O
euro incorpora um programa político-económico que raramente foi explicitado,
muito menos apresentado com clareza aos cidadãos e submetido ao sufrágio
popular. O seu propósito declarado inicial foi a estabilização do Mercado Único
através da eliminação das perturbações decorrentes de desvalorizações das
moedas nacionais. Para vender a ideia aos povos, as elites políticas europeias
anunciaram que daí resultariam simultaneamente maior eficiência global e
reforço da convergência entre países.
Sabemos
hoje ser equivocada a crença fundadora da zona euro, segundo a qual
desmontando-se uma a uma as instituições supostamente disfuncionais vigentes em
certos estados membros, o mercado libertado encarregar-se-ia de assegurar a
felicidade universal. A convergência abrandou, depois estancou e ameaça agora
inverter-se em cada vez mais países, nos quais sucessivas doses de austeridade
sem fim à vista se combinam com a paralisia do sistema financeiro para
eliminarem de um golpe décadas de progresso.
Azar?
Não exactamente. Ao abraçar o projecto da moda única, a União Europeia
afastou-se radicalmente do método de tentativa e erro até então prevalecente
para abraçar uma utopia monetarista sem regresso nem meio-termo. Não por acaso,
o regime que hoje temos na Europa assemelha-se muito ao projecto concebido por
Hayek para eliminar de raiz a possibilidade de os mecanismos democráticos
interferirem no livre funcionamento dos mercados.
Hayek,
o principal inspirador do liberalismo extremista contemporâneo, concebeu uma
solução ideal consistente em criar um poder supranacional não eleito que
chamaria a si a definição dos direitos económicos e sociais (ou ausência deles)
e das políticas macroeconómicas essenciais, deixando apenas ao nível inferior
dependente do voto a responsabilidade de cobrar impostos e decidir sobre a
redistribuição do rendimento. Neste sistema, que hoje impera na União Europeia,
o jogo democrático torna-se uma mera formalidade sem consequências e os
governos nacionais surgem cada vez mais aos olhos de todos como meros títeres
de poderes distantes e inamovíveis.
Percebe-se
assim melhor que, imunes à convicção generalizada de que a raiz dos nossos actuais
males se encontra na desregulação do sistema financeiro, os seus agentes logrem
reforçar ainda mais o seu poder sob a tutela do Banco Central Europeu. A impropriamente
chamada ajuda aos países da periferia pode, por exemplo, ser lida sem excessivo
maquiavelismo como, antes e acima de tudo, um socorro disfarçado aos bancos do
centro durante anos envolvidos em investimentos especulativos em dívida pública
que corriam agora o risco de não conseguir cobrar.
Quem
entre nós exigiu nos últimos anos a mudança de regime pode regozijar-se: ele de
facto já mudou, pois que, a par da Constituição oficial da República há hoje
uma constituição não-escrita que, na prática, tutela a comunidade e governa os
seus destinos.
Tal
circunstância decorre de um dogma paralelo do liberalismo doutrinário segundo o
qual existe um conjunto de instituições ideais que todos os países que anseiam
pela prosperidade devem adoptar, uma espécie de fato para marrecos que também
nós teremos que envergar.
Nada disto é validado pela experiência empírica: cada
país desenvolveu através de um longo processo o enquadramento institucional
mais apropriado às suas circunstâncias, pelo que não temos que imitar os tiques
e os pesadelos da Alemanha para progredir.
Sucede
que esta concepção pluralista é hoje verbotten.
Espera-se de nós nada menos que a demolição dos direitos sociais, a
desorganização dos fóruns de concertação social, o desmantelamento de instituições
e empresas essenciais à preservação de um mínimo de soberania, o esvaziamento
dos parlamentos e o recuo do poder local. Em suma, aplica-se à democracia o mesmo
tratamento que a uma verruga que, após aplicação de uma agressiva mezinha,
amolece, apodrece e cai.
O
que nos espera no final desta crise financeira? A salvífica união fiscal que
agora se anuncia apenas acentua a deriva plutocrática que estamos a viver. Esta
desgraça não é defeito, é feitio: temo-nos até agora limitado a seguir mansamente
o guião escrito por anónima mão invisível. Urge decifrá-lo e rejeitá-lo.
Publicado no Jornal de Negócios em 25.9.12
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