terça-feira, 19 de março de 2013

A guerra dos sabe-se lá quantos anos

"Quanto tempo vai isto ainda durar?" – eis a pergunta que hoje todos se colocam. Infelizmente, a resposta não pode ser senão: "A permanecer o actual curso das coisas, muitos e muitos anos." Vejamos porquê.
 
Há uma crise mundial e há uma crise especificamente europeia, muito distintas embora com uma raiz comum. A mundial, que deflagrou vai para seis anos ao rebentar a bolha do subprime, não tem uma única origem, mas várias. Uma das mais relevantes é o elevadíssimo nível de dívida acumulado pelas famílias, pelas empresas e pelos estados. Essa circunstância decorre, por sua vez, de nas últimas décadas os bancos centrais e, por maioria de razões, os estados terem perdido o controlo sobre a expansão do sistema financeiro global.

O dinheiro é uma coisa que se fabrica, mas não consiste no essencial em notas e moedas postas em circulação pelos bancos centrais. Dinheiro é, na verdade, qualquer título de dívida que é aceite como meio de pagamento, e é por isso que a sua criação se encontra no essencial nas mãos dos bancos. Abolindo-se como se aboliu a distinção entre banca comercial e banca de investimento e admitindo-se ao mesmo tempo níveis baixíssimos de autofinanciamento das instituições financeiras, criou-se a montanha de dívida que agora pesa sobre todos nós.

Se as economias crescessem, gerar-se-iam recursos suficientes para pagá-la. Mas de onde virá o crescimento, se nem famílias, nem empresas, nem estados têm condições para gastar mais? Exigir-se que a dívida seja inteiramente paga equivale, portanto, a condenar a economia a permanecer estagnada durante uns vinte a trinta anos.

Parece inegável que o desbloqueamento das economias ocidentais exige uma desvalorização generalizada da dívida, seja através de negociações caso a caso, seja através de um aumento generalizado dos preços (vulgo inflação). Uma operação desse tipo implicaria, porém, uma massiva redistribuição de rendimentos dos credores para os devedores, razão por que é obstinadamente recusada por quem detém as rédeas do poder político e económico.

Viremo-nos agora para o outro lado do problema, ou seja, para a crise especificamente europeia. Ao contrário da anterior, esta é, na sua essência, uma crise política com um pretexto económico, fabricada de todas as peças pelo governo alemão coadjuvado pelo BCE, quando, em 2010, ao julgar ter resolvido o seu particular problema doméstico, lançou a palavra de ordem "cada um por si". Sabe-se há muito que o euro sofre de malformações congénitas. Ainda assim, a zona euro no seu conjunto não padece de desequilíbrios financeiros externos ou internos. O problema só surgiu quando se começou a partir aos bocadinhos um sistema que era suposto ser uno, coeso e solidário.

A crise do euro foi criada pela má-fé da Alemanha, que viu na crise internacional uma oportunidade única de impor a sua hegemonia política, económica e financeira no velho continente. Esse projecto avançou sem sobressaltos de maior até ao momento em que o contágio atingiu a Espanha e a Itália, cuja ruína ameaça os próprios fundamentos do euro. Não há forma de acudir-lhes se a situação se agravar, de modo que, após muitas hesitações, o BCE decidiu-se a intervir e a Alemanha resignou-se a aceitar os princípios da união bancária, da união fiscal e, a prazo, da mutualização parcial da dívida. Porém, assim que a iniciativa do BCE começou a dar resultados, Merkel renegou a sua palavra e adiou tudo para 2014.

Os optimistas profissionais apontam a drástica redução dos "spreads" dentro da zona euro como prova de que estamos no bom caminho. Mas alguém acredita que é possível que a Espanha, por exemplo, sobreviva por muitos anos com taxas de desemprego gerais a rondar os 25% e taxas de desemprego juvenil acima dos 50%? E, no entanto, é isso que nos espera, a persistir a insistência na austeridade sem fim à vista, na expectativa de que, mais tarde ou mais cedo, sabe-se lá como, a economia entregue a si própria acabará por milagrosamente dar a volta.

