terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Ai aguenta, aguenta

"Ninguém gosta de tomar decisões que provocam sofrimento noutras pessoas". Há evidentemente pessoas (talvez poucas) que gostam de provocar sofrimento noutras: logo, a análise lógica desta declaração conclui pela sua evidente falsidade.

No entanto, ela parece-nos psicologicamente verdadeira, porque verosímil: todos nós causámos já conscientemente dor a outrem no intuito de evitar um mal maior, por exemplo, castigando um filho para o ajudar a enfrentar os perigos da vida.

Falta porém explicar porque é que, em certas circunstâncias, tanta gente aparentemente normal se presta de boa mente a colaborar em processos que infligem sofrimento extremo a milhões de seres humanos sem sequer tentar resistir a algo que contraria frontalmente os valores que aparentemente professa.

Impressionado com a tese da "banalidade do mal", formulada por Hannah Arendt após assistir ao julgamento de Adolf Eichmann, o oficial SS que superintendeu toda a organização e implementação da chamada Solução Final, Stanley Milgram, à data Professor de Psicologia Social em Yale, decidiu investigar o assunto.

A experiência concebida em 1961 por Milgram consistia aparentemente num teste de memorização. Nela participavam um Experimentador, um Professor e um Aluno. O Professor recebia uma lista de pares de palavras que deveria ensinar ao Aluno. Depois de recitar a lista completa, o Professor leria ao Aluno a primeira palavra de cada par e pedia-lhe para escolher a segunda dentre quatro possíveis. Se a resposta fosse incorrecta, o Professor carregaria num botão que aplicaria ao Aluno um choque eléctrico, que aumentaria 15 volts por cada erro. Se fosse correcta, passaria à questão seguinte.

Embora o Professor - o verdadeiro sujeito da experiência - o ignorasse, o Aluno era na verdade um actor que, fechado numa sala ao lado, simulava sofrer os alegados choques eléctricos. Os gritos de dor do Aluno aumentavam de intensidade à medida que a voltagem "aumentava". A partir de certa altura, o Aluno queixava-se de problemas cardíacos e deixava de reagir. Atingidos os 135 volts, muitas pessoas questionavam a experiência e declaravam a sua intenção de abandoná-la, mas a maioria continuava depois de lhe ser assegurado que os choques não provocariam danos irreversíveis no Aluno. Quando o Professor insistia em abandonar, o Experimentador procurava dissuadi-lo, dizendo-lhe, por esta ordem:

1. Por favor, continue.

2. A experiência exige que continue.

3. É absolutamente essencial que continue.

4. Não há alternativa, tem de continuar.

Se o Professor assentisse, a experiência continuaria até ao choque máximo de 450 volts. Antes de iniciar as suas experiências, Milgram perguntou a um painel de especialistas que percentagem de Professores iria até ao enfim. A previsão apontava para 1,2%. Porém, 65% dos sujeitos aplicaram na primeira experiência o hipotético castigo de 450 volts, apesar de quase todos revelarem sinais de perturbação e tensão extremas, incluindo riso nervoso, suores e tremores. A experiência de Milgram foi desde então repetida inúmeras vezes ao longo de décadas, sem alteração notável dos resultados. Uma meta-análise publicada em 2002 por Thomas Blass, da Universidade de Maryland, concluiu que a proporção de participantes preparados para infligir a punição extrema se situa usualmente entre 61 e 66%, independentemente do tempo e do lugar.

Milgram resumiu assim as conclusões da experiência: "Pessoas normais, que se limitam a fazer o seu trabalho, podem tornar-se agentes de um processo terrivelmente destrutivo apesar de não serem movidas por qualquer hostilidade particular. Mesmo quando os efeitos destrutivos da sua acção se tornam evidentes e lhes é pedido que levem a cabo algo incompatível com padrões éticos fundamentais, pouca gente tem energia para resistir à autoridade."

O mais perturbador é que ninguém o faz por mal. Muita gente parece achar legítimo cometer as piores barbaridades na condição de que elas sejam legitimadas por uma autoridade estribada num suposto bem comum, numa linha de rumo que não se sabe bem quem traçou, de preferência sustentada pelo conhecimento científico ou, pelo menos, pela força objectiva das coisas. A diluição da responsabilidade individual desempenha aqui um papel fundamental, dado que a violência não parece resultar da vontade individual dos agentes do castigo, mas da inevitabilidade da situação ("a experiência exige que continue", "não há alternativa").

