sexta-feira, 12 de março de 2010

Desconstruindo a paranóia

Boris, o personagem central de Whatever Works, último filme de Woody Allen, tem uma visão azeda sobre o mundo: a religião não passa de um negócio, os americanos elegeram um presidente negro para evitarem ter um judeu, o amor é uma vigarice, a estupidez dos jovens vai destruir a raça humana e por aí fora. Só guarda uma opinião favorável de si próprio e daquilo que possa contribuir para confirmá-la.

Pelo seu lado, Melodie traz da small town America para Nova Iorque uma concepção do mundo igualmente fechada, mas de sinal contrário: provinciana, religiosa e orientada para os chamados “valores familiares”. O mesmo se poderia dizer de John e Marietta Celestine, os pais de Melodie que, inopinadamente, fazem a sua aparição em momentos críticos do enredo.

O interessante é a facilidade com que convicções aparentemente tão sólidas se esboroam ao primeiro embate com experiências não previstas no guião ideológico dos personagens. Boris, o auto-proclamado egoísta racional, dá guarida a uma rapariga a quem não reconhece de início dotes de inteligência, sensibilidade ou beleza, envolve-se emocionalmente com ela e acaba por desposá-la. Melodie, a rapariguinha estouvada que sonha com bailes de debutantes e rapazes atléticos e tontos, apaixona-se pela suposta superioridade intelectual de Boris; Marietta descobre uma vocação artística e adere a um menage à trois; e John conclui que toda a vida desejara ser gay sem o saber.

Há aqui um evidente padrão de pronta transmutação da rigidez ideológica em simpatia pela perspectiva contrária ao mínimo contacto com outras formas de ver as coisas. Os sujeitos mais desconfiados, lá dizia o bom do Cardeal de Retz, revelam-se sempre os maiores trouxas.

Dizem-me que, embora só agora o tenha filmado, Woody Allen criou o guião de Whatever Works há umas boas três décadas. Fez bem em esperar, pois no mundo de hoje afigura-se muito mais verosímil esta estranha combinação de crispação e permeabilidade nos comportamentos humanos.

O 11 de Setembro de 2001 constituíu um marco assinalável na consolidação do estado de espírito característico da nossa época, e que é em simultâneo de credulidade absoluta e desconfiança extrema. O fascínio da imagem do primeiro avião mergulhando nas torres gémeas pode ser assim imperfeitamente verbalizado: “Se isto é possível, então nada do que possamos imaginar está fora de cogitação e todos os perigos nos ameaçam.” Predispomo-nos a acreditar em tudo o que se afigure suficientemente ameaçador, desde a gripe das aves ao aquecimento global, desde o armamento nuclear iraniano à ruína do euro, não porque nos pareça verosímil, mas precisamente porque nos parece impossível, numa recuperação do “creio porque é absurdo” que Tertuliano definia como a essência da fé.

A obsessão contemporânea com a transparência é justificada como exigência irredutível da democracia: numa sociedade verdadeiramente governada pelo povo e para o povo não há lugar para o segredo, tudo deve ser continuamente escrutinado e explicado. Mas é pelo menos estranho que o clamor pela transparência cresça em vez de diminuir quando ela é indiscutível e incomparavelmente superior àquilo que alguma vez foi ao longo da história, incluindo a mais recente. Dir-se-ia que quanto maior a transparência, maior a suspeição.

Não se trata, é claro, de uma reivindicação racional, mas de um sintoma mórbido de uma situação cultural marcada pela incapacidade colectiva de lidar com a complexidade do mundo contemporâneo, esteja em causa a concessão de um terminal de contentores, a arbitragem do futebol ou a regulação do sistema bancário internacional. As nossas vivências fragmentadas pós-modernas inspiram crenças fragmentadas. A escassez de cultura partilhada bloqueia o diálogo e rigidifica posições.

Curiosamente, o filme de Woody Allen mostra-nos que essa situação pode ser superada na condição de alguém se revelar disposto a servir de via de comunicação entre mundos hostis. Em Whatever Works esse papel incumbe a Melodie, a agente de contaminação entre culturas que não receia passar por tola.

Num mundo hegemonizado pelo cinismo, a inocência é a suprema forma de coragem. Mas o suposto tolo poderá sempre invocar em sua defesa a máxima de Bacon: “Nada torna um homem mais desconfiado do que saber pouco”. E não foi, afinal, Alberto João Jardim quem veio reconhecer que, ao cabo de todos estes anos, ainda não conhecia bem o Primeiro Ministro?

(Publicado no Jornal de Negócios de 10.3.10)

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