A única coisa segura é que a UE se encontra em processo acelerado de desagregação, como ainda neste último fim-de-semana o Ecofin se encarregou de nos lembrar ao aprovar o tresloucado acordo imposto a Chipre que transforma todos os seus cidadãos em membros da comissão de honra para a reeleição da Prof. Drª Ângela Merkel.

Que fazer? Sair do euro não é, por enquanto, uma opção atraente. Porém, as estimativas que há dois anos nos ameaçavam com uma quebra dos salários da ordem dos 30% em tal eventualidade estão em vias de ser ultrapassadas pela realidade – e ninguém nos garante que ficaremos por aqui.

Os povos da Europa estão hoje sujeitos a um processo de violência objectiva, fria, calculada, impessoal e anónima, conduzida por carrascos que não olham as vítimas nos olhos e contra os quais nada podem os usuais mecanismos de deliberação democrática. Sair do euro implica seguramente terríveis riscos, mas poderá chegar um tempo em que os encararemos como um mal menor. Para já, precisamos urgentemente de abandonar a ilusão de que, mais mês menos mês, despertaremos deste pesadelo.

Publicado no Jornal de Negócios em 19.3.13

A maldição do estado social

Variam muito as opiniões sobre que funções cabem ao certo na definição do estado social, mas toda a gente parecer concordar que entre elas se contam a saúde e a educação. Ora, um dos problemas que ameaçam a sua sustentabilidade decorre da tendência, ao que parece inexorável, para a escalada dos custos associados a essas duas áreas do serviço público. Quais as causas da pressão que elas assim colocam sobre o equilíbrio das contas públicas? 
 
Muitos afirmam que a saúde custa cada vez mais porque a população está a envelhecer, médicos e pacientes são pouco sensíveis ao problema e o progresso tecnológico por si mesmo suscita a expansão inconsiderada de exames e tratamentos. Quanto à educação, culpa-se o alargamento da escolaridade média e o poder sindical dos professores pelo agravamento da factura da educação.

Em todos esses factores haverá alguma verdade, mas a essência do problema reside alhures: tanto a saúde como a educação são actividades intensivas em trabalho e pouco susceptíveis de automatização, por isso, não aumentando ou aumentando pouco a sua produtividade, tenderá a crescer o seu preço relativo.

O economista americano William Baumol fez há muito notar que o potencial de aumento de produtividade varia imenso de actividade para actividade. Hoje, como no século XIX, são necessários quatro músicos para tocar um quarteto de Beethoven; entretanto, a produção de uma camisa de algodão exige hoje uma fracção das horas de trabalho utilizado naquela época. O resultado é que o preço de uma camisa baixou muito em relação ao de um bilhete para escutar um quarteto de Beethoven; ou, inversamente, o segundo aumentou muito em relação ao primeiro.

Logo, se a procura que lhes é dirigida não diminuir, aumentará continuamente o peso na despesa nacional dos gastos com bens produzidos por sectores de produtividade baixa ou estagnada. É em parte por isso que a proporção dos serviços no PIB cresceu imparavelmente até se situar hoje nos países desenvolvidos entre os 80% e os 90%, o que é interpretado por uma opinião pública mal informada como sintoma de desindustrialização e decadência económica. É também por isso que, concentrando-se a actividade produtiva do estado nos serviços, tende a crescer o peso dos gastos públicos no PIB.

A perspectiva da subida contínua dos preços relativos dos serviços pessoais trabalho-intensivos resistentes à automação afigura-se, à primeira vista, algo assustadora. Segundo algumas estimativas, se os custos dos cuidados de saúde continuarem a subir como até agora, saltarão de 15% do rendimento do americano médio em 2005 para 62% em 2105, um século depois. Nessas condições, uma vez pagas essas e outras despesas com serviços essenciais, pouco sobrará para tudo o resto, incluindo coisas tão vitais como habitação, transporte, alimentação e vestuário. Note-se, além disso, que esta previsão em nada depende de a prestação dos serviços de saúde ser pública ou privada.

