sábado, 15 de junho de 2013

Esta é a carta que nunca te escrevi.



O nosso João nasceu em 8 de Agosto de 1950, no Porto, cidade que sempre fez parte da sua identidade. 
No dia em que nasceu, o seu pai, o Engenheiro Francisco Almeida e Castro, Presidente da CP, homem pelo qual sempre nutriu a mais profunda admiração e respeito, estava nos Estados Unidos, num comboio a caminho de Chicago, preso durante dias numa tempestade de neve, viagem essa que resultou na introdução em Portugal da primeira locomotiva diesel.

Era ainda criança quando a família se mudou para Lisboa, cidade que amou profundamente, e onde cresceu e viveu quase toda a sua vida.
O Zinho, como a família sempre o chamou, corria e brincava na zona da Av. Roma e frequentou o Liceu Camões onde foi um aluno exemplar.
Enquanto jovem revelou ter um assinalável jeito para o desenho e um sentido estético apurado que facilmente poderia tê-lo levado a ter se tornado num grande artista plástico, facto facilmente comprovável pelos seus inúmeros desenhos e pequenas pinturas que há poucos anos reencontrei, arrumados numa velha caixa.

Educado em piano clássico por uma querida professora que mais tarde veio ser também minha e da minha irmã, a música sempre teve uma importância enorme para ele. Na nossa casa a música inundava constantemente o espaço, paixão visível pela forma como coleccionava LP’s, como se fossem a banda sonora da nossa felicidade.

Foi já na Faculdade de Economia que conheceu a senhora minha mãe, mulher carinhosa e de forte carácter, que desde o primeiro momento amou de forma sempre leal e honesta. Juntos partilharam as alegrias e dificuldades da vida, próprias de um jovem casal. 

Enquanto estudantes, envolveram-se activamente na luta política contra o regime fascista, da qual não faltam histórias absolutamente fantásticas algumas que ele próprio nos contou e outras que ainda vou descobrindo nos relatos de alguns dos seus bons amigos.

Várias vezes teve a grandeza de agir de forma contra-intuitiva, em nome da liberdade de pensamento que sempre defendeu com unhas e dentes.

3 anos após a revolução, teve o seu primeiro filho, eu, e passados 3 anos teve uma filha, a menina dos seus olhos, a minha irmã Inês.
Connosco sempre tratou de forma carinhosa, sempre um bom pai, sempre nos deu todas as oportunidades. 


O seu percurso profissional levou-o ao Marketing e à Publicidade, passando pela Direcção de Marketing de grandes empresas internacionais como a Ogilvy e a Wunderman e culminando na criação de uma Agência de sucesso, a Interact e mais recentemente na Ology, onde tive a enorme sorte de trabalhar a seu lado.

Guardo com muito carinho e saudade estes últimos 3 anos que passámos juntos, diariamente, e em que tanto me ensinou. Feliz circunstância essa em que, no auge da crise, perdi o meu emprego em Londres, o que me trouxe de volta a Portugal, de volta ao meu Pai e à senhora minha Mãe. Feliz circunstância essa que me permitiu este período em que reaprendi a estar com eles, a valorizá-los mais e a encontrá-los, em mim.

Possuidor de uma cultura absolutamente enciclopédica, que toda a vida alimentou consumido livros, música e cinema a uma velocidade estonteante, o João tornou-se conhecido na sua vida profissional pela verticalidade de princípios, pelo imenso respeito pelos outros, pelo seu altruísmo militante e pelo compromisso absoluto de continuamente se superar enquanto homem.

Era um homem pacifico, mas nunca conformado, sempre exigente com a vida e com os outros na mesma proporção em que era exigente consigo próprio. 
De entre as suas excepcionais qualidades sempre me impressionou a sua capacidade de sintetizar assuntos complicadíssimos, de resolver a complexidade sem qualquer esforço aparente. Como um artista que resolve tudo com um só gesto.

Sempre cuidado na sua presença, sempre ponderado nas suas palavras, o João era um verdadeiro alquimista no uso da palavra. 
Apreciava o discurso da mesma forma que sabia apreciar o silêncio.
Sabia ouvir os outros, era tolerante, e aceitava a diferença como ninguém.
Não se impunha, entendia e respeitava o espaço de cada um.
Era um grande conversador, um verdadeiro contador de histórias.
Vamos ter muitas saudades de o ouvir e de o ler. 
Da sua voz e da alegria que disponibilizava em tudo o que fazia.

Era um homem que amava ensinar e que se envolvia como um pai no percurso dos muitos alunos que tiveram a sorte de o ter como professor. Sei agora como essa forma de se relacionar com os alunos era apreciada e por isso reciproca.

O João era um homem que nunca se demitiu das suas responsabilidades.
Há uns dias, pedi-lhe que delegasse em mim os compromissos profissionais que o apoquentavam.  E ele disse: “ Não filho, em Julho, quando eu estiver melhor, eu próprio tratarei dos assuntos pendentes e de ver os trabalhos dos meus alunos.”