Fomos amestrados para acreditar que, quando os especialistas nos dizem que algo é inevitável, devemos acreditar nisso cegamente, mesmo que (ou sobretudo quando) tenhamos as maiores dúvidas. O Aluno existe para ser castigado pelo Professor sob a superior orientação do Experimentador. Mais claro que isto, é impossível.

P.S.: O leitor interessado em aprofundar o assunto poderá visionar no YouTube o programa em três partes "Milgram's Obedience to Authority Experiment", produzido pela BBC em 2009. Complementarmente, recomendo a conferência TED de Philip Zimbardo "The Psychology of Evil", de 2008

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O sr. Nelinho ao poder

O Sr. Nelinho entrou inesperadamente na vida do meu amigo Francisco quando ele se decidiu a adquirir uma casa espaçosa, mas algo antiga, no intuito de a recuperar, introduzindo-lhe de passagem múltiplos melhoramentos. Chegou-lhe o empreiteiro muito recomendado como pessoa despachada e empreendedora, sempre com a cabeça a fervilhar de ideias práticas e acolitado por um punhado de aplicados ajudantes.

O Sr. Nelinho compareceu no dia acordado – não exactamente à hora, mas já se sabe como essas coisas são – acompanhado do minúsculo Sr. Batata, este último munido de um bloco de apontamentos que não parou de aplicadamente rabiscar com o lápis que volta e meia sacava detrás da orelha. Após os algo bruscos cumprimentos da praxe, percorreu em passo rápido a casa, mirando tudo de cima abaixo com aquele olhar entre o atento e o distraído que só o verdadeiro perito sabe aplicar ao objecto da sua observação. O meu amigo tentava ir à frente, explicando o que pretendia, mas o Sr. Nelinho impôs-lhe o percurso e o ritmo da inspecção, sem parecer interessar-se demasiado pelo que ouvia, como se fosse supérfluo o que lhe pudessem acrescentar. "Parece que apanha tudo no ar…", maravilhou-se o Francisco.

"Pois, sim senhor, temos aqui uma bela obra." "E vai ficar muito cara?" "Aqui o Batata, que é bom em contas, tomou nota de tudo e amanhã tem cá o relatóriozinho." Fugidia bacalhauzada de despedida e já Nelinho e Batata se enfiavam sem mais conversas numa carrinha carregada de tralha e seguiam à sua vida pela rua fora.

O orçamento nem pareceu caro para tanta tarefa. "Somos um grupo pequenino, mas muito unido e desenrascado." "Quando começam?" "Isso, agora, deixa cá ver…." Tardaram mais de duas semanas, mas, quando apareceram, derramaram por toda a parte uma profusão de materiais, tábuas, varões, ferramentas, baldes de tinta e caixotes de papelão de todos os tamanhos e feitios. Aquilo ficou de imediato em estado de sítio e as tropas de ocupação lançaram sem mais demoras mãos à obra. Ao regressar nesse dia do trabalho, o Francisco espantou-se com a dispersão de esforços: "Não seria melhor fazer isto por partes?" "Nós fazemos assim. É o nosso método", foi a resposta.

Prontamente se constatou que o "método" do Sr. Nelinho era incompatível com o dia-a-dia de uma família organizada. A mulher-a-dias não conseguia lavar a roupa e passar a ferro no meio daquela confusão. Tornou-se impossível cozinhar no meio do caos. A mesa da sala de jantar estava sempre coberta de pincéis e esmaltes. Nas banheiras havia baldes de cola e tábuas partidas. Circular nos quartos de dormir era um exercício perigoso, principalmente à noite. Pior que tudo, os miúdos não conseguiam, no meio de tanta barulheira e desarrumação, fazer os trabalhos de casa.

"As crianças vão ter de emigrar, vai ter de ser", sentenciou sem se comover o Sr. Nelinho. "Emigrar, como?", fez o Francisco, que começava a sentir-se vagamente ameaçado. "Vão para casa de uns avós ou de uns tios. Há que ter paciência." Os miúdos lá abalaram, a breve trecho seguidos pela mãe, que concluiu não estar ali a fazer nada. Quanto ao Francisco, lá ia resistindo, embora cada vez mais confuso, porque via passar os dias, muita agitação na casa, muito camartelo, muita demolição, muito fio eléctrico arrancado, muito soalho esventrado e muita parede descascada, mas pouco ou nenhum progresso real do trabalho.