Como corolário desta dinâmica dos custos, caso uma parte substancial da saúde e da educação continue a ser assegurada pelo estado, a despesa pública representará uma parte cada vez maior do rendimento nacional, certamente muito superior aos 50% que já hoje são comuns nos países mais desenvolvidos e que tanto alarmam muito boa gente.

Sucede, porém, que a generalizada preocupação com este problema resulta em boa parte de um mal-entendido e que a cura usualmente proposta para o resolver pode ter resultados bem mais graves que a doença. Desde logo, embora uma parte cada vez mais reduzida do rendimento seja dedicada à aquisição de bens físicos, o crescimento sustentado da produtividade agrícola e industrial significa precisamente que essa parcela, embora menor, nos permite comprar cada vez mais alimentos, automóveis, roupas ou computadores. De modo que poderemos ter ao mesmo tempo acesso a mais bens produzidos tanto pelo sector crescentemente automatizado da economia como pelo de produtividade estagnada.

O problema não reside, pois, na existência de actividades que, pela sua própria natureza, oferecem escassas oportunidades de aumento da produtividade, mas na errada percepção das causas do aumento dos seus preços relativos e na tentativa de impor soluções desajustadas. Se o financiamento da saúde e da educação for estrangulado a pretexto de que não há alternativa, assistiremos simultaneamente à degradação da qualidade dos serviços prestados e à exclusão de cada vez mais cidadãos do acesso aos seus benefícios, com o que toda a economia e toda a sociedade acabarão por ser prejudicadas.

Por outras palavras, se as forças políticas e os governos se aferrarem a regras arbitrárias e irracionais do tipo: "o custo da educação não pode ultrapassar 5% do produto" ou "a despesa pública deve situar-se abaixo dos 50% do produto", estarão a criar artificialmente um problema, onde nenhum existe. É a essa fábula que se pode com propriedade chamar "a maldição do estado social".

No seu recente e inspirador livro, "The Cost Disease", William Baumol lança este aviso: "Se os governos não forem persuadidos por estas ideias, os cidadãos poderão ver ser-lhes negados saúde, educação e outros benefícios porque ‘parecem’ ser inacessíveis, quando de facto não o são." E acrescenta: "A continuação do crescimento da produtividade geral permitirá que a família típica continue a desfrutar de uma abundância de bens; porém, se o estado reagir de forma inapropriada, os cidadãos poderão ser penalizados por uma forte degradação dos serviços públicos em áreas como a recolha de lixo."

Publicado no Jornal de Negócios em 19.2.13

terça-feira, 5 de março de 2013

Um grande salto em frente, dois grandes saltos atrás

Se o voto popular se tornou irrelevante para escolher entre políticas distintas, porque não eleger alguém que ao menos lance o pânico entre os poderosos que comandam a UE, o BCE e o FMI? – assim parece ter raciocinado na passada semana o eleitorado italiano.
 
Quem quer que hoje se esforce por ver além da espuma dos dias, não só entende que o défice democrático europeu se foi alargando até originar esta espécie de pós-democracia em que hoje vivemos, como reconhece que cada vez mais cidadãos já desvendaram este segredo e se decidiram por agir em conformidade.

Tornou-se também claro para muitos que, na crise das dívidas soberanas desencadeada em 2010, o pretexto foi económico-financeiro, mas o intuito é político. O que a justifica é o desejo de aproveitar um momento de fragilidade dos povos e dos estados nacionais para desencadear um muito ansiado ajuste de contas, pondo em causa tanto o contrato social laboriosamente edificado ao longo de décadas como os delicados equilíbrios sobre os quais ele assenta.

A austeridade fiscal foi imposta a coberto de um pânico irracional fabricado pelo BCE com pretextos espúrios. Apesar do evidente descalabro, tanto a UE como o BCE insistem em políticas de extorsão fiscal que prolongam indefinidamente a estagnação e o desemprego de longa duração, assim condenando, nas palavras de Martin Wolf, "dezenas de milhões a um sofrimento desnecessário".

