terça-feira, 31 de julho de 2012

Quem mexe os cordelinhos?

Como se justifica a mistura, na lista dos mais poderosos da economia portuguesa do Negócios, de figuras tão diversas como Mario Draghi, Isabel Jonet, Arménio Carlos, Ricardo Costa, Paulo Azevedo ou Hu Jintao?
 
E em que consiste, precisamente, o poder de que elas dispõem? Todas as definições em circulação convergem na ideia de que o poder reside na possibilidade de condicionar as acções e o pensamento dos outros de forma mais ou menos absoluta. Assim, há um poder de comando sobre recursos ou pessoas, resultante da fortuna ou da posição hierárquica; mas há também um poder de influência decorrente do estatuto, do encanto pessoal, da inteligência ou do acesso privilegiado aos meios de comunicação.

Mas o que podem exactamente os poderosos? Quando questionados a esse respeito, a resposta dos próprios variará consoante o momento e as circunstâncias. Assim, os proprietários dos media ora se ufanam de serem o "quarto poder", ora se declaram escravos das audiências (o que não deixa de comportar uma dose de verdade).

Algo semelhante se passa na política. É duvidoso que alguém suficientemente inocente para acreditar no poder quase ilimitado do cargo alguma vez chegue a primeiro-ministro. Mas, se isso porventura ocorresse, cedo se desenganaria. Não só no sentido trivial em que qualquer chefe de governo é condicionado pelas escolhas dos seus antecessores, mas também naquele outro, bem mais inquietante, de que, sob pena de paralisar o país, é literalmente forçado a avalizar muitas soluções antecipadamente congeminadas pelos representantes orgânicos dos mais variados poderes instituídos que o cercam.

Será diferente no sector privado? Está na moda, em resultado dos sucessivos escândalos dos últimos anos, acreditar-se que os banqueiros são pessoas moralmente mais deficientes do que o cidadão comum. Mas pode contra-argumentar-se com fundamento de que é a própria constituição do sistema financeiro que produz trapaceiros em tão larga escala. É claro que os indivíduos em causa poderiam recusar as regras do jogo, mas isso equivaleria a hipotecarem as suas chances de subirem na organização.

Embora a noção case mal com as ideias dominantes sobre a liberdade individual, a verdade é que, por regra, os poderosos não passam de agentes mais ou menos entusiastas, mais ou menos passivos, mais ou menos resignados de vastos poderes impessoais que, uma vez aceites, se apoderam das suas almas a ponto de os envolverem numa apertada teia de condicionamentos que, salvo um raro gesto heróico de recusa, os impelem numa via sem retorno. Por alguma razão, Marx intitulou a sua principal obra "O Capital", não "Os Capitalistas": na sua lúcida concepção, os segundos são meros agentes de um princípio activo que os transcende e que é, precisamente, o capital.

O poder autêntico não tem nome próprio nem lugar. É silencioso, impessoal, fáctico, imaterial. É uma força cega, implacável, que não conhece limites. Tem horror ao vazio, por isso ocupa todo o espaço que encontra livre. É um deus que premeia com largueza quem o serve e persegue ferozmente quem ousa contrariá-lo. Aprecia ser temido e adulado.

Mas falar de poder no singular é ainda um abuso de linguagem. O que há são poderes, não poder uno e indivisível. Pelos interstícios desses poderes consegue assim afirmar-se o arbítrio individual, servindo estes, combatendo aqueles ou jogando uns contra os outros –, ou seja, decidindo que partido tomará e com quem se aliará.

A ideia de que o poder emana de um lugar específico ou, ao menos, de um círculo restrito de pessoas, é apenas uma variante da teoria que interpreta tudo o que no mundo acontece como resultado de uma vasta conspiração concebida, produzida, realizada e trazida até nós por um clique de poderosos, algo a que com propriedade se poderia chamar "os donos de Portugal", aqueles que mexem os cordelinhos.

Qualquer listagem de poderosos vale antes de tudo como encenação do poder, que é o modo como o dito gosta de dar-se a conhecer, com que caras gosta de ser identificado, a imagem que a dado momento escolhe para se revelar aos crentes.

Figurar na lista dos mais poderosos pode não ser, por isso, uma posição lisonjeira. No mínimo, deveria provocar nos próprios um sobressalto e suscitar-lhes algumas interrogações, tais como "Que faço eu aqui?", "Que pacto assinei, quando, como e com quem?" ou, alternativamente, "Que mal fiz eu para merecer isto?"

Publicado em 31.7.12 no Jornal de Negócios

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Nenhum economista deveria poder viver acima das suas possibilidades governativas

Tirando uma breve interrupção durante a 2.ª Guerra Mundial, as importações portuguesas superaram sempre as exportações ao longo do século passado e dos primeiros anos do presente. Anuncia-se, porém, que está para breve – talvez já para 2013 – o restabelecimento do equilíbrio.