Na fase final da sua doença, é assinalável o enorme prazer que retirava das visitas dos seus amigos. As conversas com os amigos pareciam um remédio milagroso, e não fora o cansaço físico dir-se ia que estava encontrada a cura que o traria de volta.

Faltam-me as palavras para descrever a forma incrível como se manteve lúcido até aos últimos dias em que a vida o traiu. Impressionou-nos a forma como nunca se queixou da sua má sorte. Como manteve sempre a sua elevação e o seu acutilante sentido de humor. 

No meu aniversário, no passado dia 5 de Junho, ele estava, fraco, deitado numa cama de hospital, e eu aproximei-me dele e disse-lhe:
“Parabéns querido pai, faz hoje 36 anos que me tiveste. Lindo serviço!” 
Ao que ele me respondeu na sua doce e já algo debilitada voz: 
“Sabes André, foi o que se pôde arranjar.”

O nosso João nunca desistiu de viver. Caiu de pé como todos os grandes homens.
Defendeu as muralhas da cidade como ninguém, lutando como um herói, pronto a dar tudo pela sua família, pelos seus amigos e por tudo aquilo em que acreditava.
Nunca falou da morte talvez por não acreditar nela. 
Nunca mostrou uma pinga de medo. 
E isso é para mim a verdadeira imortalidade.

Da enorme tristeza de o ver partir, sobra-nos o alivio que sentimos de saber do fim do seu sofrimento e resta-nos a eterna saudade. 
É hoje nossa obrigação manter a sua memória viva aprendendo com ele a viver a vida até ao último momento, sempre com a máxima dignidade e amor pelo próximo.

Esta é a carta que nunca te escrevi.

Até já querido amigo,
André Castro


Professor Doutor João Manuel Pinto e Castro 08/08/1950 – 14/06/2013





Sua mulher Maria Regina Lourenço Ferreira, seus filhos André Ferreira e Castro e Inês Ferreira de Castro, sua mãe Maria Alice Torres Pinto de Castro, sua irmã Maria Leonor Pinto e Castro e demais família, participam o falecimento do seu ente querido na sequência de doença prolongada.

terça-feira, 19 de março de 2013

A guerra dos sabe-se lá quantos anos

"Quanto tempo vai isto ainda durar?" – eis a pergunta que hoje todos se colocam. Infelizmente, a resposta não pode ser senão: "A permanecer o actual curso das coisas, muitos e muitos anos." Vejamos porquê.
 
Há uma crise mundial e há uma crise especificamente europeia, muito distintas embora com uma raiz comum. A mundial, que deflagrou vai para seis anos ao rebentar a bolha do subprime, não tem uma única origem, mas várias. Uma das mais relevantes é o elevadíssimo nível de dívida acumulado pelas famílias, pelas empresas e pelos estados. Essa circunstância decorre, por sua vez, de nas últimas décadas os bancos centrais e, por maioria de razões, os estados terem perdido o controlo sobre a expansão do sistema financeiro global.

O dinheiro é uma coisa que se fabrica, mas não consiste no essencial em notas e moedas postas em circulação pelos bancos centrais. Dinheiro é, na verdade, qualquer título de dívida que é aceite como meio de pagamento, e é por isso que a sua criação se encontra no essencial nas mãos dos bancos. Abolindo-se como se aboliu a distinção entre banca comercial e banca de investimento e admitindo-se ao mesmo tempo níveis baixíssimos de autofinanciamento das instituições financeiras, criou-se a montanha de dívida que agora pesa sobre todos nós.

Se as economias crescessem, gerar-se-iam recursos suficientes para pagá-la. Mas de onde virá o crescimento, se nem famílias, nem empresas, nem estados têm condições para gastar mais? Exigir-se que a dívida seja inteiramente paga equivale, portanto, a condenar a economia a permanecer estagnada durante uns vinte a trinta anos.

Parece inegável que o desbloqueamento das economias ocidentais exige uma desvalorização generalizada da dívida, seja através de negociações caso a caso, seja através de um aumento generalizado dos preços (vulgo inflação). Uma operação desse tipo implicaria, porém, uma massiva redistribuição de rendimentos dos credores para os devedores, razão por que é obstinadamente recusada por quem detém as rédeas do poder político e económico.

Viremo-nos agora para o outro lado do problema, ou seja, para a crise especificamente europeia. Ao contrário da anterior, esta é, na sua essência, uma crise política com um pretexto económico, fabricada de todas as peças pelo governo alemão coadjuvado pelo BCE, quando, em 2010, ao julgar ter resolvido o seu particular problema doméstico, lançou a palavra de ordem "cada um por si". Sabe-se há muito que o euro sofre de malformações congénitas. Ainda assim, a zona euro no seu conjunto não padece de desequilíbrios financeiros externos ou internos. O problema só surgiu quando se começou a partir aos bocadinhos um sistema que era suposto ser uno, coeso e solidário.

