Bancos, bem mais generosa que o
sector público a pagar quem a serve com lealdade.
Mas o caso mais interessante de gratuitidade é sem dúvida o de António Borges.
Borges não tem em teoria nenhum cargo oficial no governo, visto ter
sido contratado apenas para superintender no processo de privatizações.
Na prática, percebe-se que o seu papel é suprir a notória incapacidade
do actual ministro da Economia, retirando a Álvaro Santos Pereira um dos
dossiês mais quentes. O arranjo só tem vantagens: Borges tem funções
políticas, comporta-se como um político e dá entrevistas políticas;
porém, não presta contas perante a opinião pública e, sobretudo, não se
rebaixa a ganhar como um político.
Trata-se de um político e governante em "part-time", gentilmente cedido pela Fundação Champallimaud e pela Jerónimo Martins,
entidades com liberdade para o remunerar como decerto merece. Digamos
que praticam uma espécie de benemerência permitindo a um dos seus mais
destacados quadros que exerça uma actividade "pro bono" em benefício de
todos nós; ou, em alternativa, que patrocinam o Ministério da Economia
pagando a um alto funcionário um vencimento que ele não está autorizado a
desembolsar.
Um bocado confuso, não é? Sim, mas não
absolutamente inédito se considerarmos a situação numa perspectiva
histórica. No Antigo Regime, era corrente os altos funcionários do
Estado pagarem pelo direito a ascenderem a certos cargos especialmente
cobiçados pelo poder tanto real como simbólico de que se encontravam
investidos.
Começamos assim a perceber onde nos leva a arruaça
demagógica que, desde há tempos, se encarregou de empurrar cada vez mais
para baixo os vencimentos dos titulares de cargos públicos e similares.
Não tarda, ninguém oriundo da classe média poderá dar-se ao luxo de
dedicar a sua vida à actividade política, seja como autarca, deputado,
ministro ou Presidente da República. Tais posições só poderão ser
assumidas por aqueles que, dispondo de fortuna pessoal ou de outros
rendimentos de proveniência mais ou menos clara, possam dar-se ao luxo
de trabalhar gratuitamente.
É isso o que queremos?
Publicado em 4.6.12 no Jornal de Negócios
Descarada aldrabice
Há 8 horas
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