segunda-feira, 16 de julho de 2012

Nenhum economista deveria poder viver acima das suas possibilidades governativas

Tirando uma breve interrupção durante a 2.ª Guerra Mundial, as importações portuguesas superaram sempre as exportações ao longo do século passado e dos primeiros anos do presente. Anuncia-se, porém, que está para breve – talvez já para 2013 – o restabelecimento do equilíbrio.

Como foi possível um período tão longo de défices crónicos? Será que vivemos todo esse tempo acima das nossas possibilidades? É possível que nunca tivéssemos tido uma economia competitiva? E que espécie de milagre é este que nos está agora a acontecer?

Durante a maior parte do século XVIII, o Brasil forneceu cerca de metade do ouro produzido em todo o mundo. A crença dominante, então como hoje, declara que essa riqueza foi desperdiçada comprando produtos estrangeiros em vez de usá-la para desenvolver a produção nacional. Mas isso equivale a ignorar que, a menos que se tivesse proibido a extracção e comercialização do ouro (poder de que a Coroa portuguesa flagrantemente carecia), era forçoso que fosse exportado (porque não havia procura bastante para ele cá dentro) e que em troca se recebesse outras mercadorias (já que não faria sentido permutar ouro por ouro ).

Quanto à ideia de utilizar parte dessas receitas para fortalecer a indústria nacional, foi exactamente o que o estado e os particulares tentaram fazer, dentro das limitações do país na época. Porque a indústria não se faz apenas com capital, mas também com matérias-primas, força de trabalho e conhecimentos técnicos, todos eles escassos no Portugal daquele tempo.

Este episódio da nossa história ilustra o efeito perturbador que uma circunstância razoavelmente imprevisível (neste caso, a descoberta do ouro) pode ter sobre o equilíbrio externo de uma economia. Dada a incontornável necessidade de se compensar o fluxo de saída do ouro com um outro de entrada de mercadorias, era inevitável que a balança comercial registasse um enorme défice. Quando, por fim, se esgotaram as reservas de ouro, ficámos impossibilitados de financiar o excesso de importações e o problema demorou muito tempo a ser resolvido.

Avançando para a actualidade, sabe-se que, a partir de 1910 e quase até ao final do século XX, Portugal logrou um crescimento sustentado do produto "per capita" a um ritmo comparativamente alto. Esse desempenho, criando expectativas elevadas, atraiu um volume considerável e persistente de investimento directo estrangeiro, dando origem a importações muito superiores às exportações para equilibrar a balança de pagamentos. Trata-se, note-se, de uma inevitabilidade contabilística: um fluxo líquido positivo de investimento estrangeiro tem obrigatoriamente que ser compensado por um défice da balança de transacções correntes. Logo, o nosso endémico défice externo não decorreu, a maior parte do tempo, de qualquer defeito estrutural da economia portuguesa, antes das expectativas optimistas dos estrangeiros em relação ao seu potencial de crescimento.

Um belo dia, porém, a partir de meados dos anos 90, a quase simultânea emergência de novas e gigantescas oportunidades no leste europeu, na China e na Índia desviou as atenções dos investidores internacionais de Portugal e abriu um grande buraco nas nossas contas externas. Se as economias fossem redutíveis a um sistema de equações, o ajustamento às novas circunstâncias far-se-ia de modo rápido e indolor manipulando alguns parâmetros. Porém, mesmo quando o entendimento do que se está a passar é imediato, nem a capacidade exportadora, nem a propensão à importação podem ser alteradas de um dia para o outro, de modo que a solução imediata é o endividamento enquanto se procede à reestruturação da economia para fazer face às novas circunstâncias.

A ausência de política monetária e cambial própria decorrente da integração do país no sistema monetário europeu tornou mais difícil o ajustamento, porque nem as famílias, nem as empresas, nem o próprio estado tinham incentivos para reajustarem os seus comportamentos às novas circunstâncias. Não se alterando os padrões de despesa, foi-se prolongando até hoje o excesso de importação.

É por tudo isto que um economista que se preza não se atreve a estabelecer uma relação simplista entre défice comercial e competitividade, pois sabe que uma economia pujante pode conviver durante décadas com uma balança de transacções deficitária. Tampouco recorre à linguagem moralista – "vivemos acima das nossas possibilidades" – para explicar um desequilíbrio persistente das contas externas, porque isso não contribui para o entendimento das suas causas, apenas para sugerir soluções que penalizam a parte mais vulnerável da população.

Podemos agora regressar às questões iniciais: Um défice externo é sempre consequência de uma falha de competitividade? – Não necessariamente. E pode esse desequilíbrio manter-se por muito tempo? – Às vezes, isso é não só possível como mesmo inevitável.

Uma economia relativamente pequena, frágil e excêntrica como a nossa enfrentou e ultrapassou várias vezes ao longo da sua história situações graves como aquela que agora vive. Mas é um engano acreditar-se que esta será superada como que por milagre, só porque uma população descrente interrompeu temporariamente as compras de automóveis e maquinaria que o país massivamente necessita de importar. A prosperidade não está ainda ao virar da esquina.

Publicado em 16.7.12 no Jornal de Negócios

Sem comentários: