terça-feira, 25 de setembro de 2012

Amolece, apodrece e cai

Concordo com Vítor Bento quando ele afirma que, embora os portugueses declarem querer o euro, não é seguro que queiram fazer o que é preciso para que possamos permanecer nele. Mas acrescentarei que, se de facto entendessem plenamente as implicações dessa escolha, prontamente reveriam a sua opinião.


O euro incorpora um programa político-económico que raramente foi explicitado, muito menos apresentado com clareza aos cidadãos e submetido ao sufrágio popular. O seu propósito declarado inicial foi a estabilização do Mercado Único através da eliminação das perturbações decorrentes de desvalorizações das moedas nacionais. Para vender a ideia aos povos, as elites políticas europeias anunciaram que daí resultariam simultaneamente maior eficiência global e reforço da convergência entre países.

Sabemos hoje ser equivocada a crença fundadora da zona euro, segundo a qual desmontando-se uma a uma as instituições supostamente disfuncionais vigentes em certos estados membros, o mercado libertado encarregar-se-ia de assegurar a felicidade universal. A convergência abrandou, depois estancou e ameaça agora inverter-se em cada vez mais países, nos quais sucessivas doses de austeridade sem fim à vista se combinam com a paralisia do sistema financeiro para eliminarem de um golpe décadas de progresso.

Azar? Não exactamente. Ao abraçar o projecto da moda única, a União Europeia afastou-se radicalmente do método de tentativa e erro até então prevalecente para abraçar uma utopia monetarista sem regresso nem meio-termo. Não por acaso, o regime que hoje temos na Europa assemelha-se muito ao projecto concebido por Hayek para eliminar de raiz a possibilidade de os mecanismos democráticos interferirem no livre funcionamento dos mercados.

Hayek, o principal inspirador do liberalismo extremista contemporâneo, concebeu uma solução ideal consistente em criar um poder supranacional não eleito que chamaria a si a definição dos direitos económicos e sociais (ou ausência deles) e das políticas macroeconómicas essenciais, deixando apenas ao nível inferior dependente do voto a responsabilidade de cobrar impostos e decidir sobre a redistribuição do rendimento. Neste sistema, que hoje impera na União Europeia, o jogo democrático torna-se uma mera formalidade sem consequências e os governos nacionais surgem cada vez mais aos olhos de todos como meros títeres de poderes distantes e inamovíveis.

Percebe-se assim melhor que, imunes à convicção generalizada de que a raiz dos nossos actuais males se encontra na desregulação do sistema financeiro, os seus agentes logrem reforçar ainda mais o seu poder sob a tutela do Banco Central Europeu. A impropriamente chamada ajuda aos países da periferia pode, por exemplo, ser lida sem excessivo maquiavelismo como, antes e acima de tudo, um socorro disfarçado aos bancos do centro durante anos envolvidos em investimentos especulativos em dívida pública que corriam agora o risco de não conseguir cobrar.

Quem entre nós exigiu nos últimos anos a mudança de regime pode regozijar-se: ele de facto já mudou, pois que, a par da Constituição oficial da República há hoje uma constituição não-escrita que, na prática, tutela a comunidade e governa os seus destinos.

Tal circunstância decorre de um dogma paralelo do liberalismo doutrinário segundo o qual existe um conjunto de instituições ideais que todos os países que anseiam pela prosperidade devem adoptar, uma espécie de fato para marrecos que também nós teremos que envergar. 

Nada disto é validado pela experiência empírica: cada país desenvolveu através de um longo processo o enquadramento institucional mais apropriado às suas circunstâncias, pelo que não temos que imitar os tiques e os pesadelos da Alemanha para progredir.

Sucede que esta concepção pluralista é hoje verbotten. Espera-se de nós nada menos que a demolição dos direitos sociais, a desorganização dos fóruns de concertação social, o desmantelamento de instituições e empresas essenciais à preservação de um mínimo de soberania, o esvaziamento dos parlamentos e o recuo do poder local. Em suma, aplica-se à democracia o mesmo tratamento que a uma verruga que, após aplicação de uma agressiva mezinha, amolece, apodrece e cai.

O que nos espera no final desta crise financeira? A salvífica união fiscal que agora se anuncia apenas acentua a deriva plutocrática que estamos a viver. Esta desgraça não é defeito, é feitio: temo-nos até agora limitado a seguir mansamente o guião escrito por anónima mão invisível. Urge decifrá-lo e rejeitá-lo.

Publicado no Jornal de Negócios em  25.9.12

terça-feira, 11 de setembro de 2012

O governo que doou o seu povo à ciência

Ouve-se perguntar há décadas que sentido faz ser a Constituição portuguesa tão longa, complexa e miudinha? Os últimos tempos ajudaram-me a perceber porquê. Passo a explicar.


