quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Vamos experimentar enfiar o gato no micro-ondas para ver o que acontece

Diz-se ter Lord Palmerston afirmado a propósito de um diferendo territorial que durante décadas opôs a Dinamarca à Confederação Germânica: “A questão do Schleswig-Holstein é tão complicada que só três pessoas na Europa chegaram a compreendê-la. O primeiro era o Príncipe Alberto, que morreu. O segundo era um Professor alemão, que enlouqueceu. O terceiro era eu, e esqueci-me.” Substitua-se o Príncipe Alberto por Miterrand, o professor alemão por Jurgen Stark e Palmerston por Delors, e, em vez do Schleswig-Holstein, estaremos a falar da zona euro.

O euro é o ornitorrinco do mundo financeiro, uma ave mamífera rastejante que se imagina capaz de altos voos. Mas não se pense que foi concebido assim por engano: as primeiras versões do projecto da moeda única europeia, traçadas nos anos 70, incluíam quase tudo o que agora se reconhece faltar-lhe: união fiscal, união política, flexibilidade numa fase de transição, euro-obrigações e um emprestador de última instância.

Foi preciso muito trabalho de sapa, liderado pela casta sacerdotal do Bundesbank, para dar à luz o fastidioso monstro que agora temos. Não por acaso, a arquitectura do euro ignora olimpicamente toda a experiência acumulada de gestão monetária internacional no último século e meio, incluindo a indispensabilidade de um emprestador de última instância para enfrentar situações de pânico bancário e a instabilidade inerente aos sistemas de câmbios fixos.

Temos por isso a comandar os destinos do euro um banco cujos estatutos, violando a norma dos países desenvolvidos, não incluem a responsabilidade de fomentar o crescimento e o emprego, levam a independência ao ponto de não ter que prestar contas a ninguém e o proíbem, mesmo numa situação de emergência limite, de financiar directamente a dívida pública.

A justificação oficial para este arranjo é o trauma alemão com a híper-inflação de 1923, ocultando que não foi ela, mas a deflação e o pico do desemprego em 1931, provocados por políticas semelhantes às de hoje, que abriram caminho a Hitler. Porém, como a experiência demonstrou, a principal utilidade desta orientação foi a criação do enquadramento institucional mais favorável aos desígnios do mercantilismo alemão, uma modalidade de parasitismo que ameaça arrasar a economia europeia.

Muitos quiseram acreditar que, com o tempo, alguém de bom senso procederia à cirurgia reconstrutiva do aleijado. Mas é típico dos dogmáticos não se deixarem desencorajar pelo choque com a realidade.

A cura proposta por Ângela Merkel para consertar a zona euro assenta numa falsidade – que a crise actual foi criada pela indisciplina fiscal de alguns – e numa crença irracional – que a austeridade punitiva e a ortodoxia monetária salvarão a Europa. As pessoas sensatas tendem a acreditar que, no último momento (por exemplo, quando um grande banco europeu colapsar), o dogma será abandonado e o BCE e a União Europeia farão o que tem que ser feito. Mas a alternativa é tão dramática que, mesmo que pouco provável, não pode ser inteiramente descartada. Assim se explica a fuga de capitais da zona euro que no final de Novembro obrigou a uma intervenção concertada de emergência de vários bancos centrais.

Para salvar o euro, evitar a estagnação duradoura e proteger o emprego é urgente uma intervenção simultânea em três frentes: a) intervenção decidida do BCE para apoiar os bancos em dificuldades e comprar dívida soberana; b) políticas expansionistas nos países com superávites crónicos, a começar pela Alemanha; c) emissão de euro-obrigações dentro de limites a definir.

No ponto de colapso iminente do euro a que chegámos, ninguém (nem sequer a Alemanha) tem algo a ganhar com o prolongamento da situação, mas nunca devemos subestimar o temível poder da estupidez. Recorde-se que, embora uma multiplicidade de factores tenha preparado o terreno para a 1ª Guerra Mundial, em última análise foi a estupidez que a desencadeou; que Salazar empenhou estupidamente o país numa via sem saída quando declarou as colónias parte integrante do território nacional; ou ainda que, confrontado com uma guerra sem quartel em três frentes simultâneas, Hitler tomou a estúpida decisão de desviar recursos em larga escala para exterminar milhões de judeus.

Estão aparentemente esgotados todos os truques que permitiriam salvar a face aos fautores da confusão: alavancagem do FEEF; pedido de ajuda à China; encaminhamento do socorro do BCE através do FMI. Caminhamos agora na borda do precipício, mas Merkel, de dedinho no ar, insiste em ordenar ao euro: “Levanta-te e anda!” e em decretar contra os pecadores ameaças de terríveis punições até à sétima geração que deixariam incomodado o Deus do Antigo Testamento. Esta linha de atuação é infantil, caprichosa, irrelevante, irresponsável e perigosa. Bart Simpson rules

Publicado no Jornal de Negócios em 7.12.11

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Quando todos devem a todos e ninguém consegue pagar

Um jovem continua desempregado três anos depois de concluir os seus estudos e começa a desconfiar que jamais ganhará o que esperava. Um casal que comprara uma casa nova para aí criar os seus dois filhos sofre um choque quando a mulher perde o seu posto de trabalho. Uma empresa que duplicara a sua capacidade de produção vê-se confrontada com uma queda abrupta da procura externa. Um país que, fiado no sucesso passado, investiu na melhoria do seu sistema de educação, constata que as receitas fiscais regridem de forma duradoura.

Se, como é usual, esse estudante, essa família, essa empresa e esse estado tiverem contraído empréstimos para financiar os seus projectos, todos poderão ter problemas de solvência. As pessoas e as empresas planeiam o seu futuro em função de expectativas de melhoria ou, ao menos, estabilidade da sua situação. Se algo de inesperado sucede, a sua capacidade de pagar será posta em causa.

O que há de comum a todas essas situações é um erro de avaliação de risco. Mas o crédito implica também uma atitude optimista do emprestador. Se o devedor não consegue pagar, isso significa que também o credor avaliou mal o risco. Por que deverá o erro do primeiro ser mais penalizado do que o do segundo? O perdão do devedor premeia a sua imprevidência? A garantia do credor também. Porquê, então, a assimetria no tratamento de um e de outro?

A aflição em que hoje vivemos, convém lembrá-lo, teve a sua origem no negócio fraudulento do subprime que, por via da difusão de produtos tóxicos, contaminou o sistema financeiro mundial. Para evitar o colapso, a dívida incobrável, que passara primeiro das famílias para os bancos, foi depois, por múltiplas formas, transferida para os estados. O seu ónus regressou agora aos bancos e, sob a forma de falências, desemprego e carga fiscal agravada, às famílias e às empresas.

As políticas de resposta à crise têm-se limitado até agora a fazer circular a dívida de mão em mão, sem se decidirem a atacar o fundo do problema, que é este: não há nenhuma forma de voltarmos a ter crescimento económico duradouro enquanto se persistir em exigir que a colossal dívida acumulada a nível mundial seja integralmente paga, especialmente quando, não sendo questionadas as políticas mercantilistas da China e da Alemanha que se encontram na sua origem, ela não pára de crescer.

