Imagine que não havia maternidades e que, ao romperem-lhe as águas, uma
grávida que não confiasse em curiosas telefonaria ao seu médico
assistente a anunciar-lhe que a coisa estava para breve.
Por sua
vez, ele convocaria um a um os enfermeiros e restante pessoal auxiliar
indispensável para ajudar no parto. Seguir-se-iam o aluguer, pelo
período considerado necessário, de uma sala conveniente e do equipamento
indispensável. Por último, seriam contratados os medicamentos e
materiais clínicos necessários.
Em teoria, não fazem falta
maternidades para assistir partos. Basta que um grupo de profissionais
qualificados se associe no momento certo, contratando com o médico que
chefia a equipa as condições de prestação do serviço.
Sucede,
porém, que o método se adapta mal à emergência da situação. Tendo em
conta o carácter ocasional da cooperação, é natural que os envolvidos
aproveitem a ocasião para negociar os respectivos honorários e restantes
condições de trabalho. Se não se apressam – e porque haveriam de
apressar-se? – é muito possível que, entretanto, nasça a criança.
Todavia,
considerando a regularidade da ocorrência de partos, o líder da equipa
poderia estabelecer contratos estáveis de prestação de serviços, sem
necessidade de entabular negociações de cada vez que fosse chamado por
uma parturiente. Continuaria, porém, a não haver maternidades: os
profissionais envolvidos contratariam directamente entre si o serviço em
vez de se vincularem por contratos de trabalho com uma instituição
responsável por coordenar a sua actividade. A coordenação dos seus
esforços far-se-ia através do mercado, e não de uma empresa.
Poder-se-ia
confiar num tal arranjo para garantir partos seguros a mães e crianças,
por um preço razoável? Ronald Coase, hoje com 101 anos de idade,
ganhou, em 1991, o Nobel por explicar porque são necessárias
organizações estáveis (eventualmente empresas) em situações deste tipo.
A ineficiência dos arranjos ad hoc resulta
de premiarem comportamentos oportunistas cujas consequências se tornam
mais evidentes com a passagem do tempo. Uma óbvia dificuldade reside na
ausência de incentivos para providenciar formação e actualização de
conhecimentos. O médico não gostaria, por exemplo, de ensinar aos seus
colaboradores ocasionais novas técnicas que reduzissem a mortalidade
infantil, com receio de que eles fossem ensiná-las aos seus
concorrentes. Sem instituições coesas, ficam bloqueados os processos de
aprendizagem colaborativa.
É, por isso, absurdo encarar-se uma
maternidade como um mero aglomerado de recursos humanos e materiais
intermutáveis, de que se pode pôr e dispor ao sabor dos caprichos de
momento. Na prática, necessitamos para assegurar partos seguros e
eficientes de instituições, como a Maternidade Alfredo da Costa, dotadas
de uma forte identidade assente em valores sólidos, crenças
partilhadas, procedimentos e métodos de trabalho consolidados ao longo
de décadas.
Um amigo em tempos recrutado para uma multinacional
petrolífera foi no seu primeiro dia de trabalho questionado pela pessoa
encarregada da sua integração: "Sabe o que fazemos aqui?". "Sei,
pesquisamos, extraímos e refinamos petróleo". "Errado", troçou o outro,
"nós aqui fazemos dinheiro."
Existem muitas empresas que,
implícita ou explicitamente, educam os seus colaboradores nessa ideia,
exortando-os a colaborar nas malfeitorias eventualmente exigidas por
esse propósito. Deixada à solta, esta variante de "ética empresarial"
ajudou a desencadear a crise financeira
internacional de que há cinco anos o mundo padece. Para cúmulo, algumas
pessoas que, no mínimo, conviveram pacificamente com esses princípios
de gestão no sector financeiro privado, acham-se agora no direito de
implantá-los no sector público.