Na última sexta-feira ficámos a saber que a contribuição dos trabalhadores para a segurança social aumentará no próximo ano 7 pontos percentuais ao mesmo tempo que a das empresas baixará 5,75. Note-se que é pequeno o impacto desta decisão sobre o défice orçamental: estamos a falar de uns 500 milhões de euros quando as metas acordadas exigem no mínimo dos mínimos uma redução de 3 mil milhões.

Significa isso que, depois de ter virado contra si o grosso da opinião pública que ainda confiava nele, o governo ainda não enfrentou sequer o essencial do problema. O que virá a seguir? Decerto, nova revisão dos escalões do IRS, despedimentos na parte mais vulnerável da função pública, reduções drásticas da quantidade e qualidade dos serviços de saúde, educação e transportes, agravamento de taxas diversas (incluindo as do SNS) e o mais que adiante se verá.

Se as medidas anunciadas não reduzem o défice de 2012 e só marginalmente o fazem em 2013, como se explica então o desvario? Dir-se-ia que o défice e o endividamento são hoje o que menos importa. A única coisa que agora conta é a aplicação a todo o custo da receita mágica das reformas estruturais. Mesmo aqui, porém, o foco foi consideravelmente restringido, visto que das reformas da justiça ou do poder autárquico, por exemplo, já ninguém parece querer saber.

As reformas de que o país consensualmente necessita são, pois, no discurso e na prática, substituídas por contra-reformas inspiradas pelo revanchismo social, impondo-se uma modalidade de capitalismo extractivo que, por lei, transfere rendimentos dos trabalhadores para os empresários. A acção governativa orienta-se crescentemente apenas e só pelo intuito de precarizar as relações laborais e contrair os custos salariais, na crença (ou sob o pretexto) de que daí resultará um economia mais sólida e competitiva.

Este extremismo ideológico – que, obviamente, ninguém sufragou – é o aliado natural da pulsão neurótico-depressiva de que a troika se alimenta. Afigura-se portanto plausível que o governo tenha conseguido a indulgência em relação ao fracasso do défice para 2012 a troco da garantia de redução da TSU para as empresas tão acarinhada por uma das mais retrógradas escolas do pensamento económico.

Sabe-se como a teoria da desvalorização interna é cara ao FMI e aos doutrinários do Banco de Portugal. Sabe-se também que, até hoje, ela só foi experimentada na Letónia, e que os seus resultados foram, numa avaliação caridosa, inconclusivos. Faz-lhes falta, pois, testá-la num país de razoável dimensão e complexidade económica como o nosso.

Com a colaboração do governo português, o FMI, que gosta de fazer experiências com animais vivos, encontrou neste povo o ratinho de laboratório ideal.

Qual a probabilidade de que daqui resultem consequência positivas para o crescimento e o emprego? A crer nos estudos a seu tempo encomendados pelo governo português, quase nenhuma. Além disso, os inquéritos regularmente lançados pelo INE mostram que as razões invocadas pelos empresários para não contratarem mais trabalhadores são a ausência de mercado e a indisponibilidade de crédito, não o nível salarial.

A vingar a orientação anunciada, dentro de um ano o país estará mais pobre e a sua economia terá sido desarticulada. Pior ainda, a amargura e a desconfiança ter-se-ão apoderado dos corações, porque não é impunemente que se passa um rolo compressor sobre as legítimas expectativas das pessoas, suspendendo garantias, coarctando direitos e abolindo vínculos. Uma sociedade civilizada não é um acampamento que a todo o momento pode ser desmontado sem aviso prévio. A legitimidade dos sistemas políticos, económicos e sociais é sustentada pela crença na boa-fé de quem detém o poder aos mais variados níveis.

Não sobrevive por muito tempo a convivência pacífica numa sociedade cujas classes dirigentes alienam a confiança que nelas é depositada comportando-se de forma discricionária, atrabiliária e irresponsável.

Voltemos então á Constituição. Leis e contratos não precisam de ser longos quando se presume a boa-fé das partes. Havendo identificação com a letra da norma dispensa-se excessiva cautela com a sua letra. Doentia atenção ao pormenor e obsessiva preocupação em cobrir todas as possíveis ocorrências supervenientes são, pois, sintomas de desconfiança mútua.

Sou, por tudo isso, forçado a reconhecer a sabedoria dos constituintes de 1976 ao elaborarem um texto que, embora rebarbativo, dificulta a sua desvirtuação pelos derrotados de Abril que não se conformam. Tendo em conta a fragilidade das instituições, a podridão do sistema partidário e a escassez de figuras públicas respeitadas, é bem possível que só o Tribunal Constitucional consiga agora evitar a catástrofe.

Publicado no Jornal de Negócios em 11.9.12