terça-feira, 9 de outubro de 2012

Genuflexão ou resistência

1. “Arrependa-se dos seus pecados e reze dez Ave-Marias e cinco Padre-Nossos.” “Mas, senhor Padre, eu quero ir a Fátima a pé e dar vinte voltas de joelhos à Capela das Aparições…” É isto o que significa ir além da troika.


2. “Não insultar os credores” foi a absurda orientação escolhida para lidar com a nossa crise financeira, suscitando a legítima suspeita de que o tão elogiado bom aluno não passa, afinal, de um manteigueiro carreirista empenhado em vender-nos o ponto de vista alemão.

3. Sabemos que muitas das ideias mais penalizadoras incluídas no Memorando de Entendimento foram directamente sugeridas à troika por Eduardo Catroga (“a negociação foi sobretudo conduzida pelo maior partido da oposição”, afirmou ele em 3 de Maio de 2011). Considerando-se o ulterior percurso profissional do negociador, torna-se evidente o método subjacente a esta loucura. Quem está, afinal de que lado?

4. Salta aos olhos do mais distraído a existência de um conflito de interesses quando Portugal é representado nas negociações com a troika por um Ministro das Finanças que é também alto funcionário da Comissão Europeia. Resulta daí um confronto tão renhido como um desafio entre o Benfica A e o Benfica B. Uma situação em que Governo e troika se comportam como duas faces do mesmo euro revela por si só todo um projecto de subserviência que a ninguém deveria passar despercebido. Repito: quem está de que lado?

5. Nem Zapatero nem Rajoy se apressaram a pedir o resgate da Espanha. Ao contrário de Portugal, onde a embaixada estrangeira foi acolhida com foguetório e alcatifa vermelha, as oposições, os media e os homens de negócios espanhóis não exigiram em coro a aplicação de duras penas ao seu próprio povo. Com isso, o país criou margem de manobra negocial neste difícil transe.

6. É evidente o tratamento de excepção que a Espanha tem recebido nesta crise. Vinte e quatro horas depois de conhecido o pacote de socorro à banca espanhola, já a Irlanda exigia um semelhante, posição em que foi depois imitada pela Grécia. Já o governo português permaneceu e permanece calado. Não admira que o mesmo Draghi que apenas condiciona a compra de dívida espanhola ao pedido formal de ajuda tenha tido a ousadia de declarar há dias que Portugal só beneficiará do apoio do BCE quando regressar aos mercados – ou seja, quando já não precisar dele.

7. Apesar de a medida ser taxativamente prevista no respectivo Memorando de Entendimento, a República da Irlanda não só se recusou a privatizar o seu sector eléctrico como nem sequer separou a produção da distribuição. Estranhou-se muito por lá a pressa com que em Portugal se despachou a EDP e a REN. É o que sucede quando governo e troika não estão do mesmo lado.

8. Quando, em Outubro de 2011, o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros foi interrogado sobre o sentido do voto português no Conselho de Segurança da ONU sobre a possível admissão da Palestina na UNESCO, retorquiu que concertaríamos a nossa posição com os aliados europeus. Colocada a mesma questão ao seu homólogo alemão, a resposta foi pronta: “A Alemanha votará contra”. A nossa margem negocial é escassa, mas existe – só que não há vontade de utilizá-la.

9. A participação nas missões da NATO no Afeganistão e na Bósnia custa ao país uns 75 milhões por ano, o equivalente a mais de dois meses de gastos com o tão fustigado Rendimento Social de Inserção. Mais do que para poupar recursos escassos, a retirada serviria para mostrar aos nossos aliados o desagrado português pela forma como por eles estamos a ser tratados.

10. Não satisfeito com desvalorizar a importância das euro-obrigações, o nosso Primeiro-Ministro chegou a fantasiar em Junho que a compra de dívida pública dos países em dificuldades pelo BCE poderia conduzir a uma guerra na Europa. A sua ausência do encontro que em 21 de Setembro juntou os líderes de Itália, Espanha, Irlanda e Grécia era expectável: toda e qualquer iniciativa que vise reduzir a pressão externa sobre o país merece o desdém do governo português, decerto por embaraçar a hercúlea tarefa de empobrecimento colectivo a que meteu ombros. Não é underacting, é mesmo má vontade.

11. Na política, na guerra, na economia ou na gestão a táctica (as famosas medidas) decorre da estratégia. A margem de manobra é pois escassíssima quando nos limitamos a discutir programas de acção alternativos sem questionar a política de fundo.

12. Prisioneiro do euro e sem condições para o abandonar, pressionado por poderes externos que o esmagam, impedido de recorrer às políticas económicas mais apropriadas, Portugal encontra-se numa situação dificílima. Não podendo de momento ganhar, deve esforçar-se por controlar os danos, preservar as forças e esperar o momento oportuno para contra-atacar. Chama-se a isso defensiva estratégica.

13. Negociação exige, primeiro, vontade de afirmar uma posição própria (aquilo, afinal, de que o governo desde o início abdicou). Segundo, perceber o que é possível conseguir sem jamais perder de vista o que se quer. Terceiro, fazer saber o que jamais se aceitará, invocando se necessário os poderes que não se controla (a Constituição e a rua são excelentes argumentos). Quarto, recorrer a todas as jogadas laterais susceptíveis de reforçarem a sua posição, incluindo buscar novos aliados, fazer bluff ou alargar o terreno de confronto.

14. A estratégia até aqui seguida pelo governo português é inteiramente consistente com o propósito de operar uma alteração radical da relação de forças políticas e sociais no país. Assim, quando nos perguntam por alternativas, devemos começar por questionar o objectivo e a estratégia, e só depois atentar nas medidas que a sua reformulação implica.

Publicado no Jornal de Negócios em 9.10.12

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