Tirando uma breve interrupção durante a 2.ª Guerra Mundial, as
importações portuguesas superaram sempre as exportações ao longo do
século passado e dos primeiros anos do presente. Anuncia-se, porém, que
está para breve – talvez já para 2013 – o restabelecimento do
equilíbrio.
Como foi possível um período tão longo de défices
crónicos? Será que vivemos todo esse tempo acima das nossas
possibilidades? É possível que nunca tivéssemos tido uma economia
competitiva? E que espécie de milagre é este que nos está agora a
acontecer?
Durante a maior parte do século XVIII, o Brasil
forneceu cerca de metade do ouro produzido em todo o mundo. A crença
dominante, então como hoje, declara que essa riqueza foi desperdiçada
comprando produtos estrangeiros em vez de usá-la para desenvolver a
produção nacional. Mas isso equivale a ignorar que, a menos que se
tivesse proibido a extracção e comercialização do ouro (poder de que a
Coroa portuguesa flagrantemente carecia), era forçoso que fosse
exportado (porque não havia procura bastante para ele cá dentro) e que
em troca se recebesse outras mercadorias (já que não faria sentido
permutar ouro por ouro ).
Quanto à ideia de utilizar parte dessas
receitas para fortalecer a indústria nacional, foi exactamente o que o
estado e os particulares tentaram fazer, dentro das limitações do país
na época. Porque a indústria não se faz apenas com capital, mas também
com matérias-primas, força de trabalho e conhecimentos técnicos, todos
eles escassos no Portugal daquele tempo.
Este episódio da nossa
história ilustra o efeito perturbador que uma circunstância
razoavelmente imprevisível (neste caso, a descoberta do ouro) pode ter
sobre o equilíbrio externo de uma economia. Dada a incontornável
necessidade de se compensar o fluxo de saída do ouro com um outro de
entrada de mercadorias, era inevitável que a balança comercial
registasse um enorme défice. Quando, por fim, se esgotaram as reservas
de ouro, ficámos impossibilitados de financiar o excesso de importações e
o problema demorou muito tempo a ser resolvido.
Avançando para a
actualidade, sabe-se que, a partir de 1910 e quase até ao final do
século XX, Portugal logrou um crescimento sustentado do produto "per
capita" a um ritmo comparativamente alto. Esse desempenho, criando
expectativas elevadas, atraiu um volume considerável e persistente de
investimento directo estrangeiro, dando origem a importações muito
superiores às exportações para equilibrar a balança de pagamentos.
Trata-se, note-se, de uma inevitabilidade contabilística: um fluxo
líquido positivo de investimento estrangeiro tem obrigatoriamente que
ser compensado por um défice da balança de transacções correntes. Logo, o
nosso endémico défice externo não decorreu, a maior parte do tempo, de
qualquer defeito estrutural da economia portuguesa, antes das
expectativas optimistas dos estrangeiros em relação ao seu potencial de
crescimento.
Um belo dia, porém, a partir de meados dos anos 90, a
quase simultânea emergência de novas e gigantescas oportunidades no
leste europeu, na China e na Índia desviou as atenções dos investidores
internacionais de Portugal e abriu um grande buraco nas nossas contas
externas. Se as economias fossem redutíveis a um sistema de equações, o
ajustamento às novas circunstâncias far-se-ia de modo rápido e indolor
manipulando alguns parâmetros. Porém, mesmo quando o entendimento do que
se está a passar é imediato, nem a capacidade exportadora, nem a
propensão à importação podem ser alteradas de um dia para o outro, de
modo que a solução imediata é o endividamento enquanto se procede à
reestruturação da economia para fazer face às novas circunstâncias.
A
ausência de política monetária e cambial própria decorrente da
integração do país no sistema monetário europeu tornou mais difícil o
ajustamento, porque nem as famílias, nem as empresas, nem o próprio
estado tinham incentivos para reajustarem os seus comportamentos às
novas circunstâncias. Não se alterando os padrões de despesa, foi-se
prolongando até hoje o excesso de importação.
É por tudo isto que
um economista que se preza não se atreve a estabelecer uma relação
simplista entre défice comercial e competitividade, pois sabe que uma
economia pujante pode conviver durante décadas com uma balança de
transacções deficitária. Tampouco recorre à linguagem moralista –
"vivemos acima das nossas possibilidades" – para explicar um
desequilíbrio persistente das contas externas, porque isso não contribui
para o entendimento das suas causas, apenas para sugerir soluções que
penalizam a parte mais vulnerável da população.
Podemos agora
regressar às questões iniciais: Um défice externo é sempre consequência
de uma falha de competitividade? – Não necessariamente. E pode esse
desequilíbrio manter-se por muito tempo? – Às vezes, isso é não só
possível como mesmo inevitável.
Uma economia relativamente
pequena, frágil e excêntrica como a nossa enfrentou e ultrapassou várias
vezes ao longo da sua história situações graves como aquela que agora
vive. Mas é um engano acreditar-se que esta será superada como que por
milagre, só porque uma população descrente interrompeu temporariamente
as compras de automóveis e maquinaria que o país massivamente necessita
de importar. A prosperidade não está ainda ao virar da esquina.
Publicado em 16.7.12 no Jornal de Negócios
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