terça-feira, 11 de outubro de 2011

Há um túnel ao fundo do túnel

Qual a probabilidade de o país sair airosamente do aperto financeiro em que se encontra? Com as economias do Atlântico Norte estagnadas ou talvez mesmo em recessão, a quebra da procura externa somar-se-á à da interna, contraindo a base tributária e colocando pressão adicional sobre as contas públicas.

Na hipótese mais favorável, a União Europeia, perante a catástrofe iminente, inverteria radicalmente a sua política reforçando o FEEF, flexibilizando o acesso aos seus fundos e eventualmente dando luz verde à emissão de euro-obrigações. Mas a contrapartida não deixaria de ser o controlo direto da União sobre as finanças públicas dos países membros, o que liquidaria de vez qualquer resquício de política económica autónoma em Portugal. O impropriamente chamado federalismo fiscal revelar-se-ia afinal uma tirania pan-europeia.

E não vale a pena imaginar-se que é neste momento viável o federalismo genuíno, com um Governo Europeu supranacional responsável perante o Parlamento Europeu, porque o Tribunal Constitucional Alemão já afastou liminarmente essa possibilidade. Nestas circunstâncias, por muito que penemos, não sairemos tão cedo do gueto financeiro no qual a União Europeia nos internou.

Imaginemos, porém, que uma parte substancial da nossa dívida - digamos, metade - se evaporava no ar por via de um perdão. Ficariam os nossos problemas resolvidos? Provavelmente não, visto que, permanecendo inalterado o enquadramento institucional da zona euro, não se alteraria a orientação geral que no passado tanto penalizou o nosso desempenho económico.

A Zona Euro manteve até 2007 taxas de juro demasiado baixas para Portugal, que potenciaram o crescimento descontrolado do nosso endividamento privado e público. Fê-lo, porque isso era do interesse da Alemanha, a braços com um complexo processo de reunificação e uma taxa de desemprego elevada.

Desde 2007, em contrapartida, a Zona Euro impõe-nos taxas de juro demasiado elevadas, que agravam a recessão e o desemprego em Portugal. Fá-lo, porque esse é agora o interesse da Alemanha.

Mentes mais optimistas dirão que isso é passado: por um lado, a crise encarregou-se de forçar a diferenciação das taxas de juro de país para país, pelo que não voltará a haver um incentivo tão poderoso ao endividamento; por outro, a recomposição da estrutura das exportações portuguesas e o seu bom comportamento na última meia dúzia de anos sugerem que os nossos maiores problemas de competitividade poderão estar em vias de ser superados.

Pode ser. Mas poderemos correr o risco de esperar passivamente mais alguns anos para verificarmos se a hipótese se confirma? Impressiona a mansidão abúlica com que o país se deixa conduzir para o abate.

As duas décadas decorridas desde o lançamento do Sistema Monetário Europeu sugerem claramente que, nestes moldes, a pertença à Zona Euro não tem para nós qualquer vantagem e tem todos os inconvenientes. O país deixou de ter política monetária e cambial própria, perdeu controlo sobre a sua política fiscal e ficou muito condicionado nas restantes vertentes das suas políticas económicas. Numa palavra, prescindiu da sua soberania entregando poder de decisão a quem não acautela minimamente os nossos interesses.

Tudo isto é hoje óbvio, tal como é óbvio que, descontando a eventualidade de uma improvável reforma da governação económica, financeira e monetária da UE, o futuro imitará o passado. Claramente, está na hora de pensarmos seriamente em alternativas, tanto mais que os custos acumulados de redução do crescimento ao longo de uma dúzia de anos são neste momento já bem elevados.

Todos sabemos que não só a saída do euro terá enormes custos como nem sequer está prevista nos tratados. Mas poderá chegar o momento em que sejamos lançados fora ou em que os elevados custos de ficarmos se revelem indubitavelmente superiores aos elevados custos de sairmos. Que fazer nessa eventualidade?

No mínimo, faz sentido que, na antecipação das difíceis negociações que vêm aí, tratemos desde já de esclarecer a que condições deveria obedecer o rearranjo institucional da zona euro para que ele nos convenha, verificar se será possível construir dentro da UE as alianças necessárias para que essa visão se torne realidade e, em alternativa, entender em que circunstâncias poderá a saída do euro vir a tornar-se a única solução aceitável. A primeira condição para qualquer negociação ter êxito é que comecemos por definir que resultado queremos obter e com que apoios poderemos contar para atingi-lo.