Na antiga Lei de Moisés, a cada meio século era decretado um Jubileu de reconciliação entre os homens, remissão dos pecados e perdão universal: os escravos e os prisioneiros eram libertados e as dívidas eram anuladas. Mas o perdão das dívidas, mesmo que parcial, é hoje estigmatizado como blasfemo por ofender o poder do Dinheiro, deus verdadeiro do mundo contemporâneo.

Note-se que a anulação total ou parcial das dívidas, cancelando simultaneamente ativos e passivos, não afecta a riqueza existente, mas altera a sua distribuição. Porém, ao transferir recursos para aqueles que tem maior propensão a despendê-los, contribui para desbloquear a retoma.

Ainda que os obstáculos políticos a uma tal operação fossem superados, a renegociação caso a caso das dívidas à escala mundial envolveria uma tal complexidade e tomaria tanto tempo que teremos que reconhecer a sua inviabilidade. A solução prática para a desvalorização rápida, progressiva, generalizada e implacável das dívidas é conhecida desde tempos imemoriais e chama-se inflação. Isso consegue-se monetarizando as dívidas dos estados, coisa que, na actual crise, os EUA e o Reino Unido têm vindo a fazer com bons resultados.

Resta, no caso da Europa, uma pequena dificuldade: uma superstição bárbara e irracional proíbe o BCE de comprar directamente títulos da dívida pública nos mercados primários, o que o impossibilita de funcionar como emprestador de última instância – uma singularidade nada invejável do sistema monetário a que estamos amarrados.

Se no tempo de Moisés já houvesse banco central, é provável que a Bíblia lhe recomendasse que agisse como emprestador de última instância em caso de crise financeira adequada. Como os textos sagrados nada dizem a este respeito, resta-nos esperar que, antes da queda no abismo, Mario Draghi se atreva a interpretar de forma ousada o mandato que a União lhe atribuiu, enfrentando, se necessário, a ira dos Nibelungos. Hoje em dia nem é preciso pôr a máquina de fazer notas a funcionar – basta carregar num botão.

(Publicado no Jornal de Negócios em 9.11.11)

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Há um túnel ao fundo do túnel

Qual a probabilidade de o país sair airosamente do aperto financeiro em que se encontra? Com as economias do Atlântico Norte estagnadas ou talvez mesmo em recessão, a quebra da procura externa somar-se-á à da interna, contraindo a base tributária e colocando pressão adicional sobre as contas públicas.

Na hipótese mais favorável, a União Europeia, perante a catástrofe iminente, inverteria radicalmente a sua política reforçando o FEEF, flexibilizando o acesso aos seus fundos e eventualmente dando luz verde à emissão de euro-obrigações. Mas a contrapartida não deixaria de ser o controlo direto da União sobre as finanças públicas dos países membros, o que liquidaria de vez qualquer resquício de política económica autónoma em Portugal. O impropriamente chamado federalismo fiscal revelar-se-ia afinal uma tirania pan-europeia.

E não vale a pena imaginar-se que é neste momento viável o federalismo genuíno, com um Governo Europeu supranacional responsável perante o Parlamento Europeu, porque o Tribunal Constitucional Alemão já afastou liminarmente essa possibilidade. Nestas circunstâncias, por muito que penemos, não sairemos tão cedo do gueto financeiro no qual a União Europeia nos internou.

Imaginemos, porém, que uma parte substancial da nossa dívida - digamos, metade - se evaporava no ar por via de um perdão. Ficariam os nossos problemas resolvidos? Provavelmente não, visto que, permanecendo inalterado o enquadramento institucional da zona euro, não se alteraria a orientação geral que no passado tanto penalizou o nosso desempenho económico.

A Zona Euro manteve até 2007 taxas de juro demasiado baixas para Portugal, que potenciaram o crescimento descontrolado do nosso endividamento privado e público. Fê-lo, porque isso era do interesse da Alemanha, a braços com um complexo processo de reunificação e uma taxa de desemprego elevada.

Desde 2007, em contrapartida, a Zona Euro impõe-nos taxas de juro demasiado elevadas, que agravam a recessão e o desemprego em Portugal. Fá-lo, porque esse é agora o interesse da Alemanha.

Mentes mais optimistas dirão que isso é passado: por um lado, a crise encarregou-se de forçar a diferenciação das taxas de juro de país para país, pelo que não voltará a haver um incentivo tão poderoso ao endividamento; por outro, a recomposição da estrutura das exportações portuguesas e o seu bom comportamento na última meia dúzia de anos sugerem que os nossos maiores problemas de competitividade poderão estar em vias de ser superados.

Pode ser. Mas poderemos correr o risco de esperar passivamente mais alguns anos para verificarmos se a hipótese se confirma? Impressiona a mansidão abúlica com que o país se deixa conduzir para o abate.

As duas décadas decorridas desde o lançamento do Sistema Monetário Europeu sugerem claramente que, nestes moldes, a pertença à Zona Euro não tem para nós qualquer vantagem e tem todos os inconvenientes. O país deixou de ter política monetária e cambial própria, perdeu controlo sobre a sua política fiscal e ficou muito condicionado nas restantes vertentes das suas políticas económicas. Numa palavra, prescindiu da sua soberania entregando poder de decisão a quem não acautela minimamente os nossos interesses.

Tudo isto é hoje óbvio, tal como é óbvio que, descontando a eventualidade de uma improvável reforma da governação económica, financeira e monetária da UE, o futuro imitará o passado. Claramente, está na hora de pensarmos seriamente em alternativas, tanto mais que os custos acumulados de redução do crescimento ao longo de uma dúzia de anos são neste momento já bem elevados.

Todos sabemos que não só a saída do euro terá enormes custos como nem sequer está prevista nos tratados. Mas poderá chegar o momento em que sejamos lançados fora ou em que os elevados custos de ficarmos se revelem indubitavelmente superiores aos elevados custos de sairmos. Que fazer nessa eventualidade?

No mínimo, faz sentido que, na antecipação das difíceis negociações que vêm aí, tratemos desde já de esclarecer a que condições deveria obedecer o rearranjo institucional da zona euro para que ele nos convenha, verificar se será possível construir dentro da UE as alianças necessárias para que essa visão se torne realidade e, em alternativa, entender em que circunstâncias poderá a saída do euro vir a tornar-se a única solução aceitável. A primeira condição para qualquer negociação ter êxito é que comecemos por definir que resultado queremos obter e com que apoios poderemos contar para atingi-lo.

Sem antevermos o que poderá vir a acontecer-nos e sem nos prepararmos para o pior, o mais provável é que, em vez de uma luz, nos espere um outro túnel ao fim deste túnel.

(Publicado no Jornal de Negócios em 12.10.11)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Um dique contra a estupidez

Há quem ache boa ideia inscrever na Constituição uma interdição genérica dos défices orçamentais tendo em vista impedir desvarios governativos. E que tal aprovar uma lei que obrigue os automobilistas a conduzirem algemados para prevenir manobras perigosas? Muito estúpido, certo?

Taxar algo ou alguém de estúpido é tido como desagradável, um non sequitur que bloqueia o debate e desencadeia uma escalada de insultos. As boas maneiras instituem assim um pudor de nomear a estupidez de que ela se aproveita para andar por aí à solta.

