Um jovem continua desempregado três anos depois de concluir os seus estudos e começa a desconfiar que jamais ganhará o que esperava. Um casal que comprara uma casa nova para aí criar os seus dois filhos sofre um choque quando a mulher perde o seu posto de trabalho. Uma empresa que duplicara a sua capacidade de produção vê-se confrontada com uma queda abrupta da procura externa. Um país que, fiado no sucesso passado, investiu na melhoria do seu sistema de educação, constata que as receitas fiscais regridem de forma duradoura.
Se, como é usual, esse estudante, essa família, essa empresa e esse estado tiverem contraído empréstimos para financiar os seus projectos, todos poderão ter problemas de solvência. As pessoas e as empresas planeiam o seu futuro em função de expectativas de melhoria ou, ao menos, estabilidade da sua situação. Se algo de inesperado sucede, a sua capacidade de pagar será posta em causa.
O que há de comum a todas essas situações é um erro de avaliação de risco. Mas o crédito implica também uma atitude optimista do emprestador. Se o devedor não consegue pagar, isso significa que também o credor avaliou mal o risco. Por que deverá o erro do primeiro ser mais penalizado do que o do segundo? O perdão do devedor premeia a sua imprevidência? A garantia do credor também. Porquê, então, a assimetria no tratamento de um e de outro?
A aflição em que hoje vivemos, convém lembrá-lo, teve a sua origem no negócio fraudulento do subprime que, por via da difusão de produtos tóxicos, contaminou o sistema financeiro mundial. Para evitar o colapso, a dívida incobrável, que passara primeiro das famílias para os bancos, foi depois, por múltiplas formas, transferida para os estados. O seu ónus regressou agora aos bancos e, sob a forma de falências, desemprego e carga fiscal agravada, às famílias e às empresas.
As políticas de resposta à crise têm-se limitado até agora a fazer circular a dívida de mão em mão, sem se decidirem a atacar o fundo do problema, que é este: não há nenhuma forma de voltarmos a ter crescimento económico duradouro enquanto se persistir em exigir que a colossal dívida acumulada a nível mundial seja integralmente paga, especialmente quando, não sendo questionadas as políticas mercantilistas da China e da Alemanha que se encontram na sua origem, ela não pára de crescer.
Na antiga Lei de Moisés, a cada meio século era decretado um Jubileu de reconciliação entre os homens, remissão dos pecados e perdão universal: os escravos e os prisioneiros eram libertados e as dívidas eram anuladas. Mas o perdão das dívidas, mesmo que parcial, é hoje estigmatizado como blasfemo por ofender o poder do Dinheiro, deus verdadeiro do mundo contemporâneo.
Note-se que a anulação total ou parcial das dívidas, cancelando simultaneamente ativos e passivos, não afecta a riqueza existente, mas altera a sua distribuição. Porém, ao transferir recursos para aqueles que tem maior propensão a despendê-los, contribui para desbloquear a retoma.
Ainda que os obstáculos políticos a uma tal operação fossem superados, a renegociação caso a caso das dívidas à escala mundial envolveria uma tal complexidade e tomaria tanto tempo que teremos que reconhecer a sua inviabilidade. A solução prática para a desvalorização rápida, progressiva, generalizada e implacável das dívidas é conhecida desde tempos imemoriais e chama-se inflação. Isso consegue-se monetarizando as dívidas dos estados, coisa que, na actual crise, os EUA e o Reino Unido têm vindo a fazer com bons resultados.
Resta, no caso da Europa, uma pequena dificuldade: uma superstição bárbara e irracional proíbe o BCE de comprar directamente títulos da dívida pública nos mercados primários, o que o impossibilita de funcionar como emprestador de última instância – uma singularidade nada invejável do sistema monetário a que estamos amarrados.
Se no tempo de Moisés já houvesse banco central, é provável que a Bíblia lhe recomendasse que agisse como emprestador de última instância em caso de crise financeira adequada. Como os textos sagrados nada dizem a este respeito, resta-nos esperar que, antes da queda no abismo, Mario Draghi se atreva a interpretar de forma ousada o mandato que a União lhe atribuiu, enfrentando, se necessário, a ira dos Nibelungos. Hoje em dia nem é preciso pôr a máquina de fazer notas a funcionar – basta carregar num botão.
(Publicado no Jornal de Negócios em 9.11.11)
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