Cada vez que interpelava directamente o Sr. Nelinho, não tinha direito a mais que um sorriso trocista e um comentário enigmático: "Não se apoquente, porque eu, o Batata e os meus ajudantes sabemos muito bem o que estamos a fazer…" O pior foi quando, dias depois, o Nelinho lhe comunicou, com ar de quem não admite discussões, que, estando a casa em muito pior condição do que lhe havia sido transmitido, tornava-se indispensável rever urgentemente o memorando e aumentar substancialmente o orçamento. "O memorando? Qual memorando?" "Ora essa, o relatório do Batata que o senhor aprovou e assinou, não se faça de esquecido!" "E porque é que a obra há-de ficar mais cara, não me diz?" "O edifício não presta, não se pode fazer nada de jeito com ele. Há um problema de fundações. Vai ser preciso demolir a trave mestra e, isso, meu caro amigo, é quase como fazer um edifício novo."

O Francisco ficou de todas as cores. Sem se comover, o Nelinho continuou, perante o assentimento do Batata e dos restantes paspalhos que o haviam rodeado: "Até já trouxe hoje comigo o meu advogado, o Dr. Faísca, para fazermos um contrato à séria a ver se pomos ordem nesta enrascada em que o Sr. Engenheiro nos meteu". Com a irritação, o Francisco ainda nem dera pela presença do advogado. Fora de si, fulminou-o: "Fora, fora daqui de uma vez por todas! Fora com o Batata, fora com o Faísca e todas as vossas cambulhadas." O Nelinho tentou responder-lhe – "não perca a cabeça, que a mulher aqui do Coradinho é polícia e isto ainda pode acabar mal!" –, mas o Francisco estava definitivamente decidido a expulsar aquela tropa fandanga e, com energia sobre-humana, empurrou-a sem cerimónia porta fora.

"E agora?", perguntei-lhe quando o encontrei dias depois. "Agora, tenho uma dívida gigantesca ao banco, a casa está numa ruína (mil vezes pior do que quando a comprei), ninguém pode viver lá, os miúdos continuam com os avós e a Leonor ameaçou-me com o divórcio. Em compensação, estou livre."

"Mas, afinal, quem é que te recomendou o Nelinho?" "Foi o Ângelo, sabes quem é?" "O amigo do Ilídio? E ele meteu-te em casa esse animal?" "Se eu tivesse sabido…, mas só agora descobri que o Nelinho é afilhado do Ilídio!"

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Lindos serviços

Citadinos que jamais põem os pés no campo projectam na agricultura imagens bucólicas de alegres passarinhos, prados verdejantes e abençoada comunhão com a mãe natureza. Já a indústria, compensa a intrínseca falta de poesia com prosaicos valores de disciplina, método, diligência e trabalho esforçado.

Em comparação, pouco de bom parecem evocar as actividades de serviços. Serviço conota servidão, servilismo, sujeição – tudo traços negativos numa era que tanto preza a autonomia individual. Não admira, por isso, que a marcha triunfal da economia dos serviços desencadeie reacções de desconforto perante o rumo que o ocidente está a tomar.

O alarme cresce ainda mais quando as pessoas tomam consciência de que os serviços não só ocupam hoje para cima de 70% dos trabalhadores activos nas economias mais desenvolvidas (cerca de 80% nos EUA, no Reino Unido, na França, na Alemanha e na Holanda) como quase todo o novo emprego líquido é criado por eles. Os serviços são considerados pela opinião dominante culpados de infindáveis malfeitorias: não criam valor, inibem o crescimento da produtividade, pagam baixos salários, contribuem pouco para as exportações. Ora, essas percepções assentam em parte ou na totalidade em equívocos.

Durante muito tempo, os serviços foram encarados como uma categoria residual da economia, ou seja, como tudo aquilo que não era agricultura ou indústria. Até ao princípio do século XX, abrangiam principalmente criados domésticos e trabalhadores do comércio, mas a realidade é hoje muito distinta.

Para começar, uma boa parte das pessoas que oficialmente trabalham na indústria não fabrica coisas: ocupa-se, por exemplo, na investigação e desenvolvimento de novos produtos, na sua comercialização e distribuição, na gestão dos recursos humanos e na gestão financeira. Isso significa que a tradicional repartição da economia em sectores primário, secundário e terciário subestima largamente a contribuição dos serviços para o emprego e o valor acrescentado das economias contemporâneas.

Veja-se o caso da Inditex, o maior grupo mundial de moda, baseado na Galiza e detentor de marcas como Zara, Zara Home, Massimo Dutti, Pull & Bear e Uterque. A força do grupo reside numa combinação de design imitativo das últimas tendências da moda e gestão eficiente e ágil de cadeias logísticas de produção e distribuição integradas à escala global. A sua competência singular consiste na selecção, gestão e controlo de uma rede de fornecedores espalhados pelo mundo em estreita articulação com a dinâmica de pontos de venda localizados nos mercados mais promissores. A sua força reside nas actividades de serviço, não nas de produção, que são triviais.

