terça-feira, 28 de agosto de 2012

A economia da trafulhice

O agressivo ataque do historiador Niall Ferguson a Barack Obama nas páginas da Newsweek – intitulado “Hit the Road, Barack”, ou seja “Põe-te a andar, Barack” – desencadeou nos últimos dias uma acesa polémica nos EUA. Mais do que na substância do argumento, porém, o debate centrou-se na falsificação ou truncagem de factos e fontes a que o autor recorreu para sustentá-lo.


Muito justamente, algumas pessoas perguntaram como foi possível que Ferguson não tivesse tido o cuidado de evitar erros tão grosseiros. Acaso não teme prejudicar a sua reputação nos meios académicos e jornalísticos?

Num comentário publicado no blogue de cultura da Esquire, Stephen Marche propõe uma inquietante explicação para o aparente enigma. Segundo ele, Niall Ferguson é em primeiro lugar um entertainer, e só secundariamente um académico e um jornalista. Cada uma das suas apresentações públicas custa a quem o contrata entre 50 a 75 mil dólares e a presente controvérsia aumenta, em vez de diminuir, a procura dos seus serviços pelos sectores republicanos mais extremistas.

Ferguson não tem, portanto, que ser respeitado pelos seus pares universitários; tampouco tem que ser admirado por quem se esforça por manter padrões elevados nos media. Basta-lhe ser idolatrado por aquela parte da opinião pública que prefere o pugilato ideológico ao debate de ideias. Acima de tudo, ele sabe que episódios como este contribuem para reforçar ainda mais o seu estatuto de celebridade e que isso, só por si, vale muito dinheiro.

Ora, não só o problema identificado por Marche não é exclusivo dos EUA, como ainda é lá e num punhado de outros países mais civilizados que subsistem instituições jornalísticas suficientemente fortes para conseguirem resistir à maré alta da degradação dos padrões do debate público. O comentário publicado entre nós oferece múltiplos exemplos de académicos e figuras ilustres de diversos meios profissionais que não hesitam em sacrificar a seriedade da argumentação ao protagonismo mediático.

O poder da notoriedade – isto é, da mera circunstância de se ser conhecido – não pode deixar de espantar. As pessoas tendem, ao que parece, a confiar mais em algo ou alguém pelo simples facto de a conhecerem ou julgarem conhecer. Notoriedade gera familiaridade e familiaridade gera, por sua vez, confiança. Descontando aquelas situações extremas em que a celebridade se encontra patentemente associada a traços repulsivos do sujeito em causa, a fama compensa na medida em que cria uma predisposição genérica favorável e facilita o acesso a gente influente e poderosa. Como afirmou Woody Allen, “80 por cento do sucesso consiste em simplesmente aparecer”. É inquestionável o valor económico da notoriedade.

O impacto da presença repetida sobre a simpatia radica provavelmente em factores biológicos. Segundo o psicólogo Robert Zajonc, a exposição repetida “permite a um organismo distinguir os objectos e os habitats seguros dos que o não são, fornecendo a base primitiva para os elos sociais. Constituem, por isso, a base da organização e da coesão social.” O problema é que o instinto pode enganar-nos, colocando-nos sob a influência de quem deveria antes suscitar-nos repulsa.

Seja como for, parece óbvio que os incentivos económicos descritos conduzem à desvalorização da importância da reputação ao mesmo tempo que favorecem a disseminação da trafulhice nos media. Haverá algum antídoto capaz de contrariar o perverso resultado desta análise custo-benefício?

Primeiro, as más notícias. Dan Ariely, o conhecido economista comportamental, acredita que a mera menção de incentivos monetários pode degradar a predisposição das pessoas para cooperarem umas com as outras com base em normas de boa conduta geralmente aceites. Por conseguinte, ambientes que estimulam ou meramente desculpabilizam a ambição pessoal levam os indivíduos a adoptarem uma atitude mais relaxada em relação à defesa da sua reputação de seriedade.

Por outro lado, o mesmo Ariely e mais dois investigadores conceberam uma experiência em que, imediatamente antes de os participantes terem a oportunidade de fazer batota sem serem detectados, foram confrontados com uma declaração recordando-lhes a importância do comportamento ético. O resultado foi a total ausência de comportamentos desonestos.

O que isto sugere é que a definição e divulgação de padrões de conduta apropriados e a intenção declarada de fazê-los aplicar podem ser suficientes para reduzir drasticamente os comportamentos desviantes. Os juramentos, as regras deontológicas e os códigos de ética e conduta empresariais talvez não sejam afinal tão ineficazes como por vezes se crê, na condição de que os seus princípios sejam largamente divulgados e frequentemente invocados pelos responsáveis das organizações.