Como foi possível um período tão longo de défices crónicos? Será que vivemos todo esse tempo acima das nossas possibilidades? É possível que nunca tivéssemos tido uma economia competitiva? E que espécie de milagre é este que nos está agora a acontecer?

Durante a maior parte do século XVIII, o Brasil forneceu cerca de metade do ouro produzido em todo o mundo. A crença dominante, então como hoje, declara que essa riqueza foi desperdiçada comprando produtos estrangeiros em vez de usá-la para desenvolver a produção nacional. Mas isso equivale a ignorar que, a menos que se tivesse proibido a extracção e comercialização do ouro (poder de que a Coroa portuguesa flagrantemente carecia), era forçoso que fosse exportado (porque não havia procura bastante para ele cá dentro) e que em troca se recebesse outras mercadorias (já que não faria sentido permutar ouro por ouro ).

Quanto à ideia de utilizar parte dessas receitas para fortalecer a indústria nacional, foi exactamente o que o estado e os particulares tentaram fazer, dentro das limitações do país na época. Porque a indústria não se faz apenas com capital, mas também com matérias-primas, força de trabalho e conhecimentos técnicos, todos eles escassos no Portugal daquele tempo.

Este episódio da nossa história ilustra o efeito perturbador que uma circunstância razoavelmente imprevisível (neste caso, a descoberta do ouro) pode ter sobre o equilíbrio externo de uma economia. Dada a incontornável necessidade de se compensar o fluxo de saída do ouro com um outro de entrada de mercadorias, era inevitável que a balança comercial registasse um enorme défice. Quando, por fim, se esgotaram as reservas de ouro, ficámos impossibilitados de financiar o excesso de importações e o problema demorou muito tempo a ser resolvido.

Avançando para a actualidade, sabe-se que, a partir de 1910 e quase até ao final do século XX, Portugal logrou um crescimento sustentado do produto "per capita" a um ritmo comparativamente alto. Esse desempenho, criando expectativas elevadas, atraiu um volume considerável e persistente de investimento directo estrangeiro, dando origem a importações muito superiores às exportações para equilibrar a balança de pagamentos. Trata-se, note-se, de uma inevitabilidade contabilística: um fluxo líquido positivo de investimento estrangeiro tem obrigatoriamente que ser compensado por um défice da balança de transacções correntes. Logo, o nosso endémico défice externo não decorreu, a maior parte do tempo, de qualquer defeito estrutural da economia portuguesa, antes das expectativas optimistas dos estrangeiros em relação ao seu potencial de crescimento.

Um belo dia, porém, a partir de meados dos anos 90, a quase simultânea emergência de novas e gigantescas oportunidades no leste europeu, na China e na Índia desviou as atenções dos investidores internacionais de Portugal e abriu um grande buraco nas nossas contas externas. Se as economias fossem redutíveis a um sistema de equações, o ajustamento às novas circunstâncias far-se-ia de modo rápido e indolor manipulando alguns parâmetros. Porém, mesmo quando o entendimento do que se está a passar é imediato, nem a capacidade exportadora, nem a propensão à importação podem ser alteradas de um dia para o outro, de modo que a solução imediata é o endividamento enquanto se procede à reestruturação da economia para fazer face às novas circunstâncias.

A ausência de política monetária e cambial própria decorrente da integração do país no sistema monetário europeu tornou mais difícil o ajustamento, porque nem as famílias, nem as empresas, nem o próprio estado tinham incentivos para reajustarem os seus comportamentos às novas circunstâncias. Não se alterando os padrões de despesa, foi-se prolongando até hoje o excesso de importação.

É por tudo isto que um economista que se preza não se atreve a estabelecer uma relação simplista entre défice comercial e competitividade, pois sabe que uma economia pujante pode conviver durante décadas com uma balança de transacções deficitária. Tampouco recorre à linguagem moralista – "vivemos acima das nossas possibilidades" – para explicar um desequilíbrio persistente das contas externas, porque isso não contribui para o entendimento das suas causas, apenas para sugerir soluções que penalizam a parte mais vulnerável da população.

Podemos agora regressar às questões iniciais: Um défice externo é sempre consequência de uma falha de competitividade? – Não necessariamente. E pode esse desequilíbrio manter-se por muito tempo? – Às vezes, isso é não só possível como mesmo inevitável.

Uma economia relativamente pequena, frágil e excêntrica como a nossa enfrentou e ultrapassou várias vezes ao longo da sua história situações graves como aquela que agora vive. Mas é um engano acreditar-se que esta será superada como que por milagre, só porque uma população descrente interrompeu temporariamente as compras de automóveis e maquinaria que o país massivamente necessita de importar. A prosperidade não está ainda ao virar da esquina.

