sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Os dois capitalismos e a cafrealização dos costumes

A mudança para a Holanda do domicílio fiscal da sociedade familiar que controla a Jerónimo Martins foi muito criticada por sugerir uma quebra de solidariedade com o país num momento de crise em que se apela à partilha do sofrimento entre todos.

Em resposta, houve quem louvasse a sua racionalidade e oportunidade tendo em conta a responsabilidade que qualquer empresa tem de assegurar a sua sobrevivência e crescimento. Sem lucros não há postos de trabalho nem investimento, disse-se; logo, os empresários têm não só o direito como o dever de buscar, se necessário no estrangeiro, as condições fiscais mais favoráveis para os seus accionistas.

Fez impressão que, no contexto de um debate acalorado mas razoável, o patriarca da família viesse a público dizer coisas como: "tenho o direito de defender o meu património"; "o português não gosta da iniciativa privada"; "não aceito ataques pessoais"; e "no parlamento continua a insultar-se a iniciativa privada". Mas o que verdadeiramente nos interessa é esta sua afirmação: "a minha responsabilidade é gerir o dinheiro dos accionistas". Só?

Os manuais de microeconomia pretendem que o propósito de uma empresa é a maximização do lucro e Milton Friedman inferiu daí que nenhuma outra responsabilidade social deve ser exigida ao empresário. Ambas as teses são erradas. Nenhum gestor sabe o que, em termos práticos, poderá significar a exigência da maximização do lucro, muito menos como alcançá-la. Além disso, Jim Collins demonstrou em "Built to Last" que, paradoxalmente, as empresas verdadeiramente excecionais atribuem uma baixa prioridade à rentabilidade, a qual se revela, na prática, um resultado colateral de uma série de coisas que podemos sinteticamente designar como paixão pela excelência estribada numa sólida visão de negócio.

Peter Drucker, o fundador da disciplina da gestão, para quem o lucro não era "a explicação, a causa ou a justificação das decisões de negócios, mas o teste da sua validade", não teria ficado surpreendido com essa conclusão. É isto, diga-se de passagem, que se ensina nas grandes "business schools" cujos rankings excitam tanta gente.

Naturalmente, nem todas as empresas seguem a via indicada. Há um capitalismo que assenta a sua prosperidade na conceção de bens e serviços inovadores ou na invenção de processos mais eficientes (logo, mais económicos) de produção e distribuição, dedicando-se à destruição criadora de que falava Schumpeter. Mas também há outro que trata apenas de explorar o poder negocial resultante de barreiras à entrada, do acesso preferencial a matérias-primas, da protecção política ou da fortuna do paizinho, beneficiando de rendas de situação que lhe permitem cobrar alguma espécie de portagem.

Percebe-se que o segundo modelo fixe preferencialmente as suas atenções no lucro, porque, em empresas que exigem menos competências distintivas, fazer dinheiro será porventura a actividade mais desafiadora. Já quem gere uma empresa inovadora terá muito mais coisas interessantes com que se entreter.

Para o público, o capitalismo obcecado com o lucro é por vezes inevitável; mas só aquele que contribui para a melhoria do bem-estar colectivo é desejável. O primeiro será um mal menor; o segundo, um bem maior. O primeiro é um problema dos seus acionistas; o segundo, um ativo para todos nós. Com o primeiro mantemos uma relação interesseira; com o segundo, uma relação interessada. Entendemos que o progresso do país depende de reduzirmos o poder de influência de empresas do primeiro tipo e de conseguirmos ter mais do segundo.

A doutrina que concede toda a prioridade ao lucro não é uma teoria empiricamente sustentada, apenas uma prescrição que visa justificar a total subordinação da gestão empresarial aos interesses dos acionistas em detrimento de todas as restantes partes envolvidas, incluindo trabalhadores, clientes, parceiros, fornecedores, comunidade local e comunidade nacional.

Os empresários e gestores que se acham no direito de usar sem entraves o poder de que desfrutam estão a contribuir para a cafrealização dos costumes. "Se tens poder, usa-o": é este o conselho que nos dão. Ora a civilização consiste na contenção do poder, incluindo, como elemento essencial, a auto-contenção. Inversamente, quem entende que o poder sobreleva quaisquer outras considerações coloca-se "ipso facto" do lado da força bruta.

Cheira-me que não agradará muito àqueles que hoje tudo podem o que um dia poderão vir a poder aqueles que, de momento, nada podem.

Publicado no Jornal de Negócios em 17.1.12

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Uma pesada herança

Quando nasci, a travessia do Tejo mais próxima de Lisboa era em Santarém. Pouco tempo depois, foi inaugurada a de Vila Franca. A única auto-estrada do país ligava Lisboa ao estádio do Jamor. Em 1962, construiu-se, a muito custo, um troço de Lisboa a Vila Franca.