A crise do euro foi criada pela má-fé da Alemanha, que viu na crise internacional uma oportunidade única de impor a sua hegemonia política, económica e financeira no velho continente. Esse projecto avançou sem sobressaltos de maior até ao momento em que o contágio atingiu a Espanha e a Itália, cuja ruína ameaça os próprios fundamentos do euro. Não há forma de acudir-lhes se a situação se agravar, de modo que, após muitas hesitações, o BCE decidiu-se a intervir e a Alemanha resignou-se a aceitar os princípios da união bancária, da união fiscal e, a prazo, da mutualização parcial da dívida. Porém, assim que a iniciativa do BCE começou a dar resultados, Merkel renegou a sua palavra e adiou tudo para 2014.

Os optimistas profissionais apontam a drástica redução dos "spreads" dentro da zona euro como prova de que estamos no bom caminho. Mas alguém acredita que é possível que a Espanha, por exemplo, sobreviva por muitos anos com taxas de desemprego gerais a rondar os 25% e taxas de desemprego juvenil acima dos 50%? E, no entanto, é isso que nos espera, a persistir a insistência na austeridade sem fim à vista, na expectativa de que, mais tarde ou mais cedo, sabe-se lá como, a economia entregue a si própria acabará por milagrosamente dar a volta.

A única coisa segura é que a UE se encontra em processo acelerado de desagregação, como ainda neste último fim-de-semana o Ecofin se encarregou de nos lembrar ao aprovar o tresloucado acordo imposto a Chipre que transforma todos os seus cidadãos em membros da comissão de honra para a reeleição da Prof. Drª Ângela Merkel.

Que fazer? Sair do euro não é, por enquanto, uma opção atraente. Porém, as estimativas que há dois anos nos ameaçavam com uma quebra dos salários da ordem dos 30% em tal eventualidade estão em vias de ser ultrapassadas pela realidade – e ninguém nos garante que ficaremos por aqui.

Os povos da Europa estão hoje sujeitos a um processo de violência objectiva, fria, calculada, impessoal e anónima, conduzida por carrascos que não olham as vítimas nos olhos e contra os quais nada podem os usuais mecanismos de deliberação democrática. Sair do euro implica seguramente terríveis riscos, mas poderá chegar um tempo em que os encararemos como um mal menor. Para já, precisamos urgentemente de abandonar a ilusão de que, mais mês menos mês, despertaremos deste pesadelo.

Publicado no Jornal de Negócios em 19.3.13

A maldição do estado social

Variam muito as opiniões sobre que funções cabem ao certo na definição do estado social, mas toda a gente parecer concordar que entre elas se contam a saúde e a educação. Ora, um dos problemas que ameaçam a sua sustentabilidade decorre da tendência, ao que parece inexorável, para a escalada dos custos associados a essas duas áreas do serviço público. Quais as causas da pressão que elas assim colocam sobre o equilíbrio das contas públicas? 
 
Muitos afirmam que a saúde custa cada vez mais porque a população está a envelhecer, médicos e pacientes são pouco sensíveis ao problema e o progresso tecnológico por si mesmo suscita a expansão inconsiderada de exames e tratamentos. Quanto à educação, culpa-se o alargamento da escolaridade média e o poder sindical dos professores pelo agravamento da factura da educação.

Em todos esses factores haverá alguma verdade, mas a essência do problema reside alhures: tanto a saúde como a educação são actividades intensivas em trabalho e pouco susceptíveis de automatização, por isso, não aumentando ou aumentando pouco a sua produtividade, tenderá a crescer o seu preço relativo.

O economista americano William Baumol fez há muito notar que o potencial de aumento de produtividade varia imenso de actividade para actividade. Hoje, como no século XIX, são necessários quatro músicos para tocar um quarteto de Beethoven; entretanto, a produção de uma camisa de algodão exige hoje uma fracção das horas de trabalho utilizado naquela época. O resultado é que o preço de uma camisa baixou muito em relação ao de um bilhete para escutar um quarteto de Beethoven; ou, inversamente, o segundo aumentou muito em relação ao primeiro.

Logo, se a procura que lhes é dirigida não diminuir, aumentará continuamente o peso na despesa nacional dos gastos com bens produzidos por sectores de produtividade baixa ou estagnada. É em parte por isso que a proporção dos serviços no PIB cresceu imparavelmente até se situar hoje nos países desenvolvidos entre os 80% e os 90%, o que é interpretado por uma opinião pública mal informada como sintoma de desindustrialização e decadência económica. É também por isso que, concentrando-se a actividade produtiva do estado nos serviços, tende a crescer o peso dos gastos públicos no PIB.

