Paco Underhill ensinava antropologia do espaço numa universidade até ao dia em que, no final de uma conferência, o proprietário de um "shopping" lhe perguntou se as ideias que lhe escutara não poderiam aplicar-se à organização de um centro comercial. Paco nunca antes pensara nisso, mas, desde então, quase não tem tempo para pensar noutra coisa.
É absurda a opinião de que os únicos cursos que oferecem boas perspectivas profissionais são os das áreas das ciências e das engenharias. No mundo de hoje necessita-se, mais do que nunca, de gente com qualificações muito variadas, abrangendo saberes de múltiplos domínios que só por ignorância são desprezados, tais como a antropologia, a sociologia, a arqueologia, a filosofia, as artes ou a comunicação.
O aeroporto de San Francisco é um dentre muitos nos EUA e na Europa que empregam um curador de artes plásticas. A Intel recorre a antropólogos para estudarem o modo como as pessoas se relacionam com os seus computadores. Sabe-se o particular valor estético que o design italiano acrescenta a automóveis, objectos de decoração, vestuário e sapatos. Sem uma comunicação sedutora, marcas como Nike, Red Bull ou Apple não teriam logrado destacar-se no competitivo mundo de hoje. Não se pode ter um turismo de alto valor acrescentado sem programadores culturais.
Por um lado, as nossas economias baseadas na prestação de serviços desmaterializaram-se; por outro, vivemos em sociedades ricas em bens mas carentes de sentido. É por isso que as empresas e as marcas reconhecem a necessidade de investirem no domínio do simbólico e que o mundo empresarial se vê crescentemente envolvido, de forma mais ou menos explícita, na esfera cultural. Enquanto o Ocidente conservar a sua proeminência cultural, a China poderá ser o centro manufactureiro do mundo, mas as suas empresas estarão condenadas ao estatuto acessório da subcontratação.
O propósito de um curso superior não é, como tantos crêem, oferecer de bandeja um emprego. É proporcionar aos estudantes uma introdução aprofundada a um conjunto de saberes e, nesse processo, habilitá-los a entenderem e desenvolverem raciocínios complexos. O resultado desejável é a produção de espíritos bem apetrechados, intelectualmente exigentes e inquisitivos. Só depois se coloca a questão de descobrir uma forma de aplicá-los produtivamente.
Há dois mil anos, saber ler e escrever assegurava a qualquer pessoa um lugar ao sol. Até há escassas décadas, num país algo atrasado como o nosso, um curso superior equivalia a um bilhete de entrada no círculo restrito dos profissionais bem remunerados. Hoje, um grau académico é um passo importante - mas apenas um passo - para a construção de uma carreira bem sucedida.
Compete aos próprios encontrar em seguida formas de tornarem essa qualificação economicamente valiosa para algo e alguém, o que pode passar por frequentarem cursos com uma orientação mais prática ou até por criarem o seu próprio posto trabalho - por exemplo, transformando um hóbi num negócio.
Voltando à epifânia de Paco Underhill relatada no início deste artigo, cabe perguntar quem foi, neste caso, o verdadeiro inovador: Paco ou o proprietário do "shopping"? O mérito do professor esteve em aceitar o desafio em vez de se encerrar na sua concha de académico. Ainda assim, quem de facto teve a ideia foi o seu interlocutor, o que nos permite chamar a atenção para o papel decisivo que os clientes têm no processo da inovação, um fenómeno que Eric Von Hipel, do MIT, tem vindo a estudar há mais de duas décadas.
Significa isto que de pouco valerá os nossos jovens qualificados nas mais diversas especialidades terem vontade e capacidade de tornarem socialmente úteis os seus saberes se não encontrarem nas empresas disponibilidade para ao menos escutarem as ideias que eles tiverem para lhes apresentar. Ora, sendo nós um país de gente desconfiada, essa mesquinhez contamina os gestores das empresas e torna muito difícil essa coisa simples que deveria ser conseguir-se uma entrevista para propor algo inovador - excepto, é claro, quando se tem um pai importante ou amigos bem colocados.
Os gestores que reconhecem esta verdade e que se sentem incomodados com ela, poderiam talvez tentar desbloquear esta situação. E, já agora, em vez de ficarem à espera, que tal lançarem anualmente aos jovens profissionais que acabam de chegar ao mercado de trabalho o desafio de aparecerem para explicarem o que acreditam que poderiam fazer para tornar as suas empresas mais fortes e competitivas?
PS: Não quero com isto insinuar que o empreendedorismo é a panaceia para o desemprego, uma tolice muito em voga. Porém, enquanto as economias ocidentais permanecerem estagnadas, cada qual terá de cuidar do seu jardim. Bem pior do que estar-se desempregado é não se ter um projecto de vida.
(Publicado no Jornal de Negócios em 23.3.11)
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