Sem antevermos o que poderá vir a acontecer-nos e sem nos prepararmos para o pior, o mais provável é que, em vez de uma luz, nos espere um outro túnel ao fim deste túnel.

(Publicado no Jornal de Negócios em 12.10.11)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Um dique contra a estupidez

Há quem ache boa ideia inscrever na Constituição uma interdição genérica dos défices orçamentais tendo em vista impedir desvarios governativos. E que tal aprovar uma lei que obrigue os automobilistas a conduzirem algemados para prevenir manobras perigosas? Muito estúpido, certo?

Taxar algo ou alguém de estúpido é tido como desagradável, um non sequitur que bloqueia o debate e desencadeia uma escalada de insultos. As boas maneiras instituem assim um pudor de nomear a estupidez de que ela se aproveita para andar por aí à solta.

A leitura do debate que, a propósito da utilidade de se construírem estradas, opõe n' "A Morgadinha dos Canaviais" o Sr. Joãozinho, o Brasileiro e o Pertunhas sugere-nos que é muito mais difícil desmontar um argumento estúpido do que enfrentar um inteligente; logo, a estupidez tenderá a crescer mais rapidamente do que a nossa capacidade para contê-la. Da primeira vez que me apercebi disso entrei em pânico. Depois, consolei-me pensando que não é preciso perder demasiado tempo a discutir argumentos estúpidos porque as pessoas são intuitivamente capazes de recusá-los. Mas serão mesmo?

O tema da estupidez tem sido insuficientemente estudado nas suas causas e consequências. Platão discorreu sabiamente sobre a Verdade, o Belo, o Bem ou a Razão, mas omitiu a investigação do Estúpido (os diálogos com Alcibíades, em que o tema é aflorado, são considerado apócrifos), falha que desde então a filosofia ainda não corrigiu.

Embora tenhamos uma variedade de palavras para designar o estúpido - tolo, palerma, idiota, imbecil, parvo, pateta, simplório, medíocre, básico - damos pouca atenção às nuances de significado que implicam. Por exemplo, palermice é estupidez alardeada como coisa esplendorosa, com consistência e orgulho; mediocridade é estupidez grave, majestosa, quase respeitável; já a idiotice implica uma obsessão, uma intenção estratégica, e, frequentemente, um método.

Como Sophia de Mello Breyner observou, a própria inteligência pode ser colocada ao serviço da estupidez. Pode-se, por isso, fazer dela um modo de vida. Errou pois Carlo Cipolla na formulação da sua Terceira Lei da Estupidez: a florescente indústria da estupidez comprova que um estúpido não é forçosamente alguém que prejudica os outros sem ganhar nada com isso.

É útil a distinção que Musil introduziu entre a estupidez honrada ou genuína e a desonesta ou superior. A estupidez honrada resulta da limitada capacidade intelectual de quem a produz, e não tem remédio. Pelo contrário, a estupidez superior comporta uma cegueira interessada e interesseira. Alardeia saber tudo sobre todas as coisas importantes da vida, quando de facto as ignora. Não há domínio em que não se infiltre, nem ideal, por muito nobre, de que não consiga aproveitar-se. Pode ocasionalmente envergar as vestes da verdade. É uma doença espiritual que opera com total desrespeito pelos demais, uma pretensão de superioridade destituída de qualquer fundamento no conhecimento efectivo daquilo de que se fala. É filha da soberba, um pecado capital hoje muito tolerado.

As grandes tragédias humanas não resultam da ignorância, da cobiça ou da malvadez, mas da pura e simples estupidez. Não porque a maioria das pessoas seja estúpida, mas porque em situações de complexidade extrema nos tornamos vulneráveis à estupidez. Há poucas coisas mais poderosas que a estupidez que está na moda. A difusão da estupidez encontra-se aliás tão facilitada pelos meios de comunicação contemporâneos que ela dá a volta ao mundo enquanto a lucidez acaba de calçar as botas.

Flaubert, um persistente estudioso da estupidez humana, concluíu ao cabo de anos de aturada investigação: "Estupidez, egoísmo e boa saúde são as três condições da felicidade; se bem que, faltando a estupidez, tudo estará perdido." Agrada-lhe esse projeto de vida?

Seria estúpido buscar uma solução simples, rápida e eficaz para a estupidez, mas todos podemos exercitar a nossa capacidade de resistir ao seu contágio.