Publicado no Jornal de Negócios em 28.8.12

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Fantasias orçamentais

Mais gente acredita que há muito desperdício na gestão dos recursos públicos do que no milagre de Fátima, e é sem dúvida fundada essa crença. Vai daí, quase toda a gente supõe também que a sua eliminação não só é fácil como prontamente garantiria o equilíbrio das contas públicas. Ora, aí, já a opinião pública está a entrar no reino da fantasia.

Se, para o cidadão comum, sem outra referência que o seu magro salário, uma despesa de um milhão de euros é uma quantia mirabolante, que diremos então de um milhar de milhão? Ora, como qualquer rubrica dos gastos públicos se mede na escala dos muitos milhões, percebe-se a dificuldade que esse mesmo cidadão tem em entender a sua relevância relativa à escala do país como um todo.

Quase todas as pessoas que conheço, incluindo muitas dotadas de razoável instrução económica, estão persuadidas de que não só as Parcerias Público-Privadas (PPP) são responsáveis por uma grossa fatia da despesa nacional, como a sua renegociação permitiria de facto evitar sacrifícios adicionais à população. Daí a sua surpresa quando são informadas de que os encargos líquidos anuais do Estado com as PPP se ficam pelos 0,3% do PIB, o que corresponde a uma pequena parcela do investimento público médio anual nas últimas décadas.

Resulta daqui evidente a ilusão de que a muito badalada renegociação das PPP poderá contribuir para uma redução considerável do défice. E note-se ainda que, se, em alternativa à renegociação, se optar pelo lançamento de uma sobretaxa adicional, dificilmente se poderá esperar um ganho superior a 0,04% do PIB.

Seria de supor que estas constatações bastassem para pôr cobro à cruzada demagógica pela eliminação das "gorduras do estado". Em vez disso, o governo optou há dias por uma nova caçada aos gambozinos, agora centrada nos encargos com as transferências para as fundações.

Segundo o levantamento efectuado, quase metade dos encargos do estado teriam sido encaminhados para a "fundação do Magalhães", mas sucede que, provindo eles de contribuições das operadoras de telecomunicações que não podiam ter outro destino, não custaram afinal um cêntimo aos contribuintes. Como o grosso das transferências para fundações correspondem na verdade ao financiamento público do ensino superior, conclui-se que, além de os cortes possíveis se reduzirem a algumas dezenas de milhões de euros anuais (estamos outra vez na escala dos 0,01% do PIB), o essencial deles incidirá no financiamento de actividades culturais. Compreende-se: se os Mirós da colecção do BPN vão ser leiloados, que fica cá a fazer a Paula Rego?

Uma outra variante de fantasia orçamental - esta mais popular à esquerda - imagina que o défice se curaria milagrosamente com um imposto extraordinário sobre as grandes fortunas. É facto que algumas pessoas detêm colossais rendimentos e patrimónios e que o nosso injusto sistema fiscal não os taxa como deveria. O problema é que, sendo essas pessoas muito poucas, não se pode esperar daí a salvação da pátria.

Imagine-se, por absurdo, que em vez de taxar as grandes fortunas, se optava antes por expropriar o património dos vinte e cinco portugueses mais ricos, recentemente avaliado em 14,4 mil milhões. Parece (e é) muito dinheiro, mas a sua comparação com o PIB nominal português, que presentemente ronda os 180 mil milhões de euros, mostra que o impacto sobre as finanças públicas de uma medida tão extrema e tão difícil de aplicar se esgotaria num ano.

Em resumo, não se atinge o equilíbrio orçamental com passes de mágica. É justo que quem mais tem mais contribua para o aumento das receitas do estado - o que decerto não tem acontecido -, mas não é por aí que se consegue a redução de 6 mil milhões de euros pretendida para 2013. Por outro lado, é importante que o estado use melhor os recursos colocados à sua disposição, mas ganhos de eficiência consistentes só se conseguem com trabalho sistemático, persistente e demorado, não com cortes precipitados ou com motivações obscuras. Se isso fosse fácil de fazer, decerto já estaria feito.

Já é suficientemente mau que uma gestão inepta das finanças públicas esteja a conduzir ao empobrecimento geral da população, da humilhação da classe média e da destruição de capacidade produtiva. Pior ainda, há sinais preocupantes de que iniciativas precipitadas impulsionadas por fanatismo ideológico e demagogia cega camufladas de combate às "gorduras do estado" estão a criar uma Administração Pública mais rígida, mais incompetente e mais ineficiente do que aquela que já tínhamos.

A cada dia que passa se torna mais evidente que sem crescimento económico é impossível controlar duradouramente o défice e estancar o endividamento. Tudo o resto é fantasia. Quando essa verdade for finalmente aceite, teremos perdido anos e destruído recursos e boa vontade numa escala sem precedentes.

Publicado em 14.8.12 no Jornal de Negócios