terça-feira, 14 de agosto de 2012

Fantasias orçamentais

Mais gente acredita que há muito desperdício na gestão dos recursos públicos do que no milagre de Fátima, e é sem dúvida fundada essa crença. Vai daí, quase toda a gente supõe também que a sua eliminação não só é fácil como prontamente garantiria o equilíbrio das contas públicas. Ora, aí, já a opinião pública está a entrar no reino da fantasia.

Se, para o cidadão comum, sem outra referência que o seu magro salário, uma despesa de um milhão de euros é uma quantia mirabolante, que diremos então de um milhar de milhão? Ora, como qualquer rubrica dos gastos públicos se mede na escala dos muitos milhões, percebe-se a dificuldade que esse mesmo cidadão tem em entender a sua relevância relativa à escala do país como um todo.

Quase todas as pessoas que conheço, incluindo muitas dotadas de razoável instrução económica, estão persuadidas de que não só as Parcerias Público-Privadas (PPP) são responsáveis por uma grossa fatia da despesa nacional, como a sua renegociação permitiria de facto evitar sacrifícios adicionais à população. Daí a sua surpresa quando são informadas de que os encargos líquidos anuais do Estado com as PPP se ficam pelos 0,3% do PIB, o que corresponde a uma pequena parcela do investimento público médio anual nas últimas décadas.

Resulta daqui evidente a ilusão de que a muito badalada renegociação das PPP poderá contribuir para uma redução considerável do défice. E note-se ainda que, se, em alternativa à renegociação, se optar pelo lançamento de uma sobretaxa adicional, dificilmente se poderá esperar um ganho superior a 0,04% do PIB.

Seria de supor que estas constatações bastassem para pôr cobro à cruzada demagógica pela eliminação das "gorduras do estado". Em vez disso, o governo optou há dias por uma nova caçada aos gambozinos, agora centrada nos encargos com as transferências para as fundações.

Segundo o levantamento efectuado, quase metade dos encargos do estado teriam sido encaminhados para a "fundação do Magalhães", mas sucede que, provindo eles de contribuições das operadoras de telecomunicações que não podiam ter outro destino, não custaram afinal um cêntimo aos contribuintes. Como o grosso das transferências para fundações correspondem na verdade ao financiamento público do ensino superior, conclui-se que, além de os cortes possíveis se reduzirem a algumas dezenas de milhões de euros anuais (estamos outra vez na escala dos 0,01% do PIB), o essencial deles incidirá no financiamento de actividades culturais. Compreende-se: se os Mirós da colecção do BPN vão ser leiloados, que fica cá a fazer a Paula Rego?

Uma outra variante de fantasia orçamental - esta mais popular à esquerda - imagina que o défice se curaria milagrosamente com um imposto extraordinário sobre as grandes fortunas. É facto que algumas pessoas detêm colossais rendimentos e patrimónios e que o nosso injusto sistema fiscal não os taxa como deveria. O problema é que, sendo essas pessoas muito poucas, não se pode esperar daí a salvação da pátria.

Imagine-se, por absurdo, que em vez de taxar as grandes fortunas, se optava antes por expropriar o património dos vinte e cinco portugueses mais ricos, recentemente avaliado em 14,4 mil milhões. Parece (e é) muito dinheiro, mas a sua comparação com o PIB nominal português, que presentemente ronda os 180 mil milhões de euros, mostra que o impacto sobre as finanças públicas de uma medida tão extrema e tão difícil de aplicar se esgotaria num ano.

Em resumo, não se atinge o equilíbrio orçamental com passes de mágica. É justo que quem mais tem mais contribua para o aumento das receitas do estado - o que decerto não tem acontecido -, mas não é por aí que se consegue a redução de 6 mil milhões de euros pretendida para 2013. Por outro lado, é importante que o estado use melhor os recursos colocados à sua disposição, mas ganhos de eficiência consistentes só se conseguem com trabalho sistemático, persistente e demorado, não com cortes precipitados ou com motivações obscuras. Se isso fosse fácil de fazer, decerto já estaria feito.

Já é suficientemente mau que uma gestão inepta das finanças públicas esteja a conduzir ao empobrecimento geral da população, da humilhação da classe média e da destruição de capacidade produtiva. Pior ainda, há sinais preocupantes de que iniciativas precipitadas impulsionadas por fanatismo ideológico e demagogia cega camufladas de combate às "gorduras do estado" estão a criar uma Administração Pública mais rígida, mais incompetente e mais ineficiente do que aquela que já tínhamos.

A cada dia que passa se torna mais evidente que sem crescimento económico é impossível controlar duradouramente o défice e estancar o endividamento. Tudo o resto é fantasia. Quando essa verdade for finalmente aceite, teremos perdido anos e destruído recursos e boa vontade numa escala sem precedentes.

Publicado em 14.8.12 no Jornal de Negócios

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