Note-se, por outro lado, a estrutura de custos do iPhone. Os componentes que integra importam em 200 dólares e o custo total de montagem na China queda-se pelos 20 dólares por unidade. Todavia, o preço de venda ao público chega aos 700 dólares. A diferença entre custos de produção e preço final remunera no essencial o trabalho de concepção, software, design e marketing do produto. Como se vê, todas essas actividades de serviço são tributárias e complementares da indústria, não alternativas a ela.

Uma boa parte do crescimento do terciário consiste simplesmente na externalização de actividades que passam a ser adquiridas fora em vez de executadas dentro de casa. A crescente divisão do trabalho estimula desse modo o surgimento de empresas especializadas na prestação de serviços às empresas industriais. É assim que têm crescido os serviços financeiros, a advocacia de negócios, os serviços informáticos, a consultoria, a contabilidade, a auditoria, o design, a arquitectura e a publicidade, entre outros.

O angustiado apelo à reindustrialização que hoje escutamos decorre de um deficiente entendimento do que são e como funcionam as economias contemporâneas. O sector terciário não é uma alternativa ao secundário nem implica a sua extinção, antes ajuda a torná-lo mais sólido. Os serviços fortalecem a indústria qualificando a força de trabalho, cuidando da sua saúde, facilitando as comunicações e movimentando mercadorias, mas também ajudando-a directamente a tornar-se mais produtiva e a solidificar factores de diferenciação competitiva assentes, por exemplo, na inovação, no design e no marketing.

Precisamos urgentemente de melhor indústria, não necessariamente de mais indústria. Por isso, a nossa preocupação deveria antes centrar-se em fomentar o surgimento e consolidação tanto de indústrias como de serviços de alto valor acrescentado e alta tecnologia e em promover sinergias entre ambos. Tudo o resto não passa de crença supersticiosa na superioridade intrínseca das coisas e da sua manipulação sobre as ideias e o poder do espírito.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Tudo o que sempre quis saber sobre as contas públicas mas teve vergonha de perguntar

1. Para começar, 47% da chamada despesa pública de 2011 consistiu em transferências, ou seja, redistribuição de recursos que o estado opera de uns cidadãos para outros, incluindo pensões e outras prestações sociais. Não é pois verdade que o estado se aproprie de metade da riqueza do país, visto que metade dessa metade é devolvida às famílias.


2. As despesas de funcionamento das administrações públicas (salários mais consumos intermediários) representam 39% dos gastos totais. Porém, como abrangem a produção de serviços como a saúde, a educação ou a segurança, a verdade é que o custo da máquina burocrática do estado central se fica pelos 12 mil milhões (15,5% da despesa pública ou 7,2% do PIB). As gorduras do estado são afinal diminutas.

3. Os juros da dívida pública deverão absorver no próximo ano 5% do PIB. É imenso, mas em 1991 chegaram aos 8,5%.

4. O estado português foi recentemente obrigado a corrigir as suas contas incluindo nelas défices ocultos em anos anteriores, o que teve como consequência um aumento brusco da estimativa da dívida pública acumulada. O curioso é que essa dívida escondida foi praticamente toda contraída até 1989. Logo, as revisões recentes emendam falhas cometidas há muitíssimos anos.

5. A despesa pública em proporção do PIB atingiu um máximo em 1993 (46%), depois desceu ligeiramente e só voltou a esse nível, superando-o inclusive, na sequência da crise financeira mundial declarada em 2008. O país sabe conter eficazmente despesa pública, tanto mais que já o fez no passado.

6. O défice das contas públicas atingiu o seu máximo absoluto, segundo o Banco de Portugal, em 1981 – um legado de Cavaco Silva ao segundo governo da Aliança Democrática. Nunca mais se viu nada assim.

7. Em 1986, o sector público absorvia 71,7% do crédito total à economia. Em pouco mais de uma década a situação inverteu-se totalmente, de modo que, em 1999, as empresas e as famílias já absorviam 98% do crédito disponível. A economia não está hoje abafada pelo estado.