A perspectiva da subida contínua dos preços relativos dos serviços pessoais trabalho-intensivos resistentes à automação afigura-se, à primeira vista, algo assustadora. Segundo algumas estimativas, se os custos dos cuidados de saúde continuarem a subir como até agora, saltarão de 15% do rendimento do americano médio em 2005 para 62% em 2105, um século depois. Nessas condições, uma vez pagas essas e outras despesas com serviços essenciais, pouco sobrará para tudo o resto, incluindo coisas tão vitais como habitação, transporte, alimentação e vestuário. Note-se, além disso, que esta previsão em nada depende de a prestação dos serviços de saúde ser pública ou privada.

Como corolário desta dinâmica dos custos, caso uma parte substancial da saúde e da educação continue a ser assegurada pelo estado, a despesa pública representará uma parte cada vez maior do rendimento nacional, certamente muito superior aos 50% que já hoje são comuns nos países mais desenvolvidos e que tanto alarmam muito boa gente.

Sucede, porém, que a generalizada preocupação com este problema resulta em boa parte de um mal-entendido e que a cura usualmente proposta para o resolver pode ter resultados bem mais graves que a doença. Desde logo, embora uma parte cada vez mais reduzida do rendimento seja dedicada à aquisição de bens físicos, o crescimento sustentado da produtividade agrícola e industrial significa precisamente que essa parcela, embora menor, nos permite comprar cada vez mais alimentos, automóveis, roupas ou computadores. De modo que poderemos ter ao mesmo tempo acesso a mais bens produzidos tanto pelo sector crescentemente automatizado da economia como pelo de produtividade estagnada.

O problema não reside, pois, na existência de actividades que, pela sua própria natureza, oferecem escassas oportunidades de aumento da produtividade, mas na errada percepção das causas do aumento dos seus preços relativos e na tentativa de impor soluções desajustadas. Se o financiamento da saúde e da educação for estrangulado a pretexto de que não há alternativa, assistiremos simultaneamente à degradação da qualidade dos serviços prestados e à exclusão de cada vez mais cidadãos do acesso aos seus benefícios, com o que toda a economia e toda a sociedade acabarão por ser prejudicadas.

Por outras palavras, se as forças políticas e os governos se aferrarem a regras arbitrárias e irracionais do tipo: "o custo da educação não pode ultrapassar 5% do produto" ou "a despesa pública deve situar-se abaixo dos 50% do produto", estarão a criar artificialmente um problema, onde nenhum existe. É a essa fábula que se pode com propriedade chamar "a maldição do estado social".

No seu recente e inspirador livro, "The Cost Disease", William Baumol lança este aviso: "Se os governos não forem persuadidos por estas ideias, os cidadãos poderão ver ser-lhes negados saúde, educação e outros benefícios porque ‘parecem’ ser inacessíveis, quando de facto não o são." E acrescenta: "A continuação do crescimento da produtividade geral permitirá que a família típica continue a desfrutar de uma abundância de bens; porém, se o estado reagir de forma inapropriada, os cidadãos poderão ser penalizados por uma forte degradação dos serviços públicos em áreas como a recolha de lixo."

Publicado no Jornal de Negócios em 19.2.13

terça-feira, 5 de março de 2013

Um grande salto em frente, dois grandes saltos atrás

Se o voto popular se tornou irrelevante para escolher entre políticas distintas, porque não eleger alguém que ao menos lance o pânico entre os poderosos que comandam a UE, o BCE e o FMI? – assim parece ter raciocinado na passada semana o eleitorado italiano.
 
Quem quer que hoje se esforce por ver além da espuma dos dias, não só entende que o défice democrático europeu se foi alargando até originar esta espécie de pós-democracia em que hoje vivemos, como reconhece que cada vez mais cidadãos já desvendaram este segredo e se decidiram por agir em conformidade.

Tornou-se também claro para muitos que, na crise das dívidas soberanas desencadeada em 2010, o pretexto foi económico-financeiro, mas o intuito é político. O que a justifica é o desejo de aproveitar um momento de fragilidade dos povos e dos estados nacionais para desencadear um muito ansiado ajuste de contas, pondo em causa tanto o contrato social laboriosamente edificado ao longo de décadas como os delicados equilíbrios sobre os quais ele assenta.

A austeridade fiscal foi imposta a coberto de um pânico irracional fabricado pelo BCE com pretextos espúrios. Apesar do evidente descalabro, tanto a UE como o BCE insistem em políticas de extorsão fiscal que prolongam indefinidamente a estagnação e o desemprego de longa duração, assim condenando, nas palavras de Martin Wolf, "dezenas de milhões a um sofrimento desnecessário".

Os mais crédulos aceitam que em devido tempo tudo se arranjará, contanto que cada país se esforce por pôr as suas contas em ordem. Basta-lhes a ténue promessa de que, após as eleições alemãs deste ano, a Europa avançará decididamente para a união bancária, a união fiscal e, a prazo, a mutualização parcial da dívida. Mas convém recordar que este método de começar a construir a casa pelo telhado, deixando para o fim os seus alicerces democráticos, é o mesmo que foi adoptado vai para mais de duas décadas, com os desastrosos resultados que conhecemos. É chegada a altura de dizermos com clareza que este "federalismo" burocrático equivale à total subversão do ideal europeu tal como nos foi proposto em sucessivas ocasiões e que, como tal, deve ser liminarmente recusado.

