terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Se os portugueses tivessem um governo próprio

Se tivéssemos um governo próprio, eis o que ele poderia dizer à troika na próxima vez que ela nos visitasse:

"Meus senhores, escutámos nos últimos tempos declarações altamente relevantes de, por um lado, Christine Lagarde (Directora-geral do FMI) e Olivier Blanchard (economista principal do FMI), por outro, Durão Barroso (Presidente da Comissão Europeia), Claude Juncker (Presidente do Ecofin) e Martin Schulz (Presidente do Parlamento Europeu).

"Ora vejamos. Christine Lagarde sustentou já em Outubro do ano passado que os países europeus em dificuldades deveriam ter mais tempo para reduzir os seus défices: "Foi isso que advoguei para Portugal, foi isso que advoguei para a Espanha, e é isso que estamos a advogar para a Grécia". Mais recentemente voltou a insistir na ideia, desta vez apoiada no estudo assinado por Olivier Blanchard "Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers", onde se admite que "os multiplicadores fiscais se revelaram substancialmente maiores" do que os anteriormente estimados. Assim, reconhece agora o FMI que a subestimação do impacto da austeridade infligiu consideráveis danos às economias grega, portuguesa, italiana, espanhola e irlandesa, e que teve como resultado perverso o aumento dos rácios da dívida em relação ao produto de todos esses países.

"Além disso, o próprio Durão Barroso, que ainda em Outubro do ano passado advogara mais cortes orçamentais nos países do Sul em resposta às reticências manifestadas pelo FMI, sentiu-se agora na necessidade de negar publicamente que a União Europeia esteja por detrás das medidas de austeridade genericamente aplicadas no continente.

"As declarações mais contundentes vieram, porém, de Claude Juncker, Presidente cessante do Conselho dos Ministros das Finanças. Começou ele por contestar a legitimidade democrática de instituições como o BCE e o FMI para imporem medidas punitivas a certos países ao mesmo tempo que outros beneficiavam das fugas de capitais da Grécia para o exterior, concluindo que os ajustamentos "recaíram apenas sobre os mais fracos".

"Acrescentou que "o drama do desemprego tem sido subestimado" pela União Europeia e aconselhou ao seu sucessor que "escute todos os Estados-membros por igual", caso contrário terá muito de que se arrepender dentro de seis meses. Lamentou os resultados decepcionantes do último Conselho Europeu, que persiste em tomar decisões insuficientes e tardias.

"Concluiu, surpreendentemente, que "todos os países membros devem fixar um salário mínimo social" e acordar "numa base de direitos sociais mínimos para os trabalhadores", caso contrário a Europa perderá o apoio das classes trabalhadoras. Por último, pediu "um acordo sobre os elementos essenciais da solidariedade" ao nível europeu.

"Estamos plenamente conscientes de que o Parlamento Europeu não tem de momento grande peso na definição das políticas europeias. Ainda assim, é impossível ignorarmos o que o seu Presidente Martin Schulz disse na sua recente visita a Lisboa: "Austeridade pode ser exercício de autodestruição sem medidas pró-crescimento."

"Todas estas individualidades - de quem decerto já terão ouvido falar - convergem de modo inequívoco na conclusão de que as políticas de austeridade que têm vindo a ser aplicadas na Europa em geral e em Portugal em particular são erradas, destrutivas e contrárias aos propósitos declarados de controlar os défices públicos, conter o crescimento das dívidas soberanas, promover o crescimento e gerar emprego.

"Como compreendem, a opinião pública portuguesa fica confusa ao escutar estas afirmações dos dirigentes da União Europeia e do FMI, tão evidentemente opostas àquelas que até há pouco lhe eram apresentadas como indiscutíveis artigos de fé - e que nós próprios, aliás, aceitámos assumir perante os nossos concidadãos como inevitáveis e sem alternativa. Assim sendo, não poderemos estranhar que os portugueses comecem a perguntar-se se o governo que elegeram não terá andado a enganá-los no último ano e meio.

"Ora, se um povo desconfia da boa-fé do seu governo e se sente atraiçoado por ele, corre-se o maior dos riscos, que é o de uma irreversível e completa ruptura entre eleitos e eleitores, desembocando na perda de legitimidade e no caos político.

"Dito isto, somos forçados a perguntar-vos: quem representam os senhores nesta reunião? A União Europeia e o FMI ou apenas e só as vossas peculiaríssimas opiniões pessoais? Como é possível que representem essas instituições, se é público e notório que as únicas pessoas inequivocamente autorizadas para falarem em nome delas contrariam em público de forma clara e taxativa o que os senhores aqui procuram impor-nos?

"Têm os senhores a certeza de estarem mandatados para fazerem o que fazem e dizerem o que dizem? Estão seguros de que a vossa actuação é apoiada pelas organizações a que pertencem? Não vos incomoda pessoal, profissional e institucionalmente a ambiguidade desta situação?

"Não nos levem a mal. Porém, nestas circunstâncias, somos forçados a suspender todos os contactos convosco até que Christine Lagarde, Durão Barroso e o novo Presidente do Ecofin clarifiquem de uma vez por todas, de preferência por escrito, qual é de facto a orientação das instituições a que presidem. Até lá despedimo-nos de vós com amizade, esperando que tenham tido uma estada agradável no nosso bonito país."

