terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Ai aguenta, aguenta

"Ninguém gosta de tomar decisões que provocam sofrimento noutras pessoas". Há evidentemente pessoas (talvez poucas) que gostam de provocar sofrimento noutras: logo, a análise lógica desta declaração conclui pela sua evidente falsidade.

No entanto, ela parece-nos psicologicamente verdadeira, porque verosímil: todos nós causámos já conscientemente dor a outrem no intuito de evitar um mal maior, por exemplo, castigando um filho para o ajudar a enfrentar os perigos da vida.

Falta porém explicar porque é que, em certas circunstâncias, tanta gente aparentemente normal se presta de boa mente a colaborar em processos que infligem sofrimento extremo a milhões de seres humanos sem sequer tentar resistir a algo que contraria frontalmente os valores que aparentemente professa.

Impressionado com a tese da "banalidade do mal", formulada por Hannah Arendt após assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, o oficial SS que superintendeu toda a organização e implementação da chamada Solução Final, Stanley Milgram, à data Professor de Psicologia Social em Yale, decidiu investigar o assunto.

A experiência concebida em 1961 por Milgram consistia aparentemente num teste de memorização. Nela participavam um Experimentador, um Professor e um Aluno. O Professor recebia uma lista de pares de palavras que deveria ensinar ao Aluno. Depois de recitar a lista completa, o Professor leria ao Aluno a primeira palavra de cada par e pedia-lhe para escolher a segunda dentre quatro possíveis. Se a resposta fosse incorrecta, o Professor carregaria num botão que aplicaria ao Aluno um choque eléctrico, que aumentaria 15 volts por cada erro. Se fosse correcta, passaria à questão seguinte.

Embora o Professor - o verdadeiro sujeito da experiência - o ignorasse, o Aluno era na verdade um actor que, fechado numa sala ao lado, simulava sofrer os alegados choques eléctricos. Os gritos de dor do Aluno aumentavam de intensidade à medida que a voltagem "aumentava". A partir de certa altura, o Aluno queixava-se de problemas cardíacos e deixava de reagir. Atingidos os 135 volts, muitas pessoas questionavam a experiência e declaravam a sua intenção de abandoná-la, mas a maioria continuava depois de lhe ser assegurado que os choques não provocariam danos irreversíveis no Aluno. Quando o Professor insistia em abandonar, o Experimentador procurava dissuadi-lo, dizendo-lhe, por esta ordem:

1. Por favor, continue.

2. A experiência exige que continue.

3. É absolutamente essencial que continue.

4. Não há alternativa, tem de continuar.

Se o Professor assentisse, a experiência continuaria até ao choque máximo de 450 volts. Antes de iniciar as suas experiências, Milgram perguntou a um painel de especialistas que percentagem de Professores iria até ao enfim. A previsão apontava para 1,2%. Porém, 65% dos sujeitos aplicaram na primeira experiência o hipotético castigo de 450 volts, apesar de quase todos revelarem sinais de perturbação e tensão extremas, incluindo riso nervoso, suores e tremores. A experiência de Milgram foi desde então repetida inúmeras vezes ao longo de décadas, sem alteração notável dos resultados. Uma meta-análise publicada em 2002 por Thomas Blass, da Universidade de Maryland, concluiu que a proporção de participantes preparados para infligir a punição extrema se situa usualmente entre 61 e 66%, independentemente do tempo e do lugar.

Milgram resumiu assim as conclusões da experiência: "Pessoas normais, que se limitam a fazer o seu trabalho, podem tornar-se agentes de um processo terrivelmente destrutivo apesar de não serem movidas por qualquer hostilidade particular. Mesmo quando os efeitos destrutivos da sua acção se tornam evidentes e lhes é pedido que levem a cabo algo incompatível com padrões éticos fundamentais, pouca gente tem energia para resistir à autoridade."

O mais perturbador é que ninguém o faz por mal. Muita gente parece achar legítimo cometer as piores barbaridades na condição de que elas sejam legitimadas por uma autoridade estribada num suposto bem comum, numa linha de rumo que não se sabe bem quem traçou, de preferência sustentada pelo conhecimento científico ou, pelo menos, pela força objectiva das coisas. A diluição da responsabilidade individual desempenha aqui um papel fundamental, dado que a violência não parece resultar da vontade individual dos agentes do castigo, mas da inevitabilidade da situação ("a experiência exige que continue", "não há alternativa").

Fomos amestrados para acreditar que, quando os especialistas nos dizem que algo é inevitável, devemos acreditar nisso cegamente, mesmo que (ou sobretudo quando) tenhamos as maiores dúvidas. O Aluno existe para ser castigado pelo Professor sob a superior orientação do Experimentador. Mais claro que isto, é impossível.

P.S.: O leitor interessado em aprofundar o assunto poderá visionar no YouTube o programa em três partes "Milgram's Obedience to Authority Experiment", produzido pela BBC em 2009. Complementarmente, recomendo a conferência TED de Philip Zimbardo "The Psychology of Evil", de 2008

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O sr. Nelinho ao poder

O Sr. Nelinho entrou inesperadamente na vida do meu amigo Francisco quando ele se decidiu a adquirir uma casa espaçosa, mas algo antiga, no intuito de a recuperar, introduzindo-lhe de passagem múltiplos melhoramentos. Chegou-lhe o empreiteiro muito recomendado como pessoa despachada e empreendedora, sempre com a cabeça a fervilhar de ideias práticas e acolitado por um punhado de aplicados ajudantes.