É também este o momento de desmontar a retórica das "reformas estruturais" que a Comissão Europeia e o BCE se acham no direito de impor a todo o continente, sem que para isso disponham de qualquer mandato. Para começar, não se sabe sequer muito bem o que sejam essas famigeradas "reformas" – uma espécie de fato para marrecos à escala continental – excepto que se traduzem sempre em pacotes de sevícias sem propósito evidente além de uma vaga e nunca alcançada melhoria da "competitividade" (ela própria outra palavra de sentido indeterminado). Conforme recentemente vincou Wolfgang Munchau, "não existe qualquer elo" entre "uma vaga ideia de reforma e o sucesso económico, medido pelo PIB per capita".

Naturalmente, seria preferível que a solução política para esta crise emergisse das presentes instituições europeias. Quaisquer embaraços decorrentes do eventual chumbo pelo Parlamento Europeu do orçamento comunitário proposto pela Comissão seriam mais do que compensados pela constatação popular de que, afinal, o seu voto sempre serve para alguma coisa. Precisamos urgentemente de que o Parlamento – por excelência, a casa da democracia europeia – se afirme como um pólo de poder alternativo, e esta seria a hora de ele se redimir da sua anterior passividade. Falhando – como parece provável – essa alternativa, restaria a hipótese de o Tribunal Europeu de Justiça se decidir a travar a continuada subversão das instituições comunitárias declarando a nulidade de todas as decisões impostas nos últimos anos pela Alemanha e pela Comissão como contrárias à letra e ao espírito dos tratados em vigor. Mas é pouco provável que isso aconteça.

Não podemos, por isso, pôr de parte a hipótese de se acentuar na União Europeia a presente deriva de degradação da convivência civilizada entre os povos e de liquidação definitiva de qualquer conceito de futuro mobilizador para os seus cidadãos. É por tudo isso que nós, os bons Europeus –, ou seja, aqueles que concebem a Europa antes de mais como um projecto de civilização – temos de reconhecer que, a persistir o curso actual, talvez seja necessário que ao grande salto em frente da criação da moeda única possam ter de seguir-se dois grandes saltos atrás, ou seja, não só o desmantelamento dessa moeda única como a anulação de uma parte das regras do Mercado Único que a precedeu.

Não há uma só maneira de os povos europeus conviverem e cooperarem entre si em razoável harmonia. Nos quase três milénios que leva de existência como instância geopolítica relevante, a Europa conheceu já múltiplas configurações, alternando períodos de aproximação entre os estados constituintes com outros de afastamento. Num horizonte longo, a presente UE deve ser encarada como apenas um dos arranjos institucionais possíveis, cuja principal carta de recomendação foi a sua orientação demo-liberal. Falhando essa inspiração distintiva, não há razão para que seja considerada preferível a arranjos mais estreitos, no limite pouco mais que zonas de comércio livre e cooperação política limitada.

Nós, os bons Europeus, deveremos por isso prepararmo-nos para reconsiderar radicalmente a posição de Portugal no contexto da Europa, quem sabe se começando por dar à expressão "países periféricos" um sentido positivo. Com tanto país a ser deitado fora da UE como carga imprestável, talvez se consiga fazer algumas alianças interessantes, deixando a Alemanha entretida com os seus estados tributários.

Publicado no Jornal de Negócios em 5.3.13

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Como tornar-se um sem-abrigo de sucesso

Há meio século, todos concordavam que o lugar dos loucos é no manicómio. A populaça temia e hostilizava os "maluquinhos", mas a sociedade achava seu dever cuidar deles internando-os em instituições para alienados.

Embora por essa altura rareassem já os tratamentos mais violentos, o confinamento de seres humanos para a vida em presídios especializados era crescentemente contestado, tanto mais que a noção de distúrbio mental era (e é) algo vaga. Fazia-se, por exemplo, notar que na União Soviética os opositores eram internados em hospícios sob o pretexto de que a sua resistência a uma sociedade tão racionalmente organizada só poderia dever-se a algum tipo de falha psíquica.

Pensadores como o americano Szaz, o escocês R. D. Laing ou o francês Foucault argumentaram que a impropriamente chamada loucura pode ser um mecanismo perfeitamente racional de ajustamento a um mundo injusto e desumanizado, oferecendo um potencial de libertação e renovação espiritual. Nessas circunstâncias, o internamento compulsivo dos loucos torna-se numa forma de uma maioria de cidadãos conformistas reprimirem impulsos emancipadores e perpetuarem a tirania do "estado terapêutico". Estaríamos assim perante um sistema potencialmente totalitário orientado para a aniquilação de acções, ideias e emoções arbitrariamente classificadas como impróprias.