A leitura do debate que, a propósito da utilidade de se construírem estradas, opõe n' "A Morgadinha dos Canaviais" o Sr. Joãozinho, o Brasileiro e o Pertunhas sugere-nos que é muito mais difícil desmontar um argumento estúpido do que enfrentar um inteligente; logo, a estupidez tenderá a crescer mais rapidamente do que a nossa capacidade para contê-la. Da primeira vez que me apercebi disso entrei em pânico. Depois, consolei-me pensando que não é preciso perder demasiado tempo a discutir argumentos estúpidos porque as pessoas são intuitivamente capazes de recusá-los. Mas serão mesmo?

O tema da estupidez tem sido insuficientemente estudado nas suas causas e consequências. Platão discorreu sabiamente sobre a Verdade, o Belo, o Bem ou a Razão, mas omitiu a investigação do Estúpido (os diálogos com Alcibíades, em que o tema é aflorado, são considerado apócrifos), falha que desde então a filosofia ainda não corrigiu.

Embora tenhamos uma variedade de palavras para designar o estúpido - tolo, palerma, idiota, imbecil, parvo, pateta, simplório, medíocre, básico - damos pouca atenção às nuances de significado que implicam. Por exemplo, palermice é estupidez alardeada como coisa esplendorosa, com consistência e orgulho; mediocridade é estupidez grave, majestosa, quase respeitável; já a idiotice implica uma obsessão, uma intenção estratégica, e, frequentemente, um método.

Como Sophia de Mello Breyner observou, a própria inteligência pode ser colocada ao serviço da estupidez. Pode-se, por isso, fazer dela um modo de vida. Errou pois Carlo Cipolla na formulação da sua Terceira Lei da Estupidez: a florescente indústria da estupidez comprova que um estúpido não é forçosamente alguém que prejudica os outros sem ganhar nada com isso.

É útil a distinção que Musil introduziu entre a estupidez honrada ou genuína e a desonesta ou superior. A estupidez honrada resulta da limitada capacidade intelectual de quem a produz, e não tem remédio. Pelo contrário, a estupidez superior comporta uma cegueira interessada e interesseira. Alardeia saber tudo sobre todas as coisas importantes da vida, quando de facto as ignora. Não há domínio em que não se infiltre, nem ideal, por muito nobre, de que não consiga aproveitar-se. Pode ocasionalmente envergar as vestes da verdade. É uma doença espiritual que opera com total desrespeito pelos demais, uma pretensão de superioridade destituída de qualquer fundamento no conhecimento efectivo daquilo de que se fala. É filha da soberba, um pecado capital hoje muito tolerado.

As grandes tragédias humanas não resultam da ignorância, da cobiça ou da malvadez, mas da pura e simples estupidez. Não porque a maioria das pessoas seja estúpida, mas porque em situações de complexidade extrema nos tornamos vulneráveis à estupidez. Há poucas coisas mais poderosas que a estupidez que está na moda. A difusão da estupidez encontra-se aliás tão facilitada pelos meios de comunicação contemporâneos que ela dá a volta ao mundo enquanto a lucidez acaba de calçar as botas.

Flaubert, um persistente estudioso da estupidez humana, concluíu ao cabo de anos de aturada investigação: "Estupidez, egoísmo e boa saúde são as três condições da felicidade; se bem que, faltando a estupidez, tudo estará perdido." Agrada-lhe esse projeto de vida?

Seria estúpido buscar uma solução simples, rápida e eficaz para a estupidez, mas todos podemos exercitar a nossa capacidade de resistir ao seu contágio.

Evite dar ouvidos a monomaníacos, gente de uma só causa e uma só ideia. Mas não desconfie menos daqueles que estão sempre prontos a discorrer a todo o momento sobre qualquer assunto, sobretudo se forem vivos de espírito. Duvide de afirmações taxativas, unilaterais, lapidares. Procure conhecer as opiniões contrárias, principalmente aquelas de que à partida discorda. Lembre-se de que, se toda gente concorda com algo, provavelmente tratar-se-á de um erro.

Faça de conta que o mundo existe fora das suas opiniões. Pratique a ironia em relação às suas certezas pessoais. Ensaie pensamentos desconfortáveis. Duvide. Esqueça. Aprenda.

O cepticismo, outrora luxo de filósofos, é agora necessidade que todo o cidadão precisa de cultivar, sob pena de a estupidez tomar conta do mundo.


(Publicado no Jornal de Negócios em 7.9.11)

sábado, 13 de agosto de 2011

Bodes expiatórios, óleo de fígado de bacalhau e outras receitas para salvar o País e o mundo

Com o surgimento das primeiras sociedades agrícolas, os homens passaram a estar sujeitos aos efeitos de intempéries e pragas que, destruindo as colheitas, regularmente condenavam muitos à fome e, no limite, à morte.

Alguém, cujo nome não ficou registado nos anais, intuiu a dada altura que a causa de tais desgraças só poderia ser a ira dos deuses, indispostos por comportamentos impróprios dos mortais. Nada melhor para aplacar-lhes a má disposição, deduziu, que rituais coletivos de arrependimento reforçados por sacrifícios atestadores da determinação de não reincidirem na via do mal. Curiosamente, a maioria das vezes o expediente até funcionava, visto que, mais tarde ou mais cedo, a calamidade desaparecia.

Os sacrifícios humanos eram ainda correntes entre os Maias quando os espanhóis chegaram à América, mas os arqueólogos descobriram entretanto provas de que arrancar corações a cativos, degolar heréticos ou enterrar donzelas vivas foram remédios correntes contra a penúria numa dada fase da história em partes do mundo tão distantes entre si como a China e a Mesopotâmia.

Amenizando-se os costumes, o sacrifício de seres humanos foi progressivamente substituído, primeiro, pelo de animais, mais tarde, pelo de efígies, por último, por rituais atenuados de penitência, incluindo peregrinações e jejuns. O bode expiatório deu lugar a manifestações menos bárbaras, permanecendo todavia a ideia de que as desgraças são castigo divino e a culpa deve ser expiada pelo sacrifício de algo valioso.

Antes do triunfo da medicina científica, a presunção de que só o sofrimento pode curar dominava também as práticas médicas, desde as sangrias ao óleo de fígado de bacalhau, inspiradas pelo princípio de que só o que nos faz sentir mal pode realmente fazer-nos bem. Da saúde do corpo para a do espírito, a mesma estratégia se impôs até recentemente na educação: contrariar, submeter, estiolar, esmagar, humilhar, se necessário agredir, eis os fundamentos que se acreditava deverem orientar a formação cívica e intelectual do indivíduo.

Não deixa de impressionar que ainda hoje se fale descontraidamente de "sacrifícios" para designar os sofrimentos impostos por políticas supostamente concebidas para combater a crise económico-financeira, numa alusão nada discreta à origem bárbara de práticas supersticiosas que atribuem virtudes salvíficas à penitência.

Na Europa e nos EUA tem até agora prevalecido a opinião de que a presente crise será superada com austeridade. O fascínio que uma tal ideia exerce sobre os espíritos (vítimas incluídas) provém, não nos enganemos, do implacável instinto que nos leva a buscar a causa dos nossos males em pecados ou, pelo menos, graves falhas éticas individuais ou coletivas que desse modo recebem justa punição. Segundo tal crença, sendo o consumo o mal e a poupança o bem, só poderemos transcender a presente situação vivendo pior, para assim resgatarmos os pecados passados e conquistarmos, pela sua redenção, o direito a um futuro mais feliz.

