quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Delírios da razão calculadora

Seria o Velho do Restelo um economista? Não é provável: se ele exercesse a ciência lúgubre, decerto fundamentaria o seu ponto de vista numa análise custo-benefício. Ou seja, teria imputado um valor monetário tanto aos ganhos como às despesas decorrentes da descoberta do caminho marítimo para a Índia para tentar apurar se o saldo global seria positivo.

A análise custo-benefício parece, à primeira vista, uma ferramenta útil para a avaliação dos méritos do investimento público. As dificuldades surgem, porém, logo que se tenta atribuir um valor a algo que não se encontra à venda no mercado, como seja a vida humana. A resposta dos economistas é, porém, simples: o valor de uma pessoa será igual ao fluxo actualizado dos seus rendimentos futuros esperados.

Vai daí, a administração Clinton fixou o valor médio de uma vida humana em 6,1 milhões de dólares, mas a de Bush baixou-o para 3,7 milhões. As dificuldades agravam-se quando se tenta atribuir um valor a coisas como a soberania nacional, de modo que exige-se uma análise custo-benefício para avaliar a bondade de um sistema nacional de saúde, mas prescinde-se dela para declarar guerra ao Iraque. Precisamos de análises custo-benefício para salvar vidas, mas não para eliminá-las.

Se eu quiser investir numa fábrica de chuchas para bébés, conseguirei calcular sem grande dificuldade os custos fixos e variáveis relativos ao projecto; mas só Deus sabe se alguma mãe comprará uma só das minhas chuchas. Algo semelhante sucede com os investimentos públicos, numa escala tanto maior quanto mais complexos, mais inovadores e mais prolongados no tempo eles forem.

Uma vez inaugurada a ponte 25 de Abril, tornou-se evidente ter sido correcta a decisão de construí-la; antes, porém, ninguém poderia estimar ao certo o tráfego rodoviário que diariamente a atravessaria. Do mesmo modo, são altamente falíveis todas as previsões de que dispomos em relação ao número de passageiros que daqui a dez, vinte ou trinta anos optarão por viajar de TGV entre Lisboa e Madrid ou entre Lisboa e Porto.

Como evoluirá num horizonte longo o preço do petróleo e como influenciará ele as escolhas de modos de transportes? Que iniciativas tomarão os governos para dissuadir o consumo de combustíveis fósseis? Quais serão os preços relativos das diversas alternativas de transporte entre aquelas cidades? Que complementaridades adicionais poderá o TGV criar entre elas? Eis algumas – apenas algumas – das questões que podem influenciar a procura efectiva dirigida a essas linhas.

De modo que, quando se diz que a linha de TGV Lisboa-Madrid transportará por ano 9 milhões de passageiros dever-se-ia mencionar também o intervalo que separa a previsão mais pessimista da mais optimista. Mas, se a margem de indeterminação se situar, digamos, entre os 5 e os 12 milhões de passageiros, tornar-se-á evidente que necessitaremos de um critério adicional para avaliar a bondade do investimento. Que eventualidade será mais grave: a) construir o TGV e constatar a posteriori que a procura é insuficiente; ou b) não o construir e descobrir que, por causa disso, o país se tornou ainda mais periférico no contexto europeu?

É claro que umas continhas nunca fizeram mal a ninguém. No mínimo, quando conduzidas com rigor, ajudam a balizar o terreno em que nos movemos e, logo, a avaliar a dimensão do risco. Mas é um erro acreditar-se que esse exercício nos dispensa de introduzir no raciocínio uma componente valorativa. A prioridade que algumas pessoas concedem ao objectivo estratégico de integrar o país nas redes europeias de transportes prende-se com uma ideia do modo como as suas principais áreas metropolitanas devem encaixar-se no desenho geral da economia ibérica.

Dir-se-á que, se assim se desejar, tais considerações poderão também ser integradas numa análise custo-benefício, mas então desvanecer-se-á a pretensa objectividade apolítica do exercício que seria, supostamente, a sua grande vantagem. Vale isto por dizer que a análise custo-benefício dos projectos de investimento público não dispensa a explicitação de uma estratégia de desenvolvimento para o país.

O investimento público funciona melhor na prática que na teoria. Passa-se o inverso com a análise custo-benefício. Nem sequer é seguro, aliás, que os benefícios da análise custo-benefício excedam sempre os seus custos.

4 comentários:

Sibila Publicações disse...

Pois. Criar uma marca-país infelizmente é muitos bilhões mais caro do que uma campanha com o Cristiano Ronaldo. Se Portugal quer livrar-se da pecha de país atrasado, tem que (ousar) arriscar.

jj.amarante disse...

Pois é, quando se vêem no detalhe as análises "técnicas" (no sentido que não há mais nada a discutir, as coisas são mesmo assim) é fácil apercebermo-nos do grau de arbitrariedade envolvido. Pela dificuldade em fazer as contas necessárias aos "utilitarians" é que eu, no domínio da ética, me inclino agora mais para os princípios e para a deontologia.

Aprendiz disse...

Falta, assim, determinar o Goodwill do projecto... há poucas pessoas a dominar a ciência das opções reais.

Abraços

Orlando disse...

Os argumentos apresentados merecem pelo menos o benefício da dúvida se aplicados ao TGV Lisboa - Madrid.
Falar ao mesmo tempo na linha Lisboa - Porto é outra história. Aí estamos a falar em ganhos de meia hora.
Que perdemos se não houver linha Porto - Vigo, além de uns tachos no Porto?
Discutir a questão TGV sem mencionar as outras duas linhas é aceitar implicitamente que são defensaveis.
A ser assim, começo a ter alguma dificuldade em levar o ser argumento a sério.