Por tudo isso, o movimento da "antipsiquiatria" sustentava a eliminação do asilo de alienados e a libertação e reintegração dos loucos na sociedade civil, a qual cuidaria de potenciar as suas capacidades criativas. "Voando Sobre um Ninho de Cucos", o filme realizado por Milos Forman em 1975 e galardoado com cinco Óscares, ajudou muito a popularizar essas teses.

A nova direita não tardou em brandir a bandeira da libertação dos doidos, não só por constatar que o estado despendia rios de dinheiro na manutenção de manicómios, como por a horrorizar a violação dos direitos dos indivíduos aprisionados. Passou a estar em voga a devolução dos loucos a comunidades de reintegração financiadas pelo estado como alternativa mais económica para os contribuintes, mas, em 1982, Ronald Reagan achou que o melhor seria mesmo acabar com esses subsídios, de modo que os doentes começaram a ser lançados nas ruas, dentro do princípio de que cada qual sabe o que é melhor para si – e o resto do mundo aderiu à inovação.

Essa revolução contribuiu para aumentar drasticamente o número de sem-abrigo, dos quais parte considerável manifestamente padece de perturbações psíquicas. Embora escasseiem estatísticas fiáveis, acredita-se que na Europa e nos EUA os sem-abrigo se contem hoje por milhões. Quanto à situação portuguesa, caracteriza-se por um considerável potencial de libertação não concretizado, arriscando-nos inclusive a ser ultrapassados por economias do leste europeu mais dinâmicas na produção de sem-abrigo. Necessitamos urgentemente de uma revolução de mentalidades.

O primeiro preconceito a eliminar é a ideia de que o modo de vida dos sem-abrigo só é indicado para indigentes. Salvo raras excepções, o que singulariza os sem-abrigo é a fragilidade mental; logo, nada impede que a fome de liberdade e espiritualidade inerentes a esse modo de vida atraiam tanto a classe média como gente de posses.

Atente-se em Nicolas Berggruen, que, embora dono de uma fortuna avaliada em 2,2 mil milhões de dólares, decidiu em 2002 vender o seu apartamento em Manhattan e a sua ilha na Florida, mantendo apenas o jacto pessoal Gulfstream e deslocando-se permanentemente de hotel em hotel. Nas suas frequentes entrevistas, exorta toda a gente a abraçar o seu projecto de libertação dos bens materiais e busca espiritual. Tecnicamente, trata-se sem dúvida de um "homeless".

Entretanto, a Sociedade São Vicente de Paulo da Austrália convida desde 2006 os CEO do país a viverem a experiência dos sem-abrigo num "sleepout" que tem lugar em Junho de cada ano. O sucesso da iniciativa não decorre, é óbvio, de esses executivos recearem ver-se um dia, por infortúnio, despromovidos à condição de sem-abrigo, antes de um desejo reprimido de ensaiarem uma experiência que lhes tem sido vedada pelos preconceitos sociais dominantes.

A constatação do fascínio que a vida dos sem-abrigo exerce sobre tantos altos executivos coloca às empresas que eles dirigem um angustioso dilema. Não é ético condicionar a liberdade de alguém, mais a mais quando está em causa a tentativa de dar significado espiritual à sua vida. Porém, a dificuldade que os aspirantes a sem-abrigo têm em assumir a sua vocação pode prejudicar o seu desempenho enquanto hesitam e, por isso, inibir a criação de valor para os accionistas. Eventualmente, a neurose (que é só um problema do próprio) pode evoluir para psicopatia (que ameaça os outros). Que fazer?

Em primeiro lugar, é recomendável que os accionistas e pares do sujeito estejam atentos aos sintomas precoces do distúrbio, incluindo desinteresse pelas opiniões dos outros, obstinação extrema, alheamento do senso comum, recusa de rever as suas opiniões e atitudes, insensibilidade ao sofrimento alheio e incapacidade de pedir desculpa.

Confirmada a condição neurótica, deverão aceitar o facto sem mais delongas, incitar o CEO a seguir a sua vocação e prepará-lo para a sua nova vida, se necessário ajudando-a a adquirir a indispensável formação. Acima de tudo, o candidato a sem-abrigo deve evitar a mediocridade e manter a sua ambição. Desde que convenientemente treinado e motivado, há todas as condições para que, também na nova carreira que abraçou, ele venha a revelar-se um homem de sucesso.

Publicado no Jornal de Negócios em 5.2.13

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Se os portugueses tivessem um governo próprio

Se tivéssemos um governo próprio, eis o que ele poderia dizer à troika na próxima vez que ela nos visitasse:

"Meus senhores, escutámos nos últimos tempos declarações altamente relevantes de, por um lado, Christine Lagarde (Directora-geral do FMI) e Olivier Blanchard (economista principal do FMI), por outro, Durão Barroso (Presidente da Comissão Europeia), Claude Juncker (Presidente do Ecofin) e Martin Schulz (Presidente do Parlamento Europeu).