Quem crê que a austeridade pode combater a recessão pensa que a contração dos gastos públicos será interpretada pelos cidadãos como uma futura redução de impostos, o que, equivalendo a um aumento do rendimento disponível, impulsionará a procura e encorajará os investidores. É essa, aliás, a teoria oficial do Banco Central Europeu. Parece lógica. Será verdadeira? Ou seja, confirmará a evidência de que dispomos a suposta bondade das políticas de austeridade?

Sucede que o FMI analisou 173 casos de austeridade fiscal ocorridos entre 1978 e 2009 no seu World Economic Outlook de 2010 e não vislumbrou sombra desse efeito. Bem pelo contrário, concluiu que o corte de 1% do défice orçamental em proporção do PIB reduz o produto em dois terços de um ponto percentual e aumenta o desemprego em um terço de um ponto percentual. Por outro lado, após estudar vários exemplos de alegada "austeridade expansionista", Ricardo Perotti sustenta que essa política só pode ter sucesso em circunstâncias muito distintas das atuais, designadamente quando não é prosseguida por muitos países ao mesmo tempo, quando é acompanhada de uma forte desvalorização da moeda e quando conduz a uma drástica queda da taxa de juro.

Como temos podido constatar, o prolongamento da recessão reduz ainda mais a capacidade de os credores pagarem as suas dívidas, pelo que a austeridade não só não diminui o desemprego como tampouco contribui para baixar o endividamento. No plano económico, a obsessão com a redução dos défices a todo o custo condena-nos à estagnação prolongada; no plano político, fomenta a busca de bodes expiatórios - sejam eles os preguiçosos do Sul, os imperialistas alemães, os banqueiros gananciosos, os bárbaros imigrantes ou os invasores chineses - e favorece o ressentimento e as correntes de opinião extremistas.

O dramático agravamento da situação mundial nos últimos dias parece confirmar que corremos o risco de nos transformarmos em danos colaterais de um culto primitivo cujo fundamento irracional é disfarçado com muitos cálculos matemáticos. Decididamente, os deuses não estão do nosso lado.

(Publicado no Jornal de Negócios em 10.8.11)

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Notas do subterrâneo

Quanto vale um euro? Depende de onde esse euro se encontra. Não acreditam? Leiam o resto.
1. Quando, em 2002, as notas de euro começaram a sair dos nossos ATM, eu não ignorava que a nova moeda era uma concretização deficiente de uma boa intenção. Confesso, porém, que não achava o euro uma ideia muito má - apenas um bocadinho má -, convicto como estava de que, com o tempo, as malformações seriam corrigidas.

2. Também os mercados financeiros acreditaram que, embora a arquitectura do euro não comportasse mecanismos de apoio às economias em dificuldades, chegada a hora eles apareceriam por vontade dos estados membros. Só isso explica, note-se, que a dívida portuguesa pagasse um juro quase idêntico ao da alemã. A expressão "moeda fiduciária" significa que a sua aceitação assenta na confiança de que ela desfruta. Enquanto persistisse a fé no euro, tudo correria normalmente.

3. À chegada da recessão, no final de 2008, a Alemanha pediu solidariedade no combate à crise. Não estaria certo que alguns países se furtassem ao esforço colectivo beneficiando do sacrifício financeiro dos outros. Logo aqui, porém, a Alemanha pressionou todos os estados membros a introduzirem um subsídio temporário à aquisição de carros novos. Depois, violou as normas comunitárias ao conceder apoios directos à sua indústria automóvel. Finalmente, fez batota ao condicionar essas ajudas à garantia de que os fabricantes eliminariam postos de trabalho na Bélgica, em Inglaterra e em Espanha, mas não na própria Alemanha.

4. A grande viragem veio no princípio de 2010, quando, convicta de que, para ela, o pior já passara, a Alemanha proclamou o princípio "cada um por si" e declarou que cada estado deveria tratar de reequilibrar rapidamente as suas contas públicas sem contar com a ajuda dos restantes. A solidariedade implícita entre os países da Zona Euro fora definitivamente revogada e os mercados entenderam o que isso significava. Os juros das dívidas soberanas dos países mais fragilizados começaram de imediato a divergir dos da alemã.

5. Considerada no seu conjunto, a Zona Euro tem uma situação financeira equilibrada, tanto interna como externamente. Mas isso torna-se irrelevante para os credores se a coesão deixa de preocupar as autoridades políticas e monetárias europeias, como é vontade assumida do Partido Popular Europeu que por agora comanda os destinos do Continente. Foram, pois, Merkel e o PPE os responsáveis pela quebra da confiança dos mercados financeiros na unidade da Zona Euro.

6. Esta política é, além do mais, tacanha. Na presente semana, cinco países da Zona Euro, incluindo a Espanha e a Itália, integravam o "top ten" dos países com maior probabilidade de entrarem em incumprimento, evidenciando o completo fracasso da tentativa de isolar os países "periféricos" numa leprosaria longe da vista e do coração.

7. É hoje evidente que o tratamento dispensado aos pacientes agrava o seu estado de saúde, empurrando-os para a insolvência. Os sacrifícios que os países assistidos pela UE e pelo FMI são obrigados a infligir aos seus povos não contribuem um iota para resolver o problema. Esta desoladora circunstância recorda irresistivelmente o desespero do homem do subterrâneo de Dostoievski: "O fim dos fins, meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é a inércia consciente! Pois bem, viva o subterrâneo! Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal até à derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas condições em que o vejo (embora não cesse de invejá-lo. Não, não, em todo caso, o subterrâneo é mais vantajoso!) Ali, pelo menos, pode-se... mas estou agora também a mentir. Minto porque eu próprio sei, como dois e dois, que o melhor não é o subterrâneo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual anseio, mas que de modo nenhum hei de encontrar! Para o diabo o subterrâneo!"

8. Querem toda a verdade? Cá vai ela, mas não se queixem se doer. É certo que os países sob ataque não podem permanecer no euro nem podem sair dele. Aí reside a esperança germânica de que a Zona Euro não se desmoronará. Mas não é preciso que eles saiam do euro, basta que o euro saia deles. Um dia, todos entenderão que um euro depositado em Portugal, em Espanha ou na Itália não vale o mesmo que um euro depositado na Alemanha ou na Holanda. As multinacionais que ainda não o fizeram, todas as grandes empresas e os cidadãos titulares de um património significativo carregarão num botão e, de um dia para o outro, secarão as tesourarias dos bancos locais. Nesse momento, vários países estarão na verdade fora da Zona Euro.

9. Cá no subterrâneo ainda temos Internet, através da qual ultimamente nos chegaram motivos de regozijo. O processo de desintegração chegou agora à Itália e à Espanha. Na ausência de meios financeiros bastantes para socorrê-las, chegámos ao fim da linha. Ninguém pode pagar tudo o que deve: nem a Grécia, nem nós, nem ninguém. Resta o plano alternativo há muito congelado pelo receio de correntes de opinião chauvinistas.

10. Com atraso considerável, Merkel reconhecerá por fim que, seja qual for o nome que queiramos dar-lhes, as euro-obrigações são as melhores amigas do euro e da Alemanha. Depois, quando se reformar, poderá intitular as suas memórias: "Frau Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Eurobond".

(Publicado no Jornal de Negócios em 13.7.11)

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Por que é que os economistas aparentam saber tão pouco sobre a economia?

