Com o surgimento das primeiras sociedades agrícolas, os homens passaram a estar sujeitos aos efeitos de intempéries e pragas que, destruindo as colheitas, regularmente condenavam muitos à fome e, no limite, à morte.
Alguém, cujo nome não ficou registado nos anais, intuiu a dada altura que a causa de tais desgraças só poderia ser a ira dos deuses, indispostos por comportamentos impróprios dos mortais. Nada melhor para aplacar-lhes a má disposição, deduziu, que rituais coletivos de arrependimento reforçados por sacrifícios atestadores da determinação de não reincidirem na via do mal. Curiosamente, a maioria das vezes o expediente até funcionava, visto que, mais tarde ou mais cedo, a calamidade desaparecia.
Os sacrifícios humanos eram ainda correntes entre os Maias quando os espanhóis chegaram à América, mas os arqueólogos descobriram entretanto provas de que arrancar corações a cativos, degolar heréticos ou enterrar donzelas vivas foram remédios correntes contra a penúria numa dada fase da história em partes do mundo tão distantes entre si como a China e a Mesopotâmia.
Amenizando-se os costumes, o sacrifício de seres humanos foi progressivamente substituído, primeiro, pelo de animais, mais tarde, pelo de efígies, por último, por rituais atenuados de penitência, incluindo peregrinações e jejuns. O bode expiatório deu lugar a manifestações menos bárbaras, permanecendo todavia a ideia de que as desgraças são castigo divino e a culpa deve ser expiada pelo sacrifício de algo valioso.
Antes do triunfo da medicina científica, a presunção de que só o sofrimento pode curar dominava também as práticas médicas, desde as sangrias ao óleo de fígado de bacalhau, inspiradas pelo princípio de que só o que nos faz sentir mal pode realmente fazer-nos bem. Da saúde do corpo para a do espírito, a mesma estratégia se impôs até recentemente na educação: contrariar, submeter, estiolar, esmagar, humilhar, se necessário agredir, eis os fundamentos que se acreditava deverem orientar a formação cívica e intelectual do indivíduo.
Não deixa de impressionar que ainda hoje se fale descontraidamente de "sacrifícios" para designar os sofrimentos impostos por políticas supostamente concebidas para combater a crise económico-financeira, numa alusão nada discreta à origem bárbara de práticas supersticiosas que atribuem virtudes salvíficas à penitência.
Na Europa e nos EUA tem até agora prevalecido a opinião de que a presente crise será superada com austeridade. O fascínio que uma tal ideia exerce sobre os espíritos (vítimas incluídas) provém, não nos enganemos, do implacável instinto que nos leva a buscar a causa dos nossos males em pecados ou, pelo menos, graves falhas éticas individuais ou coletivas que desse modo recebem justa punição. Segundo tal crença, sendo o consumo o mal e a poupança o bem, só poderemos transcender a presente situação vivendo pior, para assim resgatarmos os pecados passados e conquistarmos, pela sua redenção, o direito a um futuro mais feliz.
Quem crê que a austeridade pode combater a recessão pensa que a contração dos gastos públicos será interpretada pelos cidadãos como uma futura redução de impostos, o que, equivalendo a um aumento do rendimento disponível, impulsionará a procura e encorajará os investidores. É essa, aliás, a teoria oficial do Banco Central Europeu. Parece lógica. Será verdadeira? Ou seja, confirmará a evidência de que dispomos a suposta bondade das políticas de austeridade?
Sucede que o FMI analisou 173 casos de austeridade fiscal ocorridos entre 1978 e 2009 no seu World Economic Outlook de 2010 e não vislumbrou sombra desse efeito. Bem pelo contrário, concluiu que o corte de 1% do défice orçamental em proporção do PIB reduz o produto em dois terços de um ponto percentual e aumenta o desemprego em um terço de um ponto percentual. Por outro lado, após estudar vários exemplos de alegada "austeridade expansionista", Ricardo Perotti sustenta que essa política só pode ter sucesso em circunstâncias muito distintas das atuais, designadamente quando não é prosseguida por muitos países ao mesmo tempo, quando é acompanhada de uma forte desvalorização da moeda e quando conduz a uma drástica queda da taxa de juro.
Como temos podido constatar, o prolongamento da recessão reduz ainda mais a capacidade de os credores pagarem as suas dívidas, pelo que a austeridade não só não diminui o desemprego como tampouco contribui para baixar o endividamento. No plano económico, a obsessão com a redução dos défices a todo o custo condena-nos à estagnação prolongada; no plano político, fomenta a busca de bodes expiatórios - sejam eles os preguiçosos do Sul, os imperialistas alemães, os banqueiros gananciosos, os bárbaros imigrantes ou os invasores chineses - e favorece o ressentimento e as correntes de opinião extremistas.
O dramático agravamento da situação mundial nos últimos dias parece confirmar que corremos o risco de nos transformarmos em danos colaterais de um culto primitivo cujo fundamento irracional é disfarçado com muitos cálculos matemáticos. Decididamente, os deuses não estão do nosso lado.