O Sr. Nelinho compareceu no dia acordado – não exactamente à hora, mas já se sabe como essas coisas são – acompanhado do minúsculo Sr. Batata, este último munido de um bloco de apontamentos que não parou de aplicadamente rabiscar com o lápis que volta e meia sacava detrás da orelha. Após os algo bruscos cumprimentos da praxe, percorreu em passo rápido a casa, mirando tudo de cima abaixo com aquele olhar entre o atento e o distraído que só o verdadeiro perito sabe aplicar ao objecto da sua observação. O meu amigo tentava ir à frente, explicando o que pretendia, mas o Sr. Nelinho impôs-lhe o percurso e o ritmo da inspecção, sem parecer interessar-se demasiado pelo que ouvia, como se fosse supérfluo o que lhe pudessem acrescentar. "Parece que apanha tudo no ar…", maravilhou-se o Francisco.

"Pois, sim senhor, temos aqui uma bela obra." "E vai ficar muito cara?" "Aqui o Batata, que é bom em contas, tomou nota de tudo e amanhã tem cá o relatóriozinho." Fugidia bacalhauzada de despedida e já Nelinho e Batata se enfiavam sem mais conversas numa carrinha carregada de tralha e seguiam à sua vida pela rua fora.

O orçamento nem pareceu caro para tanta tarefa. "Somos um grupo pequenino, mas muito unido e desenrascado." "Quando começam?" "Isso, agora, deixa cá ver…." Tardaram mais de duas semanas, mas, quando apareceram, derramaram por toda a parte uma profusão de materiais, tábuas, varões, ferramentas, baldes de tinta e caixotes de papelão de todos os tamanhos e feitios. Aquilo ficou de imediato em estado de sítio e as tropas de ocupação lançaram sem mais demoras mãos à obra. Ao regressar nesse dia do trabalho, o Francisco espantou-se com a dispersão de esforços: "Não seria melhor fazer isto por partes?" "Nós fazemos assim. É o nosso método", foi a resposta.

Prontamente se constatou que o "método" do Sr. Nelinho era incompatível com o dia-a-dia de uma família organizada. A mulher-a-dias não conseguia lavar a roupa e passar a ferro no meio daquela confusão. Tornou-se impossível cozinhar no meio do caos. A mesa da sala de jantar estava sempre coberta de pincéis e esmaltes. Nas banheiras havia baldes de cola e tábuas partidas. Circular nos quartos de dormir era um exercício perigoso, principalmente à noite. Pior que tudo, os miúdos não conseguiam, no meio de tanta barulheira e desarrumação, fazer os trabalhos de casa.

"As crianças vão ter de emigrar, vai ter de ser", sentenciou sem se comover o Sr. Nelinho. "Emigrar, como?", fez o Francisco, que começava a sentir-se vagamente ameaçado. "Vão para casa de uns avós ou de uns tios. Há que ter paciência." Os miúdos lá abalaram, a breve trecho seguidos pela mãe, que concluiu não estar ali a fazer nada. Quanto ao Francisco, lá ia resistindo, embora cada vez mais confuso, porque via passar os dias, muita agitação na casa, muito camartelo, muita demolição, muito fio eléctrico arrancado, muito soalho esventrado e muita parede descascada, mas pouco ou nenhum progresso real do trabalho.

Cada vez que interpelava directamente o Sr. Nelinho, não tinha direito a mais que um sorriso trocista e um comentário enigmático: "Não se apoquente, porque eu, o Batata e os meus ajudantes sabemos muito bem o que estamos a fazer…" O pior foi quando, dias depois, o Nelinho lhe comunicou, com ar de quem não admite discussões, que, estando a casa em muito pior condição do que lhe havia sido transmitido, tornava-se indispensável rever urgentemente o memorando e aumentar substancialmente o orçamento. "O memorando? Qual memorando?" "Ora essa, o relatório do Batata que o senhor aprovou e assinou, não se faça de esquecido!" "E porque é que a obra há-de ficar mais cara, não me diz?" "O edifício não presta, não se pode fazer nada de jeito com ele. Há um problema de fundações. Vai ser preciso demolir a trave mestra e, isso, meu caro amigo, é quase como fazer um edifício novo."

O Francisco ficou de todas as cores. Sem se comover, o Nelinho continuou, perante o assentimento do Batata e dos restantes paspalhos que o haviam rodeado: "Até já trouxe hoje comigo o meu advogado, o Dr. Faísca, para fazermos um contrato à séria a ver se pomos ordem nesta enrascada em que o Sr. Engenheiro nos meteu". Com a irritação, o Francisco ainda nem dera pela presença do advogado. Fora de si, fulminou-o: "Fora, fora daqui de uma vez por todas! Fora com o Batata, fora com o Faísca e todas as vossas cambulhadas." O Nelinho tentou responder-lhe – "não perca a cabeça, que a mulher aqui do Coradinho é polícia e isto ainda pode acabar mal!" –, mas o Francisco estava definitivamente decidido a expulsar aquela tropa fandanga e, com energia sobre-humana, empurrou-a sem cerimónia porta fora.

"E agora?", perguntei-lhe quando o encontrei dias depois. "Agora, tenho uma dívida gigantesca ao banco, a casa está numa ruína (mil vezes pior do que quando a comprei), ninguém pode viver lá, os miúdos continuam com os avós e a Leonor ameaçou-me com o divórcio. Em compensação, estou livre."

"Mas, afinal, quem é que te recomendou o Nelinho?" "Foi o Ângelo, sabes quem é?" "O amigo do Ilídio? E ele meteu-te em casa esse animal?" "Se eu tivesse sabido…, mas só agora descobri que o Nelinho é afilhado do Ilídio!"