Tive o choque da minha vida quando, após realizar testes de orientação profissional, me recomendaram que cursasse Economia. Nunca antes me passara pela cabeça estudar o tema porque, muito simplesmente, ignorava o que faziam os economistas. Passados tantos anos, a dúvida sobre o que fazem e para que servem os economistas continua a afligir muita gente.

Os Nóbeis atribuídos nos últimos anos comprovam que os economistas investigam assuntos de grande relevância para o entendimento do funcionamento dos mercados, como sejam a psicologia dos consumidores, a informação assimétrica, as falhas de coordenação, os obstáculos à cooperação dentro das empresas ou as condições que favorecem o alargamento das desigualdades.

Todavia, a síntese dessa investigação que é servida aos estudantes e à opinião pública ignora sistematicamente as limitações da racionalidade humana e as falhas dos sistemas económicos que delas decorrem, em favor de uma visão cor-de-rosa do funcionamento dos mercados desregulados. Assim, embora o estudo do comportamento dos agentes económicos demonstre que os pressupostos da microeconomia estão errados, ela continua a ser ensinada como se nada fosse. A microeconomia – disciplina rainha da síntese neoclássica – adotou, aliás, uma metodologia oposta à da ciência experimental: partindo de um certo número de axiomas, vai por aí fora deduzindo teoremas em catadupa ao jeito de um manual de geometria. Tanto os axiomas como os teoremas são falsos, mas isso não incomoda os guardiões da teoria económica.

Na sua ânsia de imitarem a física, não só os economistas académicos procuram uma teoria geral unificada, como, ao invés dela, julgam tê-la descoberto. E é isso que ensinam a gerações de jovens desprevenidos.

Os alunos aprendem logo no primeiro ano que a instituição de um salário mínimo cria desemprego. Mais tarde, ao nível pós-graduado, será confidenciado aos poucos que lá chegarem que, à luz da evidência disponível, essa proposição é tudo menos certa. Nessa fase do processo de doutrinação, porém, eles já estarão pouco disponíveis para questionar os dogmas da profissão. Quanto aos que não atingiram esse patamar, virão cá para fora de boa-fé papaguear a pseudo-ciência que lhes foi ministrada.

Os economistas empregam-se sobretudo no estado, nos bancos, na universidade e na televisão. As duas últimas ocupações devem ser consideradas normais, pois alguém deve explicar aos mortais que, por muito mal que as coisas corram, vivemos no melhor dos mundos, apenas perturbado pela inoportuna intervenção de políticos condicionados pelo voto popular. O fascínio dos economistas pelos bancos também não causa estranheza: afinal, como lapidarmente proclamou o assaltante Willie Sutton, “é lá que está o dinheiro”.

Já é mais difícil entender-se o que fazem tantos economistas – de facto, a larga maioria deles – a trabalhar no estado, tendo em conta a sua paixão pelo mercado e pelo setor privado e a aversão instintiva que lhes desperta o setor público. Os economistas amam loucamente o mercado livre, a concorrência sem freios, o empreendedorismo audaz e a globalização absoluta – mas só de longe. Dir-se-ia que temem repetir o desapontamento dos Hebreus antigos quando, depois de vaguearem décadas pelo deserto em busca da Terra Prometida, acabaram por descobrir que, afinal, lá não brotavam das pedras o leite e o maná.

Todos estranhariamos que a física e a química se revelasse inútil para os engenheiros ou a biologia para os médicos. Todavia, o presente ensino da economia não melhora em nada – bem pelo contrário – as competências dos gestores. Isso sucede porque o paradigma dominante desincentiva o conhecimento direto da realidade económica. Os neoclássicos apenas cuidam de “factos estilizados”, ou seja, da quantificação daqueles conceitos que mais facilmente se moldam às suas teorias favoritas.

Dada tanta ignorância das realidades das economias contemporâneas, não admira que, confrontados com a atual crise de crescimento, os economistas se limitem a propor: “É preciso incrementar o empreendedorismo, é preciso aumentar a produtividade!” Ou seja, devolvem-nos o problema intacto, mas chamam-lhe solução.

Não é possível entender-se a economia quando só se entende de economia. Porém, fazendo a síntese neoclássica ponto de honra de isolar a economia das restantes ciências sociais, os estudantes são estimulados a ignorar a história económica e política, a história das doutrinas económicas, a filosofia política, a sociologia e a antropologia.

Basicamente, o mundo caminhou desprevenido para a situação em que se encontra porque confiou ingenuamente nas doutrinas económicas dominantes. Por que raio deveria agora acreditar que essas mesmas ideias conseguirão tirá-lo do buraco em que se encontra, quando elas persistem num tão grande desconhecimento das realidades das economias contemporâneas?

(Publicado no Jornal de Negócios em 15.6.11)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A insensata superstição das reformas estruturais

Em Janeiro de 1957, uma equipa de técnicos da Companhia Portuguesa de Celulose liderada pelos engenheiros Rolo e Von Haffe descobriu uma forma de produzir pasta de eucalipto branqueada pelo processo kraft.

A prazo, esse feito alterou a composição da floresta portuguesa, alicerçou as bases de uma indústria até então periclitante, criou um escol de engenheiros papeleiros e permitiu a rápida expansão das nossas exportações de pasta e papel ao longo de cinco décadas.

Apesar disso, a mais importante inovação tecnológica do século XX originada em Portugal não só não foi à data noticiada nos jornais como ainda hoje permanece numa relativa obscuridade.

As transformações mais decisivas são assim. Chegam com pezinhos de lã, resultam de uma multiplicidade de iniciativas descentralizadas de grupos de indivíduos que enfrentam condições adversas, vão contra a sabedoria convencional da época, os especialistas não as prevêem, são objeto de troça generalizada. Apesar disso, desencadeiam uma deslocação de recursos para aplicações mais produtivas - que é, afinal, aquilo em que consistem o aumento da produtividade e o desenvolvimento. Com o tempo, transformam os países e geram crescente bem-estar.

São episódios deste género - fruto de trabalho, conhecimento e esforço especializados e orientados para a melhoria do desempenho - que dão origem ao desenvolvimento económico e social. Ilustram na perfeição o espírito reformista, que privilegia, na ação empresarial como na governativa, uma mescla de ousadia e ponderação, pequenos passos que se combinam para gerar grandes avanços, progresso metódico, experimentalismo sistemático, risco controlado, avaliação rigorosa dos programas ensaiados, aversão a aventuras dificilmente reversíveis.

Ora, o apelo às reformas estruturais assente na esperança de virar a página transformando tudo de uma penada é o contrário de tudo isto. Sophia de Mello Breyner saudou o 25 de Abril como "o dia inicial inteiro e limpo". Poucas semanas decorridas, já todos sabíamos que, bem longe de podermos começar tudo de novo fazendo "do passado tábua rasa", não só estamos condenados a carregar esse passado às costas como ignorá-lo pode ser muito perigoso. Goste-se ou não, é mesmo assim.

Mudar muita coisa em pouco tempo tem dois tipos de problemas. O primeiro é que, sendo muito insuficiente o nosso conhecimento sobre o modo como as sociedades funcionam, corremos o risco de provocar inesperadas catástrofes em tudo contrárias ao resultado desejado. O segundo risco, na prática ainda mais relevante, consiste na generalização de confrontos de todos contra todos quando se abre uma guerra simultânea em múltiplas frentes contra adversários entrincheirados e poderosos.