8. À data da entrada na CEE, o financiamento externo da economia representava apenas 14% do total. Em resultado da privatização da banca, a captação de recursos financeiros no exterior decuplicou entre 1989 e 1999 e a dívida pública passou a ser financiada esmagadoramente pelo estrangeiro. As instituições financeiras contribuíram para uma entrada líquida de fundos externos equivalente a 6,8% do PIB nesses anos. As responsabilidades dos bancos face ao estrangeiro passaram de 49% do PIB em 1999 para um máximo de 96% em 2007.

9. A baixa das taxas de juro decorrente da integração no euro propiciou a rápida expansão do crédito. Mas o investimento baixou em sete dos onze anos que terminaram em 2010 (variação acumulada de -20%), ao passo que o consumo privado só desceu num ano (variação acumulada de +19%). Quando havia dinheiro a rodos, o sector privado não investiu. Convém investigar porquê.

10. Também o investimento público foi baixando progressivamente até aos 3% do PIB em 2008. Em 2009 subiu um pouco, ficando ainda assim abaixo dos máximos do início da década. Como é possível continuar-se a invocar o excesso de investimento público para explicar as presentes dificuldades financeiras do estado?

11. As despesas do estado com pessoal caíram consistentemente em proporção do PIB a partir de 2002. O tão polémico aumento dos salários dos funcionários públicos em 2009 teve um impacto insignificante nas contas públicas. Em contrapartida, as prestações sociais passaram de 14% para 22% do PIB entre 2003 e 2010, sendo responsáveis por 95% do aumento da despesa corrente primária do estado entre 1999 e 2010.

12. Desmentindo a ideia de que as metas acordadas com a União Europeia nunca se cumpriram, os objectivos dos PECs entre 2006 e 2008 foram sempre confortavelmente atingidos, sem recurso a receitas extraordinárias, no que respeita a receitas, despesas, défice e dívida pública.

13. As medidas selectivas de combate à recessão em 2009 ascenderam a apenas 1,3% do PIB (quase metade pagos com fundos comunitários). O grande aumento do défice nesse ano deveu-se no essencial à quebra em 14% das receitas fiscais e ao crescimento das prestações em decorrência do agravamento da situação social. Acresce que esse aumento não se desviou significativamente do observado no resto da UE.

14. Cada um dos pontos anteriores contraria directa e taxativamente uma ou mais alegações quotidianamente escutadas nas televisões, nas rádios, nos jornais e, por decorrência, nos cafés e nos transportes públicos. Uma opinião pública inquinada por falsidades ou meias verdades não está em condições de formar um juízo válido sobre as alternativas políticas que lhe são propostas. Nestas condições, não admira que cresça descontroladamente o populismo e se degrade a qualidade da democracia.

(Os factos e números citado neste artigo foram extraídos do recentemente editado Sem Crescimento Não Há Consolidação Orçamental: Finanças Públicas, Crise e Programa de Ajustamento, de Emanuel Santos, leitura indispensável para quem deseje documentar-se sobre o tema das contas públicas.)

Publicado no Jornal de Negócios em 23.10.12

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Genuflexão ou resistência

1. “Arrependa-se dos seus pecados e reze dez Ave-Marias e cinco Padre-Nossos.” “Mas, senhor Padre, eu quero ir a Fátima a pé e dar vinte voltas de joelhos à Capela das Aparições…” É isto o que significa ir além da troika.


2. “Não insultar os credores” foi a absurda orientação escolhida para lidar com a nossa crise financeira, suscitando a legítima suspeita de que o tão elogiado bom aluno não passa, afinal, de um manteigueiro carreirista empenhado em vender-nos o ponto de vista alemão.

3. Sabemos que muitas das ideias mais penalizadoras incluídas no Memorando de Entendimento foram directamente sugeridas à troika por Eduardo Catroga (“a negociação foi sobretudo conduzida pelo maior partido da oposição”, afirmou ele em 3 de Maio de 2011). Considerando-se o ulterior percurso profissional do negociador, torna-se evidente o método subjacente a esta loucura. Quem está, afinal de que lado?

4. Salta aos olhos do mais distraído a existência de um conflito de interesses quando Portugal é representado nas negociações com a troika por um Ministro das Finanças que é também alto funcionário da Comissão Europeia. Resulta daí um confronto tão renhido como um desafio entre o Benfica A e o Benfica B. Uma situação em que Governo e troika se comportam como duas faces do mesmo euro revela por si só todo um projecto de subserviência que a ninguém deveria passar despercebido. Repito: quem está de que lado?