Publicado em 16.7.12 no Jornal de Negócios

segunda-feira, 2 de julho de 2012

O governo dos bancos, pelos bancos e para os bancos

A grande fome irlandesa de 1845 dizimou a população a tal ponto que jamais voltou a ser tão grande como então. Como a visão britânica dominante atribuía a catástrofe à preguiça e à inépcia dos nativos, os colonizadores rejeitaram os pedidos de ajuda argumentando que era preciso forçá-los a alterar atitudes culturais inadequadas.

Um século mais tarde, na Índia, os mesmos preconceitos voltaram a ser invocados pelos ingleses tanto para justificar a fome em Bengala como para recusar o auxílio massivo às populações afectadas. Neste como noutros casos, o sentimento de superioridade nacional apaziguou as consciências e disfarçou a desumanidade das atitudes. "Do que eles precisam não é de ajuda, mas de reformas."

Curiosamente, nem a Irlanda, nem a Índia, nem qualquer outro país voltou a padecer de fomes endémicas a partir do momento em que conquistou a independência e instalou um sistema democrático, provando que o problema não estava na carência de recursos, mas na sua distribuição. Definitivamente, a democracia não tolera a privação massiva.

Diz-se que toda a gente está interessada no desenvolvimento e que, por conseguinte, ninguém impõe por gosto políticas de austeridade que condenam as populações ao empobrecimento. "Ninguém deseja fazer mal às pessoas", eis a sonsa expressão que diariamente escutamos. Mas apenas os pobres necessitam de desenvolvimento; os ricos só precisam de criados.

Quase meia década decorrida desde o início da crise financeira, não só ela permanece sem fim à vista, como se assiste a uma intolerável operação de revisão da história recente tendente a ilibar os responsáveis e a culpar as vítimas. Pior ainda, o poder político efectivo é progressivamente retirado aos povos e transferido, pela mão dos bancos centrais, para os círculos financeiros cujo descontrolo nos trouxe até aqui. Já não escandaliza a ideia de meter a democracia na gaveta.

A doutrina oficial sustenta que o considerável poder do BCE deve ser posto ao serviço dos bancos, não dos cidadãos ou dos estados. Caridade para os primeiros, punição para os segundos. A sageza dos bancos centrais é-nos apresentada como o derradeiro baluarte contra as insensatas exigências da multidão representada por governos demasiado sensíveis à vontade popular.

Sempre que possível, os executivos saídos de eleições são substituídos por outros liderados por algum economista com o selo de garantia do BCE, do Goldman Sachs, do Lehman Brothers, ou equivalente. No mínimo, as pastas da economia e das finanças deverão ser entregues a um legítimo representante da corporação.

A independência dos bancos centrais não pode ser absoluta e incondicional, sob pena de dar origem a um contrapoder inaceitável numa sociedade democrática bem formada. Mas os banqueiros centrais – uma casta divorciada do sentimento do cidadão comum – julgam-se hoje no direito de impor aos governos nacionais as suas políticas preferidas, declarando-as, ainda por cima, inquestionáveis.

Afirmando-se detentores de saberes esotéricos, arrogam-se o direito de, sobrepondo-se a todos os poderes constitucionais, legislativos e judiciais existentes, ditarem o que deve ser feito em matérias tão graves como a gestão orçamental, a regulamentação dos mercados laborais, os regimes de pensões dos reformados ou as políticas de saúde e da educação, exorbitando largamente do mandato que lhes foi conferido.

A importância sistémica da banca justifica, ao que parece, tudo isto e muito mais. Além da protecção do sistema financeiro não legitimar o apoio ilimitado aos accionistas dos bancos, convém recordar que há outros riscos sistémicos sérios a considerar na presente situação. Isto deveria ser evidente para quem entende que acima das finanças está a economia e que a saúde dela depende da preservação e valorização da capacidade produtiva das empresas e dos recursos qualificados que elas empregam.

Quando o sistema financeiro se fecha sobre si próprio e se aliena da economia real, reclamando sangue, suor e lágrimas sem fim à vista, é caso para dizer-se que ele se tornou incompatível com a sobrevivência de uma economia de mercado sofisticada, orientada para a inovação, o emprego e o crescimento.

O desenvolvimento não é uma montanha de produtos, é um estado de civilização complexo que inclui como ingredientes essenciais uma população educada e saudável, liberdade individual e colectiva, oportunidades de enriquecimento espiritual e material, solidariedade na adversidade, relação harmoniosa com o ambiente e desígnios partilhados. Destruindo os genuínos suportes de uma economia sã, no final não restará nada –, mas, ao menos, tampouco haverá dívidas.

Publicado em 2.7.12 no Jornal de Negócios