As reformas estruturais falham, antes de mais, porque facilitam a tarefa aos interesses instalados. Quando se proclama com grandes fanfarras que vão ser postas em marcha, o que de facto se consegue é alertar todos os seus opositores para a urgência de se unirem e organizarem contra elas. A diversidade das abordagens adotadas explica por que é que, depois de alguns ensaios falhados, as reformas na saúde têm entre nós progredido mais que na educação ou na justiça.

A fúria reformista é, ao contrário do reformismo discreto e quotidiano, um traço típico dos países subdesenvolvidos, onde volta não volta alguém descobre a pólvora e promete a regeneração nacional ao virar da esquina. É por isso que não há reformas estruturais na Suíça ou nos EUA, mas sim na Argentina, na Turquia ou no Bangladesh. Uma reforma estrutural é uma revolução, e falha exactamente pelas mesmas razões: voluntarismo a mais e consistência a menos. O principal resultado prático é muita agitação e poucas transformações reais. As verdadeiras reformas não se fazem de uma assentada: vão-se fazendo persistentemente, no dia a dia, sem perder de vista o propósito ambicioso que está na sua origem. É isso, aliás, o que a palavra reformismo quer dizer.

Em Portugal fazem-se reformas estruturais a mais, não a menos. A Constituição está sempre em obras, e não há maneira de lhes vermos o fim. Mal acaba uma revisão constitucional, anuncia-se logo a próxima. Daí para baixo, é todo o edifício jurídico que vive em contínua convulsão, com os resultados conhecidos. Deitar abaixo e fazer de novo pode ser um modo de vida interessante, mas não é certamente o mais eficaz. Os países não mudam assim.

Diz-se que nas ciências sociais é impossível realizar experiências programadas, mas os portugueses poderão, em breve, desmentir tal alegação, oferecendo-se como cobaias para testar uma avalanche de reformas estruturais cujo estudo fará as delícias da comunidade científica nas décadas vindouras. Se correr mal, paciência.

(Publicado no Jornal de Negócios em 18.5.11)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Louvor de Paulo Futre

As grandes modificações geo-estratégicas do último quarto de século, a começar pela queda da Cortina de Ferro, acentuaram a nossa condição periférica, deixando o sistema produtivo nacional à margem da reorganização das cadeias de produção e distribuição que delas resultou.

O alargamento do Canal do Panamá, cuja conclusão se prevê para 2014, é, neste domínio, a primeira boa notícia para nós desde há muito tempo. Há três razões para isso: a) uma parte do tráfego marítimo proveniente do Extremo Oriente será desviado da rota de Suez para a do Panamá; b) a Costa Oeste dos EUA ficará muito mais próxima da Europa; c) a ampliação do canal favorecerá a utilização de navios de maior porte. Os nossos portos (e, em particular, o de Sines) sairão favorecidos, face aos mediterrânicos (designadamente, Barcelona e Valência), pela perda de importância de Suez; e, face aos atlânticos, pelas suas condições para receber os grandes navios New Panamax.

Que poderemos fazer para tirar o máximo partido das novas circunstâncias, designadamente aproveitando o potencial de Sines, o nosso grande porto natural de águas profundas? A reanimação do Porto de Sines iniciou-se em 2004, quando a parceria com a PSA (Port of Singapore Authority) para a gestão do Terminal de Contentores lançou as bases para o incremento do tráfego com origem no Extremo Oriente. Desde então, os investimentos realizados permitiram um crescimento do volume de mercadorias movimentadas a rondar os 50% ao ano. Mesmo assim, o Estado português atrasou-se imperdoavelmente no cumprimento do compromisso assumido com a PSA de melhorar a ligação ferroviária a Espanha.

No plano estritamente portuário, estamos, pois, em condições de beneficiar do alargamento do Canal do Panamá, porque há um rumo traçado e porque têm vindo a ser dados os passos certos. Todavia, o grande desafio que se nos coloca é o de aproveitarmos estas mudanças para redinamizar a nossa indústria, integrando-a nas grandes cadeias de aprovisionamento mundiais de que tem estado arredada - ou seja, para assegurar que, em vez de nos mantermos perdidos nos confins da Europa, conseguimos afirmar-nos como plataforma de articulação entre ela e algumas das regiões mais dinâmicas do Mundo, designadamente o Extremo Oriente, a Costa Oeste dos EUA e a América Latina.

Isso implica descobrirmos como as novas condições poderão ajudar ao reposicionamento estratégico da economia portuguesa, reorientando-a para sectores mais qualificados, de maior valor acrescentado e procura mais dinâmica. Uma política industrial pró-activa deverá cuidar de identificar atividades que, correspondendo a esse propósito, poderão beneficiar do rearranjo das cadeias internacionais de aprovisionamento que inevitavelmente resultará do alargamento do Canal do Panamá. Por outras palavras, empenhar-se-á em construir novos factores de competitividade a partir das novas condições e em atrair o investimento necessário para explorá-los.

Segundo Lino Fernandes, Presidente da Agência da Inovação, "a nossa nova posição de charneira entre a Ásia e a UE pode ser aproveitada por modelos de negócio que incorporem peças e componentes importados integrados em produtos e sistemas que beneficiam em serem produzidos perto do mercado de consumo", vantagens que podem resultar "da incidência do volume no custo do transporte", "dos custos de imobilização inerentes à variedade da procura" ou "das exigências de customização dos consumidores finais". Existiria, assim, uma vantagem para localização em Portugal de "indústrias de montagem, em particular desde a sua fase inicial de prototipagem, em processos de desenvolvimento e de teste de mercado". Que se saiba, porém, o Estado português não está a trabalhar para aprofundar o entendimento destas oportunidades e concretizar a aproximação a eventuais parceiros asiáticos.

Bem pelo contrário, a única ideia que até hoje veio a público foi a criação de uma zona franca em Sines para atrair investidores, o que equivale ao estabelecimento de um enclave onde os aventureiros do costume acorrerão para beneficiar de mão de obra barata e isenções fiscais com um mínimo de ganho para o país. Se precisamos de atrair investimento estrangeiro em quantidade e qualidade, seria bom que soubessemos o que nos interessa e que procurássemos activamente os parceiros adequados para a concretização dos nossos propósitos, em vez de ficarmos à espera de quem possa aparecer por aí.

Paulo Futre divertiu o país com o seu plano de trazer semanalmente voos charter carregados de chineses para assistirem em Alvalade às proezas do "melhor futebolista" do seu país. A ideia pode ser disparatada, mas a intuição essencial está correta: qualquer projeto económico deve hoje tentar explorar as oportunidades decorrentes do crescente peso da China e de outros países emergentes.

Futre é um sujeito com poucas letras. Porém, como tem vivido num país onde os media não se limitam a comentar a doença da burra da Ti Jaquina e os casos amorosos do Presidente da Câmara, absorveu noções úteis sobre o mundo em que vivemos. Se lhe perguntassem a opinião, decerto criticaria o facto de o AICEP ter mais delegações em Espanha que na China (já para não falar da Índia) e admirar-se-ia ao saber que o Plano Estratégico Nacional do Turismo persiste em manter como mercados prioritários a Espanha e o Reino Unido, em detrimento do Império do Meio.

Um país cujas classes dirigentes revelam menos visão do mundo que um ex-futebolista tem, claramente, um problema.