Publicado no Jornal de Negócios em 22.1.13

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O que estamos nós a fazer aqui

Durante a maior parte da 2.ª Guerra Mundial, os alemães não mobilizados para a frente continuaram a levar uma vida normal, pois nunca faltaram matérias-primas às fábricas ou alimentos às famílias. A guerra trava-se lá longe, sem afectar o pacato quotidiano dos cidadãos. Os alemães não sabiam, nem cuidavam de saber, que a sua prosperidade assentava na pilhagem organizada dos recursos da Europa inteira.

"Não saber" o que não lhes convém saber é, como a actual crise europeia veio recordar-nos, um dos pontos fortes dos alemães. A Europa afunda-se na recessão duradoura, a pobreza renasce em países onde se tornara residual, metade dos jovens não encontra trabalho –, mas, na Alemanha, o Natal foi vivido na paz do Senhor, e isso é tudo o que importa.

Qualquer pessoa sensata entende que, um dia, o sofrimento chegará também à Alemanha. Não, desta vez, sob a forma de bombardeamentos mortíferos, mas de estagnação e desemprego induzidos pelo empobrecimento dos parceiros europeus, visto que 60% das exportações germânicas se dirigem à União Europeia e 40% à Zona Euro. Entretanto, como regularmente faz notar Wolfgang Munchau (colunista do Financial Times e ele próprio alemão), na República Federal reina a cegueira absoluta, imune aos avisos que chegam de todas as partes do mundo sobre a tacanhez da política adoptada por Angela Merkel.

O ponto inquestionável é que a União Europeia mudou de natureza, tornando-se numa coutada da Alemanha, a qual, mercê da sua dimensão geográfica, populacional, económica e financeira, se encontra de momento em condições de impor a sua vontade a todo o continente. Quanto maior o poder de que um país dispõe, mais necessário será que aja com autocontenção, mas a Alemanha parece apostada em demonstrar em todas as oportunidades ser um país em que ninguém pode confiar, dado que não só desrespeita os compromissos que assume, como infringe sempre que lhe convém as regras da União Europeia. Toda a gente se recorda como incumpriu o PEC; como ignorou as regras da concorrência socorrendo a sua indústria automóvel durante a recessão de 2009; como sabotou o funcionamento das instituições europeias; como condicionou publicamente a actuação do BCE; como se arrogou poderes de decisão que não lhe competem; como interferiu na política interna dos outros países membros, chegando ao ponto de fazer e desfazer governos; como, enfim, recentemente impôs o adiamento dos compromissos assumidos com os outros países em relação à projectada união bancária.

O que tem este novo Sacro Império Germânico que ver com a União Europeia que nos empenhámos em construir nas últimas décadas? Nada, como é evidente. Porque haveremos então de continuar a fingir que a União Europeia continua a existir? Os britânicos serão provavelmente os primeiros a decidir que não estão dispostos a ser comandados pela Alemanha, mas é possível que, a prazo, se lhe sigam a Itália, a Espanha e, por último, a própria França. Com a Alemanha ficarão decerto a Áustria (consumando por fim o adiado Anschluss) e a Holanda (uma gigantesca plataforma logística da Renânia-Vestefália). Quanto à Polónia, com uma longa experiência do que a casa gasta, não tardará a pôr-se a milhas.

Por cá reina a ilusória esperança de que, no intuito de salvar o euro, o bom senso acabará por ditar o aprofundamento da união, e que isso inevitavelmente implicará uma espécie de federação democrática. No horizonte dessa esperança encontram-se a união bancária, a união fiscal e a mutualização parcial das dívidas (vulgo eurobonds). No fim desse radioso caminho esperar-nos-ia, finalmente, a desejada união política. Valeria, assim, a pena sujeitarmo-nos a todas as sevícias concebidas pela troika. Sucede, porém, que, quando apreciou o Tratado de Lisboa, o Tribunal Constitucional Alemão recusou liminarmente a perspectiva da diluição da soberania germânica num futuro estado federal europeu. Nessas circunstâncias, o federalismo de que tanto se fala poderá ser burocrático e financeiro; mas jamais político, menos ainda democrático. Não haverá nele lugar para a consideração dos interesses particulares de povos como nós.

De 1910 até quase ao fim do século XX, Portugal cresceu quase sempre mais do que a Europa e, em particular, do que a Espanha. Dir-se-ia que, apesar de consideráveis erros cometidos ao longo de três regimes políticos diversíssimos, soubemos governar-nos. Foi então que optámos por subcontratar partes cada vez maiores da nossa política económica à União Europeia – processo coroado com a adesão ao euro – e o resultado está à vista.

Por muito nefasta que nos seja esta circunstância, não está evidentemente nas nossas mãos tomar agora a iniciativa de sair do euro. Mas um mínimo de lucidez recomenda que nos questionemos sobre o que estamos nós aqui a fazer – e que comecemos a ponderar, à luz dos nossos interesses geoestratégicos, que alianças alternativas deveremos buscar caso se confirme o presente rumo de desagregação da União Europeia.