Instituições confiáveis, como a
Maternidade Alfredo Costa, demoram décadas a construir. Não se pode
permitir que uma facção de bárbaros engravatados destrua de uma penada a
dedicação e o esforço de gerações de profissionais justamente
orgulhosos da qualidade do seu trabalho.
Publicado no Jornal de Negócios em 23.4.12
quinta-feira, 26 de abril de 2012
terça-feira, 10 de abril de 2012
O capital não tem pátria, excepto quando é estrangeiro
Estranhou-se na Irlanda a rapidez com que o governo português despachou as suas participações na EDP e na REN. É que, embora a mesma exigência tenha sido colocada pela troika ao governo irlandês, ele limitou-se a privatizar uma fracção minoritária da empresa eléctrica nacional. Além disso, prolongando o seu braço de ferro com a União Europeia, negou-se a separar a produção da distribuição.
Os irlandeses temem a privatização do sector eléctrico, mas, principalmente, o seu controlo por estrangeiros. Terão razão?
À primeira vista, a aquisição de uma empresa por outra é uma operação inocente de troca de capital corpóreo por incorpóreo em que ambas as partes julgam ficar a ganhar. Que pode interessar a nacionalidade dos compradores, se o que os move é sempre o desígnio de tornar a operação mais eficiente e rentável? O capital não tem pátria, e é assim mesmo que deve ser.
Mas poderemos ignorar, por exemplo, que a Sorefame, uma das nossas principais metalomecânicas pesadas, foi adquirida por concorrentes multinacionais apenas para ser encerrada anos depois? O resultado final foi a aniquilação de um centro nacional de competências laboriosamente edificado ao longo de décadas, com a consequência de que o país tem hoje que importar as carruagens ferroviárias de que necessita. Será muito ingénuo ver nisto um mero efeito da lei das vantagens comparativas.
A crença de que a nacionalidade da propriedade não conta ignora a importância do poder e, em geral, das considerações extra-económicas na condução dos negócios. A nacionalidade conta, e conta muito.
Ainda assim, não é aceitável a protecção a todo o custo dos centros de decisão nacionais, a menos que se pretenda premiar a incompetência. As indignações nacionalistas são, em geral, absurdas, dado que, as mais das vezes, nenhum interesse respeitável é ferido quando uma empresa de um país compra uma empresa de outro.
Que critérios deveremos então ter em conta para avaliar o previsível impacto da mudança de propriedade de uma empresa nacional?
Primeiro, se uma empresa não exporta, gera escasso valor acrescentado, emprega poucos trabalhadores qualificados e não possui tecnologia própria, a sua venda a estrangeiros é assunto que só interessará aos próprios. Inversamente, se ela desempenha uma missão relevante para o país avaliada pelas externalidades positivas que gera, todo o cuidado será pouco.
Segundo, são perigosos compradores sem real interesse pelo negócio, unicamente empenhados na obtenção de ganhos financeiros de curto prazo, entre os quais se incluem fundos de investimento sem rosto e private equities. O mais natural é que, antes de revenderem, liquidem actividades relevantes, mas dispendiosas, cujo valor só se revela plenamente no longo prazo.
Terceiro, importa perscrutar a intenção estratégica do comprador. Quanto maior for a relação de complementaridade entre as duas empresas, mais proveitosa a associação para aquela que é adquirida. Pelo contrário, quanto maior o grau de sobreposição, maior o risco de a compra ser motivada pelo desejo de matar um concorrente.
Quarto e último, interessa saber se os centros de competência da empresa se encontram protegidos contra a eventualidade da sua transferência para o exterior. Ninguém na Suécia parece preocupado com a eventualidade de a Volvo ser esvaziada pela chinesa Geely que a comprou, dado que os engenheiros suecos detêm elevadas qualificações dificilmente replicáveis. Todavia, não podemos esquecer que a Catalunha perdeu rapidamente a Danone e a Hispano-Suiza quando elas foram absorvidas por grupos empresariais franceses.