(Publicado no Jornal de Negócios em 20.4.11)

quinta-feira, 24 de março de 2011

Inteligência, fantasia, empreendedorismo e emprego jovem

Paco Underhill ensinava antropologia do espaço numa universidade até ao dia em que, no final de uma conferência, o proprietário de um "shopping" lhe perguntou se as ideias que lhe escutara não poderiam aplicar-se à organização de um centro comercial. Paco nunca antes pensara nisso, mas, desde então, quase não tem tempo para pensar noutra coisa.

É absurda a opinião de que os únicos cursos que oferecem boas perspectivas profissionais são os das áreas das ciências e das engenharias. No mundo de hoje necessita-se, mais do que nunca, de gente com qualificações muito variadas, abrangendo saberes de múltiplos domínios que só por ignorância são desprezados, tais como a antropologia, a sociologia, a arqueologia, a filosofia, as artes ou a comunicação.

O aeroporto de San Francisco é um dentre muitos nos EUA e na Europa que empregam um curador de artes plásticas. A Intel recorre a antropólogos para estudarem o modo como as pessoas se relacionam com os seus computadores. Sabe-se o particular valor estético que o design italiano acrescenta a automóveis, objectos de decoração, vestuário e sapatos. Sem uma comunicação sedutora, marcas como Nike, Red Bull ou Apple não teriam logrado destacar-se no competitivo mundo de hoje. Não se pode ter um turismo de alto valor acrescentado sem programadores culturais.

Por um lado, as nossas economias baseadas na prestação de serviços desmaterializaram-se; por outro, vivemos em sociedades ricas em bens mas carentes de sentido. É por isso que as empresas e as marcas reconhecem a necessidade de investirem no domínio do simbólico e que o mundo empresarial se vê crescentemente envolvido, de forma mais ou menos explícita, na esfera cultural. Enquanto o Ocidente conservar a sua proeminência cultural, a China poderá ser o centro manufactureiro do mundo, mas as suas empresas estarão condenadas ao estatuto acessório da subcontratação.

O propósito de um curso superior não é, como tantos crêem, oferecer de bandeja um emprego. É proporcionar aos estudantes uma introdução aprofundada a um conjunto de saberes e, nesse processo, habilitá-los a entenderem e desenvolverem raciocínios complexos. O resultado desejável é a produção de espíritos bem apetrechados, intelectualmente exigentes e inquisitivos. Só depois se coloca a questão de descobrir uma forma de aplicá-los produtivamente.

Há dois mil anos, saber ler e escrever assegurava a qualquer pessoa um lugar ao sol. Até há escassas décadas, num país algo atrasado como o nosso, um curso superior equivalia a um bilhete de entrada no círculo restrito dos profissionais bem remunerados. Hoje, um grau académico é um passo importante - mas apenas um passo - para a construção de uma carreira bem sucedida.

Compete aos próprios encontrar em seguida formas de tornarem essa qualificação economicamente valiosa para algo e alguém, o que pode passar por frequentarem cursos com uma orientação mais prática ou até por criarem o seu próprio posto trabalho - por exemplo, transformando um hóbi num negócio.

Voltando à epifânia de Paco Underhill relatada no início deste artigo, cabe perguntar quem foi, neste caso, o verdadeiro inovador: Paco ou o proprietário do "shopping"? O mérito do professor esteve em aceitar o desafio em vez de se encerrar na sua concha de académico. Ainda assim, quem de facto teve a ideia foi o seu interlocutor, o que nos permite chamar a atenção para o papel decisivo que os clientes têm no processo da inovação, um fenómeno que Eric Von Hipel, do MIT, tem vindo a estudar há mais de duas décadas.

Significa isto que de pouco valerá os nossos jovens qualificados nas mais diversas especialidades terem vontade e capacidade de tornarem socialmente úteis os seus saberes se não encontrarem nas empresas disponibilidade para ao menos escutarem as ideias que eles tiverem para lhes apresentar. Ora, sendo nós um país de gente desconfiada, essa mesquinhez contamina os gestores das empresas e torna muito difícil essa coisa simples que deveria ser conseguir-se uma entrevista para propor algo inovador - excepto, é claro, quando se tem um pai importante ou amigos bem colocados.

Os gestores que reconhecem esta verdade e que se sentem incomodados com ela, poderiam talvez tentar desbloquear esta situação. E, já agora, em vez de ficarem à espera, que tal lançarem anualmente aos jovens profissionais que acabam de chegar ao mercado de trabalho o desafio de aparecerem para explicarem o que acreditam que poderiam fazer para tornar as suas empresas mais fortes e competitivas?

PS: Não quero com isto insinuar que o empreendedorismo é a panaceia para o desemprego, uma tolice muito em voga. Porém, enquanto as economias ocidentais permanecerem estagnadas, cada qual terá de cuidar do seu jardim. Bem pior do que estar-se desempregado é não se ter um projecto de vida.

(Publicado no Jornal de Negócios em 23.3.11)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Haverá futuro para a social-democracia?

Haverá futuro para a social-democracia, entendida como uma forma de organização política que atribui ao estado consideráveis responsabilidades na área social? Durante décadas, ela foi tão consensual no Ocidente que a questão nem se colocava; mas, nos últimos tempos, esse estatuto foi algo abalado.

Diz-se, por exemplo, que o estado social pressupõe uma carga fiscal incomportável, que a presente debilidade financeira dos estados impõe uma urgente inversão de rumo, que o envelhecimento da população tornou inviável o sistema de pensões, que o apoio aos desempregados prejudica a competitividade, que sairia mais barato transferir para o sector privado a saúde e a educação e que os poderes públicos deveriam concentrar-se nas suas funções essenciais de defesa e segurança.

O argumento económico contra o estado social não é, porém, muito forte. O Sistema Nacional de Saúde britânico surgiu quando o Reino Unido estava arruinado, não numa era de prosperidade – e o mesmo pode ser dito do New Deal americano. Os estados assumiram amplas funções sociais quando o seu rendimento per capita era bem menos de metade do actual, não se entendendo que nações muito mais prósperas não possam assegurá-las. Depois de um período inicial de rápido crescimento, o peso das despesas sociais no produto estabilizou ou reduziu-se mesmo. As soluções para fazer face ao envelhecimento das populações são politicamente difíceis, mas tecnicamente triviais. Por fim, a experiência demonstra que a provisão privada de serviços de saúde, ensino e transportes é, regra geral, mais cara e pior que a pública.

A sensação que fica do actual debate é que a animosidade contra a social-democracia se estriba menos em argumentos sólidos do que em preconceitos, indiferenças, recriminações e ódios sociais que não ousam dizer o seu nome. Quais serão então os problemas reais que ameaçam a sobrevivência do Estado Social?

O primeiro reside na frequente captura dos serviços sociais pelos agentes envolvidos na sua prestação, degradando-os e encarecendo-os. Na prática, é como se as escolas públicas estivessem ao serviço dos professores; os comboios, ao dos maquinistas; e os hospitais, ao do pessoal hospitalar. Naturalmente, isso reduz o apreço do cidadão pelos serviços sociais, ao constatarem que a retórica dos direitos foi apropriada por egoístas corporações profissionais.

O segundo resulta de uma parte crescente dos beneficiários mais pobres serem estrangeiros ou percebidos como tal - por vezes de outras etnias ou religiões – donde decorre uma menor identificação com os problemas dos destinatários da ajuda, tanto mais suspeitos de parasitismo quanto mais distinta for a sua cultura de origem. Recorrendo à elegante linguagem do Dr. Portas, os “ciganos do Rendimento Mínimo” são olhados como oportunistas que “comem os nossos impostos”.

