quinta-feira, 1 de julho de 2010

Oráculos e outras ferramentas de análise económica


Dois cães passeiam na Feira do Relógio. Um deles surpreende-se: “Olha, um osso!” O outro encolhe os ombros e passa adiante: “Não pode ser: se lá estivesse, já alguém o teria encontrado.” Este segundo cão é um economista; ofereço-me para ser o primeiro, em representação de todo o bom senso que há no mundo.

A hipótese dos mercados eficientes sustenta, na sua versão extrema, que toda a informação relevante para a valorização de um título financeiro se encontra já incorporada no seu preço, de modo que é impossível saber-se mais do que aquilo que ele nos diz. Se alguém julga vislumbrar um osso – ou seja, uma oportunidade de investimento lucrativo por descobrir – isso não passa de uma ilusão.

Esta opinião é mais popular do que possa parecer. Quando tantos opinaram, a propósito da especulação contra as dívidas soberanas dos países da periferia europeia, que é inútil argumentar contra o mercado, querem com isso significar que ele está certo por definição, dada a sua imbatível capacidade para processar correcta e instantaneamente toda a informação relevante. Nada do que se possa dizer acrescentará algo a esse juízo perfeito e definitivo.

Há duas estratégias alternativas para determinar o valor de um dado título financeiro. A primeira consiste em adoptar o sentimento do mercado; a segunda, em analisar cuidadosamente os elementos susceptíveis de influenciar esse valor. A hipótese dos mercados eficientes significa que as duas se equivalem, de modo que não vale a pena queimar as pestanas a recolher e estudar muita informação.

As pessoas que compram e vendem activos financeiros aprendem nos MBAs que o mercado tem sempre razão. Logo, agem em consonância. O seu trabalho consiste em usar o capital, o crédito e a reputação das instituições que os empregam para gerar lucros. Se acertarem, receberão em poucos meses mais do que os seus pais ganharam em toda a vida; se perderem, o despedimento é o pior que lhes pode suceder.

Se o preço de um activo é determinado pelo sentimento do mercado, então o que interessa é tentar adivinhar esse sentimento, não apurar se ele será correcto. Ora, a melhor forma de fazê-lo é aderir ao pensamento convencional, pensar o que todos pensam, seguir acriticamente a última moda sem a questionar, funcionar como elo passivo da cadeia de tolices que a cada momento os tolos gostam de ouvir e repetir.

“Ah!”, recordam-nos os sábios, “mas, se os mercados especulam contra as dívidas soberanas dos países da periferia europeia é porque, indiscutivelmente, eles se encontram numa situação financeira difícil!” Certamente, toda a loucura especulativa, seja ela eufórica ou depressiva, toma como ponto de partida alguma oportunidade ou preocupação racional. O problema é que, com demasiada frequência, a loucura dos mercados financeiros se alimenta a si própria, até ao momento em que o último tolo dispende o último cêntimo e o processo se interrompe abruptamente. A períodos relativamente breves de irracionalidade seguem-se, pois, outros de retorno à normalidade. Dir-se-ia, então, que há fortes incentivos para resistir ao comportamento de rebanho.

Acontece que é mais arriscado errar contra o rebanho do que errar com ele. A menos que se preveja com exactidão o ponto de viragem – e não há nenhuma técnica infalível que permita fazê-lo – ir contra o sentimento do mercado é na verdade a coisa mais perigosa que um trader pode fazer, por isso as carteiras de títulos da esmagadora maioria dos gestores acabam por assemelhar-se como duas gotas de água. Keynes, por exemplo, aprendeu à sua custa que o mercado pode persistir no erro durante tempo suficiente para levar à insolvência os investidores mais criteriosos.

O mesmo tipo de cegueira dita o comportamentos dos analistas das agências de rating. Nicolau Santos relatou há tempos no Expresso a cómica conversa que manteve com um deles, especialista em economia portuguesa, cujas fontes de informação se reduziam a uma selecção limitada artigos de jornais. Tudo o que não encaixasse na sua visão obtusa pura e simplesmente não lhe interessava.

O resultado desta forma de conduzir as transacções financeiras está à vista. O sistema financeiro arrastou o mundo para um buraco, forçando uma intervenção de emergência dos estados para evitarem a catástrofe. Em resultado, uma boa parte do endividamento foi transferido do sector privado para o público. Ironicamente, o sector financeiro usa agora as ajudas de que beneficiou para especular contra a dívida pública, ou seja, contra todos nós.

Por que sucede isto? Os desequilíbrios financeiros internacionais persistem, com a poupança e os excedentes comerciais concentrados num punhado de países. Em consequência, não há condições para que a procura privada, seja de consumo ou de investimento, se expanda nos restantes. Há muito dinheiro entesourado, mas escassas oportunidades de aplicação rentável. A manutenção de baixas taxas de juro cria condições favoráveis à especulação, acirrada pelos riscos da dívida de alguns estados.

A voz do mercado diz-nos hoje que os estados devem adoptar políticas restritivas.

Ao invés, a voz da razão diz-nos que subsiste um forte risco de recessão ou, pelo menos, estagnação prolongada. Alerta-nos para a necessidade de os apoios às economias não serem retirados enquanto a procura privada não reanimar. Faz-nos ver que nem todas as dívidas poderão ser pagas. Recomenda, por isso, a renegociação internacional das dívidas e a aceitação de níveis de inflação um pouco mais elevados como forma de desvalorizá-las. Sugere um empenhamento na eliminação dos excedentes persistentes pelo menos tão grande como aquele que é dirigido contra os défices persistentes. Last but not least, recomenda a aceleração das reformas das instituições financeiras e do seu funcionamento.

Por que raio haveriamos nós”, perguntou recentemente Robert Skidelsky, “de tomar mais a sério o sentimento do mercado do que quando ele nos conduziu ao grande deboche de 2007?” Invocar a autoridade do mercado como quem consulta um oráculo para justificarmos as nossas preferências ou cegueiras é uma forma pouco séria de debater. Nenhum suposto determinismo económico pode ilibar-nos da responsabilidade de fazermos as nossas próprias escolhas.

(Artigo publicado no Jornal de Negócios de 2.6.10)

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