"Ora vejamos. Christine Lagarde sustentou já em Outubro do ano passado que os países europeus em dificuldades deveriam ter mais tempo para reduzir os seus défices: "Foi isso que advoguei para Portugal, foi isso que advoguei para a Espanha, e é isso que estamos a advogar para a Grécia". Mais recentemente voltou a insistir na ideia, desta vez apoiada no estudo assinado por Olivier Blanchard "Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers", onde se admite que "os multiplicadores fiscais se revelaram substancialmente maiores" do que os anteriormente estimados. Assim, reconhece agora o FMI que a subestimação do impacto da austeridade infligiu consideráveis danos às economias grega, portuguesa, italiana, espanhola e irlandesa, e que teve como resultado perverso o aumento dos rácios da dívida em relação ao produto de todos esses países.

"Além disso, o próprio Durão Barroso, que ainda em Outubro do ano passado advogara mais cortes orçamentais nos países do Sul em resposta às reticências manifestadas pelo FMI, sentiu-se agora na necessidade de negar publicamente que a União Europeia esteja por detrás das medidas de austeridade genericamente aplicadas no continente.

"As declarações mais contundentes vieram, porém, de Claude Juncker, Presidente cessante do Conselho dos Ministros das Finanças. Começou ele por contestar a legitimidade democrática de instituições como o BCE e o FMI para imporem medidas punitivas a certos países ao mesmo tempo que outros beneficiavam das fugas de capitais da Grécia para o exterior, concluindo que os ajustamentos "recaíram apenas sobre os mais fracos".

"Acrescentou que "o drama do desemprego tem sido subestimado" pela União Europeia e aconselhou ao seu sucessor que "escute todos os Estados-membros por igual", caso contrário terá muito de que se arrepender dentro de seis meses. Lamentou os resultados decepcionantes do último Conselho Europeu, que persiste em tomar decisões insuficientes e tardias.

"Concluiu, surpreendentemente, que "todos os países membros devem fixar um salário mínimo social" e acordar "numa base de direitos sociais mínimos para os trabalhadores", caso contrário a Europa perderá o apoio das classes trabalhadoras. Por último, pediu "um acordo sobre os elementos essenciais da solidariedade" ao nível europeu.

"Estamos plenamente conscientes de que o Parlamento Europeu não tem de momento grande peso na definição das políticas europeias. Ainda assim, é impossível ignorarmos o que o seu Presidente Martin Schulz disse na sua recente visita a Lisboa: "Austeridade pode ser exercício de autodestruição sem medidas pró-crescimento."

"Todas estas individualidades - de quem decerto já terão ouvido falar - convergem de modo inequívoco na conclusão de que as políticas de austeridade que têm vindo a ser aplicadas na Europa em geral e em Portugal em particular são erradas, destrutivas e contrárias aos propósitos declarados de controlar os défices públicos, conter o crescimento das dívidas soberanas, promover o crescimento e gerar emprego.

"Como compreendem, a opinião pública portuguesa fica confusa ao escutar estas afirmações dos dirigentes da União Europeia e do FMI, tão evidentemente opostas àquelas que até há pouco lhe eram apresentadas como indiscutíveis artigos de fé - e que nós próprios, aliás, aceitámos assumir perante os nossos concidadãos como inevitáveis e sem alternativa. Assim sendo, não poderemos estranhar que os portugueses comecem a perguntar-se se o governo que elegeram não terá andado a enganá-los no último ano e meio.

"Ora, se um povo desconfia da boa-fé do seu governo e se sente atraiçoado por ele, corre-se o maior dos riscos, que é o de uma irreversível e completa ruptura entre eleitos e eleitores, desembocando na perda de legitimidade e no caos político.

"Dito isto, somos forçados a perguntar-vos: quem representam os senhores nesta reunião? A União Europeia e o FMI ou apenas e só as vossas peculiaríssimas opiniões pessoais? Como é possível que representem essas instituições, se é público e notório que as únicas pessoas inequivocamente autorizadas para falarem em nome delas contrariam em público de forma clara e taxativa o que os senhores aqui procuram impor-nos?

"Têm os senhores a certeza de estarem mandatados para fazerem o que fazem e dizerem o que dizem? Estão seguros de que a vossa actuação é apoiada pelas organizações a que pertencem? Não vos incomoda pessoal, profissional e institucionalmente a ambiguidade desta situação?

"Não nos levem a mal. Porém, nestas circunstâncias, somos forçados a suspender todos os contactos convosco até que Christine Lagarde, Durão Barroso e o novo Presidente do Ecofin clarifiquem de uma vez por todas, de preferência por escrito, qual é de facto a orientação das instituições a que presidem. Até lá despedimo-nos de vós com amizade, esperando que tenham tido uma estada agradável no nosso bonito país."