Atravessar o país de norte a sul demorava quase 24 horas, quando agora um terço desse tempo bastará. Foi preciso esperar pelo século XXI para ser possível ir de comboio directamente de Faro a Braga.

O aeroporto do Funchal foi inaugurado em 1964, o de Faro em 1965, o de Ponta Delgada em 1969. A construção dessas infra-estruturas, aliada à expansão do aeroporto de Lisboa, possibilitou o rápido crescimento do turismo.

Em 1970, só havia água canalizada em 47% das habitações, instalações sanitárias em 58% delas, electricidade em 64% e saneamento básico em 60%. Todas essas amenidades são hoje consideradas triviais. Foram erradicadas as barracas, onde ainda em 1981 viviam 75 mil pessoas. Entre 1995 e 2008 passou de 32% para 64% a proporção de novos fogos com três ou mais quartos.

A taxa de mortalidade infantil é umas 24 vezes inferior à de 1960. A esperança de vida cresceu 15 anos desde a mesma data. Há 5,5 vezes mais médicos e 6 vezes mais enfermeiros. Os portugueses são agora 2,5% mais altos do que há uma geração atrás, resultado que traduz a melhoria geral das condições de saúde.

Um em cada três portugueses era analfabeto em 1970. Havia pouco mais alunos universitários do que hoje há professores. Porém, neste meio século, cresceu 41 vezes o número de crianças que frequentam o pré-escolar. Na última década do século XX duplicou o número de licenciados pelas universidades portuguesas, o que voltou a acontecer na década seguinte. Em cinquenta anos, a proporção de portugueses com curso superior passou de 1% para 12% da população com mais de vinte anos.

Há 11 vezes mais bibliotecas com 9 vezes mais utilizadores e 3 vezes mais museus com 11 vezes mais visitantes que há cinquenta anos. A I&D quintuplicou em proporção do PIB em vinte e cinco anos, enquanto foi multiplicado por 10 o número de investigadores. No período compreendido entre 1995 e 2008 cresceu 10 vezes o número de empresas com actividades de I&D. A exportação de serviços tecnológicos cresceu 8 vezes no mesmo período.

Ouve-se hoje muitas queixas sobre a herança que vamos deixar às novas gerações. Porém, mesmo sem falar do progresso dos costumes e das liberdades individuais e colectivas, ela é bem mais invejável que aquela que a minha recebeu. Em vez de herança pesada, deveríamos antes falar de herança de peso.

Deixemos aos historiadores a tarefa de esclarecer que proporção do investimento realizado deve ser considerada desperdício. O desafio pragmático que hoje se nos coloca é o de tirar o máximo partido dos recursos materiais e humanos entretanto acumulados sob a forma de infra-estruturas, equipamentos públicos e privados, capacidade de trabalho, conhecimento genérico e know-how específico.

A um avanço impetuoso, muitas vezes governado por uma crença ingénua nas virtualidades do investimento independentemente da sua qualidade, deve agora suceder uma fase de consolidação – não de abandono ou de destruição por incúria – do património existente. Precisa-se, pois, de uma estratégia mais orientada para a valorização do que temos, que nos permita passar do crescimento extensivo das últimas décadas para um crescimento intensivo.

Vejamos alguns exemplos. A existência de excelentes vias de comunicação possibilita a concentração de equipamentos de saúde e educação com ganhos de economia e qualidade, que podem e devem estender-se à reorganização administrativa do território. Os resultados extraordinários já alcançados com o Alqueva devem ser completados com obras de pormenor que permitirão tirar pleno partido do grande investimento realizado. O alargamento do canal do Panamá deve ser aproveitado para, explorando o que foi feito no porto de Sines, atrair investimento do Extremo Oriente que promova a montagem de produtos industriais dirigidos ao mercado europeu. Por último, é necessário assegurar, articulando a acção do estado com as empresas e os centros de investigação, que o país aproveite convenientemente o grande aumento do número de doutorados e investigadores tendo em vista a melhoria da competitividade das suas empresas.

Herdeiros diligentes esforçam-se por dar bom uso ao legado que recebem; beneficiários incompetentes e mal-agradecidos perdem-se em recriminações enquanto deixam ao abandono o invejável património que lhes caiu em sorte. É esse o verdadeiro dilema que nos coloca a herança de peso dos consideráveis investimentos orientados para a requalificação do país que realizámos ao longo do último meio século.

(Publicado no Jornal de Negócios em 3.1.12)