5. Nem Zapatero nem Rajoy se apressaram a pedir o resgate da Espanha. Ao contrário de Portugal, onde a embaixada estrangeira foi acolhida com foguetório e alcatifa vermelha, as oposições, os media e os homens de negócios espanhóis não exigiram em coro a aplicação de duras penas ao seu próprio povo. Com isso, o país criou margem de manobra negocial neste difícil transe.

6. É evidente o tratamento de excepção que a Espanha tem recebido nesta crise. Vinte e quatro horas depois de conhecido o pacote de socorro à banca espanhola, já a Irlanda exigia um semelhante, posição em que foi depois imitada pela Grécia. Já o governo português permaneceu e permanece calado. Não admira que o mesmo Draghi que apenas condiciona a compra de dívida espanhola ao pedido formal de ajuda tenha tido a ousadia de declarar há dias que Portugal só beneficiará do apoio do BCE quando regressar aos mercados – ou seja, quando já não precisar dele.

7. Apesar de a medida ser taxativamente prevista no respectivo Memorando de Entendimento, a República da Irlanda não só se recusou a privatizar o seu sector eléctrico como nem sequer separou a produção da distribuição. Estranhou-se muito por lá a pressa com que em Portugal se despachou a EDP e a REN. É o que sucede quando governo e troika não estão do mesmo lado.

8. Quando, em Outubro de 2011, o nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros foi interrogado sobre o sentido do voto português no Conselho de Segurança da ONU sobre a possível admissão da Palestina na UNESCO, retorquiu que concertaríamos a nossa posição com os aliados europeus. Colocada a mesma questão ao seu homólogo alemão, a resposta foi pronta: “A Alemanha votará contra”. A nossa margem negocial é escassa, mas existe – só que não há vontade de utilizá-la.

9. A participação nas missões da NATO no Afeganistão e na Bósnia custa ao país uns 75 milhões por ano, o equivalente a mais de dois meses de gastos com o tão fustigado Rendimento Social de Inserção. Mais do que para poupar recursos escassos, a retirada serviria para mostrar aos nossos aliados o desagrado português pela forma como por eles estamos a ser tratados.

10. Não satisfeito com desvalorizar a importância das euro-obrigações, o nosso Primeiro-Ministro chegou a fantasiar em Junho que a compra de dívida pública dos países em dificuldades pelo BCE poderia conduzir a uma guerra na Europa. A sua ausência do encontro que em 21 de Setembro juntou os líderes de Itália, Espanha, Irlanda e Grécia era expectável: toda e qualquer iniciativa que vise reduzir a pressão externa sobre o país merece o desdém do governo português, decerto por embaraçar a hercúlea tarefa de empobrecimento colectivo a que meteu ombros. Não é underacting, é mesmo má vontade.

11. Na política, na guerra, na economia ou na gestão a táctica (as famosas medidas) decorre da estratégia. A margem de manobra é pois escassíssima quando nos limitamos a discutir programas de acção alternativos sem questionar a política de fundo.

12. Prisioneiro do euro e sem condições para o abandonar, pressionado por poderes externos que o esmagam, impedido de recorrer às políticas económicas mais apropriadas, Portugal encontra-se numa situação dificílima. Não podendo de momento ganhar, deve esforçar-se por controlar os danos, preservar as forças e esperar o momento oportuno para contra-atacar. Chama-se a isso defensiva estratégica.

13. Negociação exige, primeiro, vontade de afirmar uma posição própria (aquilo, afinal, de que o governo desde o início abdicou). Segundo, perceber o que é possível conseguir sem jamais perder de vista o que se quer. Terceiro, fazer saber o que jamais se aceitará, invocando se necessário os poderes que não se controla (a Constituição e a rua são excelentes argumentos). Quarto, recorrer a todas as jogadas laterais susceptíveis de reforçarem a sua posição, incluindo buscar novos aliados, fazer bluff ou alargar o terreno de confronto.

14. A estratégia até aqui seguida pelo governo português é inteiramente consistente com o propósito de operar uma alteração radical da relação de forças políticas e sociais no país. Assim, quando nos perguntam por alternativas, devemos começar por questionar o objectivo e a estratégia, e só depois atentar nas medidas que a sua reformulação implica.

Publicado no Jornal de Negócios em 9.10.12

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Amolece, apodrece e cai

Concordo com Vítor Bento quando ele afirma que, embora os portugueses declarem querer o euro, não é seguro que queiram fazer o que é preciso para que possamos permanecer nele. Mas acrescentarei que, se de facto entendessem plenamente as implicações dessa escolha, prontamente reveriam a sua opinião.