Os mais crédulos aceitam que em devido tempo tudo se arranjará, contanto que cada país se esforce por pôr as suas contas em ordem. Basta-lhes a ténue promessa de que, após as eleições alemãs deste ano, a Europa avançará decididamente para a união bancária, a união fiscal e, a prazo, a mutualização parcial da dívida. Mas convém recordar que este método de começar a construir a casa pelo telhado, deixando para o fim os seus alicerces democráticos, é o mesmo que foi adoptado vai para mais de duas décadas, com os desastrosos resultados que conhecemos. É chegada a altura de dizermos com clareza que este "federalismo" burocrático equivale à total subversão do ideal europeu tal como nos foi proposto em sucessivas ocasiões e que, como tal, deve ser liminarmente recusado.

É também este o momento de desmontar a retórica das "reformas estruturais" que a Comissão Europeia e o BCE se acham no direito de impor a todo o continente, sem que para isso disponham de qualquer mandato. Para começar, não se sabe sequer muito bem o que sejam essas famigeradas "reformas" – uma espécie de fato para marrecos à escala continental – excepto que se traduzem sempre em pacotes de sevícias sem propósito evidente além de uma vaga e nunca alcançada melhoria da "competitividade" (ela própria outra palavra de sentido indeterminado). Conforme recentemente vincou Wolfgang Munchau, "não existe qualquer elo" entre "uma vaga ideia de reforma e o sucesso económico, medido pelo PIB per capita".

Naturalmente, seria preferível que a solução política para esta crise emergisse das presentes instituições europeias. Quaisquer embaraços decorrentes do eventual chumbo pelo Parlamento Europeu do orçamento comunitário proposto pela Comissão seriam mais do que compensados pela constatação popular de que, afinal, o seu voto sempre serve para alguma coisa. Precisamos urgentemente de que o Parlamento – por excelência, a casa da democracia europeia – se afirme como um pólo de poder alternativo, e esta seria a hora de ele se redimir da sua anterior passividade. Falhando – como parece provável – essa alternativa, restaria a hipótese de o Tribunal Europeu de Justiça se decidir a travar a continuada subversão das instituições comunitárias declarando a nulidade de todas as decisões impostas nos últimos anos pela Alemanha e pela Comissão como contrárias à letra e ao espírito dos tratados em vigor. Mas é pouco provável que isso aconteça.

Não podemos, por isso, pôr de parte a hipótese de se acentuar na União Europeia a presente deriva de degradação da convivência civilizada entre os povos e de liquidação definitiva de qualquer conceito de futuro mobilizador para os seus cidadãos. É por tudo isso que nós, os bons Europeus –, ou seja, aqueles que concebem a Europa antes de mais como um projecto de civilização – temos de reconhecer que, a persistir o curso actual, talvez seja necessário que ao grande salto em frente da criação da moeda única possam ter de seguir-se dois grandes saltos atrás, ou seja, não só o desmantelamento dessa moeda única como a anulação de uma parte das regras do Mercado Único que a precedeu.

Não há uma só maneira de os povos europeus conviverem e cooperarem entre si em razoável harmonia. Nos quase três milénios que leva de existência como instância geopolítica relevante, a Europa conheceu já múltiplas configurações, alternando períodos de aproximação entre os estados constituintes com outros de afastamento. Num horizonte longo, a presente UE deve ser encarada como apenas um dos arranjos institucionais possíveis, cuja principal carta de recomendação foi a sua orientação demo-liberal. Falhando essa inspiração distintiva, não há razão para que seja considerada preferível a arranjos mais estreitos, no limite pouco mais que zonas de comércio livre e cooperação política limitada.

Nós, os bons Europeus, deveremos por isso prepararmo-nos para reconsiderar radicalmente a posição de Portugal no contexto da Europa, quem sabe se começando por dar à expressão "países periféricos" um sentido positivo. Com tanto país a ser deitado fora da UE como carga imprestável, talvez se consiga fazer algumas alianças interessantes, deixando a Alemanha entretida com os seus estados tributários.

Publicado no Jornal de Negócios em 5.3.13