Publicado no Jornal de Negócios em 22.1.13

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O que estamos nós a fazer aqui

Durante a maior parte da 2.ª Guerra Mundial, os alemães não mobilizados para a frente continuaram a levar uma vida normal, pois nunca faltaram matérias-primas às fábricas ou alimentos às famílias. A guerra trava-se lá longe, sem afectar o pacato quotidiano dos cidadãos. Os alemães não sabiam, nem cuidavam de saber, que a sua prosperidade assentava na pilhagem organizada dos recursos da Europa inteira.

"Não saber" o que não lhes convém saber é, como a actual crise europeia veio recordar-nos, um dos pontos fortes dos alemães. A Europa afunda-se na recessão duradoura, a pobreza renasce em países onde se tornara residual, metade dos jovens não encontra trabalho –, mas, na Alemanha, o Natal foi vivido na paz do Senhor, e isso é tudo o que importa.

Qualquer pessoa sensata entende que, um dia, o sofrimento chegará também à Alemanha. Não, desta vez, sob a forma de bombardeamentos mortíferos, mas de estagnação e desemprego induzidos pelo empobrecimento dos parceiros europeus, visto que 60% das exportações germânicas se dirigem à União Europeia e 40% à Zona Euro. Entretanto, como regularmente faz notar Wolfgang Munchau (colunista do Financial Times e ele próprio alemão), na República Federal reina a cegueira absoluta, imune aos avisos que chegam de todas as partes do mundo sobre a tacanhez da política adoptada por Angela Merkel.

O ponto inquestionável é que a União Europeia mudou de natureza, tornando-se numa coutada da Alemanha, a qual, mercê da sua dimensão geográfica, populacional, económica e financeira, se encontra de momento em condições de impor a sua vontade a todo o continente. Quanto maior o poder de que um país dispõe, mais necessário será que aja com autocontenção, mas a Alemanha parece apostada em demonstrar em todas as oportunidades ser um país em que ninguém pode confiar, dado que não só desrespeita os compromissos que assume, como infringe sempre que lhe convém as regras da União Europeia. Toda a gente se recorda como incumpriu o PEC; como ignorou as regras da concorrência socorrendo a sua indústria automóvel durante a recessão de 2009; como sabotou o funcionamento das instituições europeias; como condicionou publicamente a actuação do BCE; como se arrogou poderes de decisão que não lhe competem; como interferiu na política interna dos outros países membros, chegando ao ponto de fazer e desfazer governos; como, enfim, recentemente impôs o adiamento dos compromissos assumidos com os outros países em relação à projectada união bancária.

O que tem este novo Sacro Império Germânico que ver com a União Europeia que nos empenhámos em construir nas últimas décadas? Nada, como é evidente. Porque haveremos então de continuar a fingir que a União Europeia continua a existir? Os britânicos serão provavelmente os primeiros a decidir que não estão dispostos a ser comandados pela Alemanha, mas é possível que, a prazo, se lhe sigam a Itália, a Espanha e, por último, a própria França. Com a Alemanha ficarão decerto a Áustria (consumando por fim o adiado Anschluss) e a Holanda (uma gigantesca plataforma logística da Renânia-Vestefália). Quanto à Polónia, com uma longa experiência do que a casa gasta, não tardará a pôr-se a milhas.

Por cá reina a ilusória esperança de que, no intuito de salvar o euro, o bom senso acabará por ditar o aprofundamento da união, e que isso inevitavelmente implicará uma espécie de federação democrática. No horizonte dessa esperança encontram-se a união bancária, a união fiscal e a mutualização parcial das dívidas (vulgo eurobonds). No fim desse radioso caminho esperar-nos-ia, finalmente, a desejada união política. Valeria, assim, a pena sujeitarmo-nos a todas as sevícias concebidas pela troika. Sucede, porém, que, quando apreciou o Tratado de Lisboa, o Tribunal Constitucional Alemão recusou liminarmente a perspectiva da diluição da soberania germânica num futuro estado federal europeu. Nessas circunstâncias, o federalismo de que tanto se fala poderá ser burocrático e financeiro; mas jamais político, menos ainda democrático. Não haverá nele lugar para a consideração dos interesses particulares de povos como nós.

De 1910 até quase ao fim do século XX, Portugal cresceu quase sempre mais do que a Europa e, em particular, do que a Espanha. Dir-se-ia que, apesar de consideráveis erros cometidos ao longo de três regimes políticos diversíssimos, soubemos governar-nos. Foi então que optámos por subcontratar partes cada vez maiores da nossa política económica à União Europeia – processo coroado com a adesão ao euro – e o resultado está à vista.

Por muito nefasta que nos seja esta circunstância, não está evidentemente nas nossas mãos tomar agora a iniciativa de sair do euro. Mas um mínimo de lucidez recomenda que nos questionemos sobre o que estamos nós aqui a fazer – e que comecemos a ponderar, à luz dos nossos interesses geoestratégicos, que alianças alternativas deveremos buscar caso se confirme o presente rumo de desagregação da União Europeia.