O euro incorpora um programa político-económico que raramente foi explicitado, muito menos apresentado com clareza aos cidadãos e submetido ao sufrágio popular. O seu propósito declarado inicial foi a estabilização do Mercado Único através da eliminação das perturbações decorrentes de desvalorizações das moedas nacionais. Para vender a ideia aos povos, as elites políticas europeias anunciaram que daí resultariam simultaneamente maior eficiência global e reforço da convergência entre países.

Sabemos hoje ser equivocada a crença fundadora da zona euro, segundo a qual desmontando-se uma a uma as instituições supostamente disfuncionais vigentes em certos estados membros, o mercado libertado encarregar-se-ia de assegurar a felicidade universal. A convergência abrandou, depois estancou e ameaça agora inverter-se em cada vez mais países, nos quais sucessivas doses de austeridade sem fim à vista se combinam com a paralisia do sistema financeiro para eliminarem de um golpe décadas de progresso.

Azar? Não exactamente. Ao abraçar o projecto da moda única, a União Europeia afastou-se radicalmente do método de tentativa e erro até então prevalecente para abraçar uma utopia monetarista sem regresso nem meio-termo. Não por acaso, o regime que hoje temos na Europa assemelha-se muito ao projecto concebido por Hayek para eliminar de raiz a possibilidade de os mecanismos democráticos interferirem no livre funcionamento dos mercados.

Hayek, o principal inspirador do liberalismo extremista contemporâneo, concebeu uma solução ideal consistente em criar um poder supranacional não eleito que chamaria a si a definição dos direitos económicos e sociais (ou ausência deles) e das políticas macroeconómicas essenciais, deixando apenas ao nível inferior dependente do voto a responsabilidade de cobrar impostos e decidir sobre a redistribuição do rendimento. Neste sistema, que hoje impera na União Europeia, o jogo democrático torna-se uma mera formalidade sem consequências e os governos nacionais surgem cada vez mais aos olhos de todos como meros títeres de poderes distantes e inamovíveis.

Percebe-se assim melhor que, imunes à convicção generalizada de que a raiz dos nossos actuais males se encontra na desregulação do sistema financeiro, os seus agentes logrem reforçar ainda mais o seu poder sob a tutela do Banco Central Europeu. A impropriamente chamada ajuda aos países da periferia pode, por exemplo, ser lida sem excessivo maquiavelismo como, antes e acima de tudo, um socorro disfarçado aos bancos do centro durante anos envolvidos em investimentos especulativos em dívida pública que corriam agora o risco de não conseguir cobrar.

Quem entre nós exigiu nos últimos anos a mudança de regime pode regozijar-se: ele de facto já mudou, pois que, a par da Constituição oficial da República há hoje uma constituição não-escrita que, na prática, tutela a comunidade e governa os seus destinos.

Tal circunstância decorre de um dogma paralelo do liberalismo doutrinário segundo o qual existe um conjunto de instituições ideais que todos os países que anseiam pela prosperidade devem adoptar, uma espécie de fato para marrecos que também nós teremos que envergar. 

Nada disto é validado pela experiência empírica: cada país desenvolveu através de um longo processo o enquadramento institucional mais apropriado às suas circunstâncias, pelo que não temos que imitar os tiques e os pesadelos da Alemanha para progredir.

Sucede que esta concepção pluralista é hoje verbotten. Espera-se de nós nada menos que a demolição dos direitos sociais, a desorganização dos fóruns de concertação social, o desmantelamento de instituições e empresas essenciais à preservação de um mínimo de soberania, o esvaziamento dos parlamentos e o recuo do poder local. Em suma, aplica-se à democracia o mesmo tratamento que a uma verruga que, após aplicação de uma agressiva mezinha, amolece, apodrece e cai.

O que nos espera no final desta crise financeira? A salvífica união fiscal que agora se anuncia apenas acentua a deriva plutocrática que estamos a viver. Esta desgraça não é defeito, é feitio: temo-nos até agora limitado a seguir mansamente o guião escrito por anónima mão invisível. Urge decifrá-lo e rejeitá-lo.

Publicado no Jornal de Negócios em  25.9.12

terça-feira, 11 de setembro de 2012

O governo que doou o seu povo à ciência

Ouve-se perguntar há décadas que sentido faz ser a Constituição portuguesa tão longa, complexa e miudinha? Os últimos tempos ajudaram-me a perceber porquê. Passo a explicar.