A aplicação destes critérios de avaliação conduz a resultados diametralmente opostos quando consideramos os riscos que decorrem para a economia nacional da venda a estrangeiros de empresas tão diversas como a Cimpor e TAP. No primeiro caso, muito pouco ou nada de relevante parece estar em causa; no segundo, ao invés, uma opção errada poderá afectar muito negativamente o nosso futuro por muitos e amargos anos.
Publicado no Jornal de Negócios em 10.4.12
Os irlandeses temem a privatização do sector eléctrico, mas, principalmente, o seu controlo por estrangeiros. Terão razão?
À primeira vista, a aquisição de uma empresa por outra é uma operação inocente de troca de capital corpóreo por incorpóreo em que ambas as partes julgam ficar a ganhar. Que pode interessar a nacionalidade dos compradores, se o que os move é sempre o desígnio de tornar a operação mais eficiente e rentável? O capital não tem pátria, e é assim mesmo que deve ser.
Mas poderemos ignorar, por exemplo, que a Sorefame, uma das nossas principais metalomecânicas pesadas, foi adquirida por concorrentes multinacionais apenas para ser encerrada anos depois? O resultado final foi a aniquilação de um centro nacional de competências laboriosamente edificado ao longo de décadas, com a consequência de que o país tem hoje que importar as carruagens ferroviárias de que necessita. Será muito ingénuo ver nisto um mero efeito da lei das vantagens comparativas.
A crença de que a nacionalidade da propriedade não conta ignora a importância do poder e, em geral, das considerações extra-económicas na condução dos negócios. A nacionalidade conta, e conta muito.
Ainda assim, não é aceitável a protecção a todo o custo dos centros de decisão nacionais, a menos que se pretenda premiar a incompetência. As indignações nacionalistas são, em geral, absurdas, dado que, as mais das vezes, nenhum interesse respeitável é ferido quando uma empresa de um país compra uma empresa de outro.
Que critérios deveremos então ter em conta para avaliar o previsível impacto da mudança de propriedade de uma empresa nacional?
Primeiro, se uma empresa não exporta, gera escasso valor acrescentado, emprega poucos trabalhadores qualificados e não possui tecnologia própria, a sua venda a estrangeiros é assunto que só interessará aos próprios. Inversamente, se ela desempenha uma missão relevante para o país avaliada pelas externalidades positivas que gera, todo o cuidado será pouco.
Segundo, são perigosos compradores sem real interesse pelo negócio, unicamente empenhados na obtenção de ganhos financeiros de curto prazo, entre os quais se incluem fundos de investimento sem rosto e private equities. O mais natural é que, antes de revenderem, liquidem actividades relevantes, mas dispendiosas, cujo valor só se revela plenamente no longo prazo.
Terceiro, importa perscrutar a intenção estratégica do comprador. Quanto maior for a relação de complementaridade entre as duas empresas, mais proveitosa a associação para aquela que é adquirida. Pelo contrário, quanto maior o grau de sobreposição, maior o risco de a compra ser motivada pelo desejo de matar um concorrente.
Quarto e último, interessa saber se os centros de competência da empresa se encontram protegidos contra a eventualidade da sua transferência para o exterior. Ninguém na Suécia parece preocupado com a eventualidade de a Volvo ser esvaziada pela chinesa Geely que a comprou, dado que os engenheiros suecos detêm elevadas qualificações dificilmente replicáveis. Todavia, não podemos esquecer que a Catalunha perdeu rapidamente a Danone e a Hispano-Suiza quando elas foram absorvidas por grupos empresariais franceses.
A aplicação destes critérios de avaliação conduz a resultados diametralmente opostos quando consideramos os riscos que decorrem para a economia nacional da venda a estrangeiros de empresas tão diversas como a Cimpor e TAP. No primeiro caso, muito pouco ou nada de relevante parece estar em causa; no segundo, ao invés, uma opção errada poderá afectar muito negativamente o nosso futuro por muitos e amargos anos.
Publicado no Jornal de Negócios em 10.4.12
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