segunda-feira, 2 de julho de 2012

O governo dos bancos, pelos bancos e para os bancos

A grande fome irlandesa de 1845 dizimou a população a tal ponto que jamais voltou a ser tão grande como então. Como a visão britânica dominante atribuía a catástrofe à preguiça e à inépcia dos nativos, os colonizadores rejeitaram os pedidos de ajuda argumentando que era preciso forçá-los a alterar atitudes culturais inadequadas.

Um século mais tarde, na Índia, os mesmos preconceitos voltaram a ser invocados pelos ingleses tanto para justificar a fome em Bengala como para recusar o auxílio massivo às populações afectadas. Neste como noutros casos, o sentimento de superioridade nacional apaziguou as consciências e disfarçou a desumanidade das atitudes. "Do que eles precisam não é de ajuda, mas de reformas."

Curiosamente, nem a Irlanda, nem a Índia, nem qualquer outro país voltou a padecer de fomes endémicas a partir do momento em que conquistou a independência e instalou um sistema democrático, provando que o problema não estava na carência de recursos, mas na sua distribuição. Definitivamente, a democracia não tolera a privação massiva.

Diz-se que toda a gente está interessada no desenvolvimento e que, por conseguinte, ninguém impõe por gosto políticas de austeridade que condenam as populações ao empobrecimento. "Ninguém deseja fazer mal às pessoas", eis a sonsa expressão que diariamente escutamos. Mas apenas os pobres necessitam de desenvolvimento; os ricos só precisam de criados.

Quase meia década decorrida desde o início da crise financeira, não só ela permanece sem fim à vista, como se assiste a uma intolerável operação de revisão da história recente tendente a ilibar os responsáveis e a culpar as vítimas. Pior ainda, o poder político efectivo é progressivamente retirado aos povos e transferido, pela mão dos bancos centrais, para os círculos financeiros cujo descontrolo nos trouxe até aqui. Já não escandaliza a ideia de meter a democracia na gaveta.

A doutrina oficial sustenta que o considerável poder do BCE deve ser posto ao serviço dos bancos, não dos cidadãos ou dos estados. Caridade para os primeiros, punição para os segundos. A sageza dos bancos centrais é-nos apresentada como o derradeiro baluarte contra as insensatas exigências da multidão representada por governos demasiado sensíveis à vontade popular.

Sempre que possível, os executivos saídos de eleições são substituídos por outros liderados por algum economista com o selo de garantia do BCE, do Goldman Sachs, do Lehman Brothers, ou equivalente. No mínimo, as pastas da economia e das finanças deverão ser entregues a um legítimo representante da corporação.

A independência dos bancos centrais não pode ser absoluta e incondicional, sob pena de dar origem a um contrapoder inaceitável numa sociedade democrática bem formada. Mas os banqueiros centrais – uma casta divorciada do sentimento do cidadão comum – julgam-se hoje no direito de impor aos governos nacionais as suas políticas preferidas, declarando-as, ainda por cima, inquestionáveis.

Afirmando-se detentores de saberes esotéricos, arrogam-se o direito de, sobrepondo-se a todos os poderes constitucionais, legislativos e judiciais existentes, ditarem o que deve ser feito em matérias tão graves como a gestão orçamental, a regulamentação dos mercados laborais, os regimes de pensões dos reformados ou as políticas de saúde e da educação, exorbitando largamente do mandato que lhes foi conferido.

A importância sistémica da banca justifica, ao que parece, tudo isto e muito mais. Além da protecção do sistema financeiro não legitimar o apoio ilimitado aos accionistas dos bancos, convém recordar que há outros riscos sistémicos sérios a considerar na presente situação. Isto deveria ser evidente para quem entende que acima das finanças está a economia e que a saúde dela depende da preservação e valorização da capacidade produtiva das empresas e dos recursos qualificados que elas empregam.

Quando o sistema financeiro se fecha sobre si próprio e se aliena da economia real, reclamando sangue, suor e lágrimas sem fim à vista, é caso para dizer-se que ele se tornou incompatível com a sobrevivência de uma economia de mercado sofisticada, orientada para a inovação, o emprego e o crescimento.

O desenvolvimento não é uma montanha de produtos, é um estado de civilização complexo que inclui como ingredientes essenciais uma população educada e saudável, liberdade individual e colectiva, oportunidades de enriquecimento espiritual e material, solidariedade na adversidade, relação harmoniosa com o ambiente e desígnios partilhados. Destruindo os genuínos suportes de uma economia sã, no final não restará nada –, mas, ao menos, tampouco haverá dívidas.

Publicado em 2.7.12 no Jornal de Negócios

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