Em terceiro lugar, vivemos hoje em sociedades tribalizadas e fragmentadas, em que se diluíram sensivelmente não só o sentido de grupo social como mesmo o de nação. Ora a criação de sistemas de solidariedade públicos estribou-se num sentido de identidade partilhada envolvendo cidadãos com cultura e valores comuns, agora postos em causa. As pessoas hoje mobilizam-se para exigir o comboio do Tua, salvar o lince da Malcata ou apoiar uma consumidora maltratada pela Ensitel, mas desvalorizam a importância do voto e desinteressam-se de grandes causas nacionais.

Muito mais do que qualquer imaginária crise de sustentabilidade são essas circunstâncias que contribuem para minar o sentimento de solidariedade, encolher a base social de apoio do estado social e questionar a sua legitimidade. No seu último livro (Ill Fares the Land, em português Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos), Tony Judt conclui que só a recordação de como eram cruéis as nossas sociedades antes da emergência da social-democracia permitirá impedir o seu desmantelamento. Mas é provável que uma atitude nostálgica, não enraizada no presente, a faça parecer ainda mais obsoleta.

Em vez de contemplarmos a social-democracia como um paraíso perdido, talvez devessemos antes adoptar uma postura crítica orientada para a sua reforma. Convém recordar que a estatização da solidariedade, antes a cargo das famílias ou das instituições de socorro mútuo, veio excluír os cidadãos da sua gestão quotidiana e liquidar o instinto de cooperação. A universalidade transformou a proteção social num mecanismo automático de distribuição de benesses cujo funcionamento e custos não são entendidos pelas pessoas comuns. A generosidade foi superada pela reivindicação de direitos abstractos. Ora nada disto é bom.

O grande problema do estado social não é talvez a falta de dinheiro, mas a alienação dos cidadãos em relação aos seus propósitos e funcionamento – logo, é por aí que se deverá começar.

A boa notícia é que as tecnologias digitais disponibilizam-nos hoje instrumentos de cooperação que facilitam o envolvimento dos cidadãos na determinação dos objetivos dos programas sociais, na busca de soluções alternativas, na avaliação e seleção de projectos alternativos ou mesmo na co-criação de serviços de melhor qualidade. No decurso desse processo conseguiremos porventura tornar o estado mais democrático, empenhar os cidadãos na produção cooperativa de serviços públicos e, quem sabe, reinventar a social-democracia.

(Publicado no Jornal de Negócios em 23.2.11)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Prognósticos só no fim do euro, ou: a coruja de Minerva levanta voo ao anoitecer

João Pinto, esse grande pensador popular, disse de forma simples ("prognósticos só no fim do jogo"), o mesmo que Hegel só conseguiu exprimir com recurso à mitologia clássica ("a coruja de Minerva levanta voo ao anoitecer"), ou seja: só podemos compreender plenamente o sentido de um processo quando ele se encontra concluído ou próximo da sua conclusão.

Um quarto de século será talvez tempo suficiente para podermos fazer um balanço da nossa integração na União Europeia, tanto mais que ela está a chegar ao fim de um ciclo. Ser-se o país com mão-de-obra mais barata num clube de países ricos afigurou-se de início uma proposta imbatível, capaz de animar as exportações e de atrair volumosos capitais, com a rápida melhoria da infra-estrutura de transportes e comunicações a potenciar essa vantagem competitiva.

É hoje evidente que o fogo se extinguiu demasiado cedo, ao cabo de apenas meia dúzia de anos. As expectativas elevadas persistiram durante o que sobrou dos anos 90, impulsionadas pelos fundos comunitários e pelo surto da construção; mas, daí para cá, gripou o motor da aproximação aos países mais avançados da União. O que sucedeu?

Nem o desmantelamento do império soviético nem a abertura da China ao mundo nos favoreceram. Sem falar da perda de importância geo-estratégia que o fim da guerra fria determinou, o nosso estatuto de pequena potência "low-cost" foi instantaneamente liquidado com a invasão do espaço europeu por concorrentes ainda mais baratos e, no caso da Europa do Leste, industrial e culturalmente melhor apetrechados, humanamente mais qualificados e, "last but not least", um subúrbio geográfico do centro de gravidade económico do Continente.

Podemos queixar-nos da impreparação dos nossos empresários, dos nossos trabalhadores e do nosso Estado, mas é difícil imaginar-se como poderiam ter feito melhor, visto que, mal refeitos da primeira fase de integração na União, logo lhes caíram em cima o Mercado Único e a Moeda Única. Os países fundadores tiveram três décadas para se prepararem; nós, escassos anos.

Na época, a reflexão pública foi substituída por slogans vazios: "apanhar o comboio da Europa", "acompanhar o pelotão da frente" e acima de tudo, "comportar-se como bom aluno", todos eles úteis para justificar o seguidismo acrítico em relação à política europeia.

Foi assim que, no momento em que delas mais necessitava para fazer face aos novos concorrentes, o país voluntariamente alienou margens de liberdade de política económica conjuntural e prescindiu de políticas de desenvolvimento activas, na crença ingénua de que, assegurado um enquadramento político-financeiro estável, o livre jogo dos mercados obrigaria empresários e trabalhadores a tomarem as decisões mais favoráveis ao futuro da colectividade.

Pior, o governo da altura decidiu fixar um valor alto para o escudo na fase preparatória do euro no intuito de fazer cair a inflação, esquecendo que isso acarretaria uma degradação permanente das condições de competitividade. Por sua vez, a brusca e continuada redução da taxa de juro impulsionou, como seria de esperar, o crescente endividamento das famílias, das empresas e do Estado. Para os macroeconomistas que habitam a estratosfera, superar tais "handicaps" é problema nosso, não deles.

Em resultado, o balanço de vinte e cinco anos de integração europeia é, por muito que nos custe reconhecer, altamente desapontador.

Admitindo que a Zona Euro não se desagregará, continuaremos a viver no mesmo enquadramento institucional desfavorável em que as taxas de juro e de câmbio serão fixadas em função dos interesses da Alemanha e não nos dos países da periferia. A presente crise internacional teve, entretanto, a vantagem de trazer para a nossa companhia outros países que só agora descobriram que padecem dos mesmos males que nós.

Quase toda a gente concorda que necessitamos de requalificar os nossos trabalhadores e as nossas empresas para reconquistar competitividade, mas não está claro como isso poderá ser feito nem se disporemos dos recursos financeiros para tal necessários. Embora se reconheça que há uma mutação em curso na economia portuguesa, ela não conta com o apoio de políticas suficientemente vigorosas e coerentes que contribuam para fortalecê-la e acelerá-la.

Necessitamos de romper com a passividade que tão maus resultados deu e de concertar uma estratégia de desenvolvimento apropriada. Porém, a actual tendência na União Europeia é para se reduzir ainda mais a margem de manobra dos estados membros, pelo que isso implica a prévia conquista de espaço, em aliança com os países que partilham os nossos problemas, para aplicar políticas económicas consistentes. As coisas poderão tornar-se muito feias se, para não fazer ondas, abdicarmos de lutar por isso.

(Publicado no Jornal de Negócios de 26.1.11)