Alguém, cujo nome não ficou registado nos anais, intuiu a dada altura que a causa de tais desgraças só poderia ser a ira dos deuses, indispostos por comportamentos impróprios dos mortais. Nada melhor para aplacar-lhes a má disposição, deduziu, que rituais coletivos de arrependimento reforçados por sacrifícios atestadores da determinação de não reincidirem na via do mal. Curiosamente, a maioria das vezes o expediente até funcionava, visto que, mais tarde ou mais cedo, a calamidade desaparecia.
Os sacrifícios humanos eram ainda correntes entre os Maias quando os espanhóis chegaram à América, mas os arqueólogos descobriram entretanto provas de que arrancar corações a cativos, degolar heréticos ou enterrar donzelas vivas foram remédios correntes contra a penúria numa dada fase da história em partes do mundo tão distantes entre si como a China e a Mesopotâmia.
Amenizando-se os costumes, o sacrifício de seres humanos foi progressivamente substituído, primeiro, pelo de animais, mais tarde, pelo de efígies, por último, por rituais atenuados de penitência, incluindo peregrinações e jejuns. O bode expiatório deu lugar a manifestações menos bárbaras, permanecendo todavia a ideia de que as desgraças são castigo divino e a culpa deve ser expiada pelo sacrifício de algo valioso.
Antes do triunfo da medicina científica, a presunção de que só o sofrimento pode curar dominava também as práticas médicas, desde as sangrias ao óleo de fígado de bacalhau, inspiradas pelo princípio de que só o que nos faz sentir mal pode realmente fazer-nos bem. Da saúde do corpo para a do espírito, a mesma estratégia se impôs até recentemente na educação: contrariar, submeter, estiolar, esmagar, humilhar, se necessário agredir, eis os fundamentos que se acreditava deverem orientar a formação cívica e intelectual do indivíduo.
Não deixa de impressionar que ainda hoje se fale descontraidamente de "sacrifícios" para designar os sofrimentos impostos por políticas supostamente concebidas para combater a crise económico-financeira, numa alusão nada discreta à origem bárbara de práticas supersticiosas que atribuem virtudes salvíficas à penitência.
Na Europa e nos EUA tem até agora prevalecido a opinião de que a presente crise será superada com austeridade. O fascínio que uma tal ideia exerce sobre os espíritos (vítimas incluídas) provém, não nos enganemos, do implacável instinto que nos leva a buscar a causa dos nossos males em pecados ou, pelo menos, graves falhas éticas individuais ou coletivas que desse modo recebem justa punição. Segundo tal crença, sendo o consumo o mal e a poupança o bem, só poderemos transcender a presente situação vivendo pior, para assim resgatarmos os pecados passados e conquistarmos, pela sua redenção, o direito a um futuro mais feliz.
Quem crê que a austeridade pode combater a recessão pensa que a contração dos gastos públicos será interpretada pelos cidadãos como uma futura redução de impostos, o que, equivalendo a um aumento do rendimento disponível, impulsionará a procura e encorajará os investidores. É essa, aliás, a teoria oficial do Banco Central Europeu. Parece lógica. Será verdadeira? Ou seja, confirmará a evidência de que dispomos a suposta bondade das políticas de austeridade?
Sucede que o FMI analisou 173 casos de austeridade fiscal ocorridos entre 1978 e 2009 no seu World Economic Outlook de 2010 e não vislumbrou sombra desse efeito. Bem pelo contrário, concluiu que o corte de 1% do défice orçamental em proporção do PIB reduz o produto em dois terços de um ponto percentual e aumenta o desemprego em um terço de um ponto percentual. Por outro lado, após estudar vários exemplos de alegada "austeridade expansionista", Ricardo Perotti sustenta que essa política só pode ter sucesso em circunstâncias muito distintas das atuais, designadamente quando não é prosseguida por muitos países ao mesmo tempo, quando é acompanhada de uma forte desvalorização da moeda e quando conduz a uma drástica queda da taxa de juro.
Como temos podido constatar, o prolongamento da recessão reduz ainda mais a capacidade de os credores pagarem as suas dívidas, pelo que a austeridade não só não diminui o desemprego como tampouco contribui para baixar o endividamento. No plano económico, a obsessão com a redução dos défices a todo o custo condena-nos à estagnação prolongada; no plano político, fomenta a busca de bodes expiatórios - sejam eles os preguiçosos do Sul, os imperialistas alemães, os banqueiros gananciosos, os bárbaros imigrantes ou os invasores chineses - e favorece o ressentimento e as correntes de opinião extremistas.
O dramático agravamento da situação mundial nos últimos dias parece confirmar que corremos o risco de nos transformarmos em danos colaterais de um culto primitivo cujo fundamento irracional é disfarçado com muitos cálculos matemáticos. Decididamente, os deuses não estão do nosso lado.
(Publicado no Jornal de Negócios em 10.8.11)
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