Na última sexta-feira ficámos a saber que a contribuição dos trabalhadores para a segurança social aumentará no próximo ano 7 pontos percentuais ao mesmo tempo que a das empresas baixará 5,75. Note-se que é pequeno o impacto desta decisão sobre o défice orçamental: estamos a falar de uns 500 milhões de euros quando as metas acordadas exigem no mínimo dos mínimos uma redução de 3 mil milhões.

Significa isso que, depois de ter virado contra si o grosso da opinião pública que ainda confiava nele, o governo ainda não enfrentou sequer o essencial do problema. O que virá a seguir? Decerto, nova revisão dos escalões do IRS, despedimentos na parte mais vulnerável da função pública, reduções drásticas da quantidade e qualidade dos serviços de saúde, educação e transportes, agravamento de taxas diversas (incluindo as do SNS) e o mais que adiante se verá.

Se as medidas anunciadas não reduzem o défice de 2012 e só marginalmente o fazem em 2013, como se explica então o desvario? Dir-se-ia que o défice e o endividamento são hoje o que menos importa. A única coisa que agora conta é a aplicação a todo o custo da receita mágica das reformas estruturais. Mesmo aqui, porém, o foco foi consideravelmente restringido, visto que das reformas da justiça ou do poder autárquico, por exemplo, já ninguém parece querer saber.

As reformas de que o país consensualmente necessita são, pois, no discurso e na prática, substituídas por contra-reformas inspiradas pelo revanchismo social, impondo-se uma modalidade de capitalismo extractivo que, por lei, transfere rendimentos dos trabalhadores para os empresários. A acção governativa orienta-se crescentemente apenas e só pelo intuito de precarizar as relações laborais e contrair os custos salariais, na crença (ou sob o pretexto) de que daí resultará um economia mais sólida e competitiva.

Este extremismo ideológico – que, obviamente, ninguém sufragou – é o aliado natural da pulsão neurótico-depressiva de que a troika se alimenta. Afigura-se portanto plausível que o governo tenha conseguido a indulgência em relação ao fracasso do défice para 2012 a troco da garantia de redução da TSU para as empresas tão acarinhada por uma das mais retrógradas escolas do pensamento económico.

Sabe-se como a teoria da desvalorização interna é cara ao FMI e aos doutrinários do Banco de Portugal. Sabe-se também que, até hoje, ela só foi experimentada na Letónia, e que os seus resultados foram, numa avaliação caridosa, inconclusivos. Faz-lhes falta, pois, testá-la num país de razoável dimensão e complexidade económica como o nosso.

Com a colaboração do governo português, o FMI, que gosta de fazer experiências com animais vivos, encontrou neste povo o ratinho de laboratório ideal.

Qual a probabilidade de que daqui resultem consequência positivas para o crescimento e o emprego? A crer nos estudos a seu tempo encomendados pelo governo português, quase nenhuma. Além disso, os inquéritos regularmente lançados pelo INE mostram que as razões invocadas pelos empresários para não contratarem mais trabalhadores são a ausência de mercado e a indisponibilidade de crédito, não o nível salarial.

A vingar a orientação anunciada, dentro de um ano o país estará mais pobre e a sua economia terá sido desarticulada. Pior ainda, a amargura e a desconfiança ter-se-ão apoderado dos corações, porque não é impunemente que se passa um rolo compressor sobre as legítimas expectativas das pessoas, suspendendo garantias, coarctando direitos e abolindo vínculos. Uma sociedade civilizada não é um acampamento que a todo o momento pode ser desmontado sem aviso prévio. A legitimidade dos sistemas políticos, económicos e sociais é sustentada pela crença na boa-fé de quem detém o poder aos mais variados níveis.

Não sobrevive por muito tempo a convivência pacífica numa sociedade cujas classes dirigentes alienam a confiança que nelas é depositada comportando-se de forma discricionária, atrabiliária e irresponsável.

Voltemos então á Constituição. Leis e contratos não precisam de ser longos quando se presume a boa-fé das partes. Havendo identificação com a letra da norma dispensa-se excessiva cautela com a sua letra. Doentia atenção ao pormenor e obsessiva preocupação em cobrir todas as possíveis ocorrências supervenientes são, pois, sintomas de desconfiança mútua.

Sou, por tudo isso, forçado a reconhecer a sabedoria dos constituintes de 1976 ao elaborarem um texto que, embora rebarbativo, dificulta a sua desvirtuação pelos derrotados de Abril que não se conformam. Tendo em conta a fragilidade das instituições, a podridão do sistema partidário e a escassez de figuras públicas respeitadas, é bem possível que só o Tribunal Constitucional consiga agora evitar a catástrofe.

Publicado no Jornal de Negócios em 11.9.12