A democracia é a suprema superstição contemporânea. Ou foi: já ninguém acredita nela, embora muitos continuem a fingir que sim.
As campanhas eleitorais suscitam no povo fastio ou bocejo, de que se vinga refugiando-se nas praias ou nos shoppings no dia do fatídico dever cívico. Quando, como no Brasil, é obrigatório votar, põe a cruzinha no maior palhaço que se submeter ao sufrágio.
Como bem sabemos, a democracia é, além do mais, prejudicial à boa condução dos negócios públicos. Os países têm dificuldade em adoptar políticas económicas racionais, porque os políticos cedem continuamente às pressões das massas para aumentarem a despesa pública e baixarem os impostos. Já Aristóteles nos ensinou que a democracia conduz infalivelmente ao triunfo do populismo e da demagogia.
Qualquer pessoa racional e bem informada tem, por isso, que concordar: a democracia é um obstáculo ao bem-estar e à felicidade colectiva, e persistir nessa teimosia obsoleta conduz-nos ao abismo.
Sucede, porém, que a suspensão da democracia país a país defrontar-se-ia com resistências - algumas sentimentais, outras reflexo dos interesses instalados. Veja-se o que sucedeu quando, há pouco tempo, uma voz esclarecida timidamente alvitrou "a suspensão da democracia por 6 meses". Os media - apesar de acreditarem tão pouco na democracia como eu ou o leitor - encabeçaram a algazarra por uma razão que todos entendemos: a chinfrineira ajuda a vender jornais e a assegurar audiências, estando o povo como está viciado em grosseiras picardias. Abolir a democracia, mesmo temporariamente, dar-lhes-ia cabo do negócio.
Felizmente, há uma solução melhor, que está a ser paciente e meticulosamente aplicada. A parte mais difícil foi convencer os países a aderirem à Zona Euro. "Ipso facto", eles cederam voluntariamente ao Banco Central Europeu a sua soberania em matéria de política monetária e cambial. Anexado ao Euro veio o PEC, invocando com indiscutível razoabilidade a necessidade de proteger a zona monetária do comportamento fiscal eventualmente irresponsável dos seus membros. Resultou daí uma limitação adicional da política económica, esta ao nível orçamental.
O Banco Central Europeu é uma instituição "sui generis": muito mais independente em relação aos poderes políticos do que qualquer banco central; menos transparente nas suas decisões; e, por último, estatutariamente vinculado a preocupar-se apenas com a inflação e não com o desemprego ou o crescimento.
Como tem a Zona Euro funcionado? As discrepâncias de níveis de desenvolvimento e os choques externos assimétricos conduziram a desequilíbrios persistentes dos saldos orçamentais, dos saldos comerciais, dos custos salariais e das taxas de inflação entre os países-membros. A crise financeira mundial com início em 2007 transformou-se em 2008 numa profunda recessão que, ao degradar as receitas dos impostos e impulsionar as despesas com medidas anticrise, fez disparar, primeiro, os défices públicos e, depois, os níveis de endividamento em toda a União.
Eis, pois, a janela de oportunidade que qualquer cidadão europeu consciente e responsável aguardava. Liquidada a réstia de margem de actuação que sobrava aos estados nacionais europeus, todo o poder efectivo de governação económica está hoje de facto concentrado no BCE e em instituições europeias não responsáveis perante o voto popular como a Presidência Europeia, a Comissão Europeia e o Ecofin.
Aproveitando o estado de debilidade das finanças públicas dos países-membros (principalmente os da periferia económica), trata-se agora de incumbir a Comissão de realizar avaliações regulares da situação e de criar um mecanismo eficiente de governação. Accionado um alerta, a Comissão emitirá recomendações sobre a forma de corrigir os desequilíbrios. Em casos considerados graves, a Comissão poderá declarar o país-membro em "situação de desequilíbrio excessivo", determinando "medidas correctivas" propostas por um "painel de peritos" com "um profundo conhecimento técnico sobre a realidade económica do país". Quem não cumprir à risca essas medidas estará sujeito a penalizações, indo até à perda do direito de voto nas instituições comunitárias. Por uma feliz coincidência, a larga maioria dos actuais governos da Europa apoia esta transformação. É claro que amanhã poderão ser derrubados e substituídos por outros, mas então, com o Tratado da União alterado, será já tarde para voltar atrás.
Aprovado o novo regime de governação económica da UE, os contestatários poderão espernear, manifestar-se, promover motins; decretar greve geral por 6 meses; ou trocar de governo dia sim, dia não, que isso em nada modificará as circunstâncias. Zapatero mostrou perceber a que níveis de impotência estão desde já reduzidos os governos nacionais quando declarou o seu apoio à greve geral que teve lugar em Espanha. Quem ainda não tiver entendido só tem que olhar para a Islândia e para os países bálticos para saber o que no futuro espera os descontentes: ou se submetem ou são despromovidos a sem-abrigo.
Confio que, enfim governados por sábios insensíveis aos clamores da rua, nos aguarda um futuro risonho. O mundo é hoje demasiado complexo para admitirmos que as sociedades estejam dependentes dos caprichos de eleitorados ignorantes em grande medida parasitas do Estado Social. Talvez não haja emprego para todos, mas a verdade é que nem todos querem trabalhar. Talvez alguns se escandalizem com as desigualdades económicas, mas é preciso premiar o mérito. Os que estão a mais, tarde ou cedo serão forçados a aceitar que, como lapidarmente proclamou o Reverendo Malthus: "Não há lugar para eles no banquete da Natureza."
(Publicado no Jornal de Negócios em 20.10.10)
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
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