Evite dar ouvidos a monomaníacos, gente de uma só causa e uma só ideia. Mas não desconfie menos daqueles que estão sempre prontos a discorrer a todo o momento sobre qualquer assunto, sobretudo se forem vivos de espírito. Duvide de afirmações taxativas, unilaterais, lapidares. Procure conhecer as opiniões contrárias, principalmente aquelas de que à partida discorda. Lembre-se de que, se toda gente concorda com algo, provavelmente tratar-se-á de um erro.

Faça de conta que o mundo existe fora das suas opiniões. Pratique a ironia em relação às suas certezas pessoais. Ensaie pensamentos desconfortáveis. Duvide. Esqueça. Aprenda.

O cepticismo, outrora luxo de filósofos, é agora necessidade que todo o cidadão precisa de cultivar, sob pena de a estupidez tomar conta do mundo.


(Publicado no Jornal de Negócios em 7.9.11)

sábado, 13 de agosto de 2011

Bodes expiatórios, óleo de fígado de bacalhau e outras receitas para salvar o País e o mundo

Com o surgimento das primeiras sociedades agrícolas, os homens passaram a estar sujeitos aos efeitos de intempéries e pragas que, destruindo as colheitas, regularmente condenavam muitos à fome e, no limite, à morte.

Alguém, cujo nome não ficou registado nos anais, intuiu a dada altura que a causa de tais desgraças só poderia ser a ira dos deuses, indispostos por comportamentos impróprios dos mortais. Nada melhor para aplacar-lhes a má disposição, deduziu, que rituais coletivos de arrependimento reforçados por sacrifícios atestadores da determinação de não reincidirem na via do mal. Curiosamente, a maioria das vezes o expediente até funcionava, visto que, mais tarde ou mais cedo, a calamidade desaparecia.

Os sacrifícios humanos eram ainda correntes entre os Maias quando os espanhóis chegaram à América, mas os arqueólogos descobriram entretanto provas de que arrancar corações a cativos, degolar heréticos ou enterrar donzelas vivas foram remédios correntes contra a penúria numa dada fase da história em partes do mundo tão distantes entre si como a China e a Mesopotâmia.

Amenizando-se os costumes, o sacrifício de seres humanos foi progressivamente substituído, primeiro, pelo de animais, mais tarde, pelo de efígies, por último, por rituais atenuados de penitência, incluindo peregrinações e jejuns. O bode expiatório deu lugar a manifestações menos bárbaras, permanecendo todavia a ideia de que as desgraças são castigo divino e a culpa deve ser expiada pelo sacrifício de algo valioso.

Antes do triunfo da medicina científica, a presunção de que só o sofrimento pode curar dominava também as práticas médicas, desde as sangrias ao óleo de fígado de bacalhau, inspiradas pelo princípio de que só o que nos faz sentir mal pode realmente fazer-nos bem. Da saúde do corpo para a do espírito, a mesma estratégia se impôs até recentemente na educação: contrariar, submeter, estiolar, esmagar, humilhar, se necessário agredir, eis os fundamentos que se acreditava deverem orientar a formação cívica e intelectual do indivíduo.

Não deixa de impressionar que ainda hoje se fale descontraidamente de "sacrifícios" para designar os sofrimentos impostos por políticas supostamente concebidas para combater a crise económico-financeira, numa alusão nada discreta à origem bárbara de práticas supersticiosas que atribuem virtudes salvíficas à penitência.

Na Europa e nos EUA tem até agora prevalecido a opinião de que a presente crise será superada com austeridade. O fascínio que uma tal ideia exerce sobre os espíritos (vítimas incluídas) provém, não nos enganemos, do implacável instinto que nos leva a buscar a causa dos nossos males em pecados ou, pelo menos, graves falhas éticas individuais ou coletivas que desse modo recebem justa punição. Segundo tal crença, sendo o consumo o mal e a poupança o bem, só poderemos transcender a presente situação vivendo pior, para assim resgatarmos os pecados passados e conquistarmos, pela sua redenção, o direito a um futuro mais feliz.

Quem crê que a austeridade pode combater a recessão pensa que a contração dos gastos públicos será interpretada pelos cidadãos como uma futura redução de impostos, o que, equivalendo a um aumento do rendimento disponível, impulsionará a procura e encorajará os investidores. É essa, aliás, a teoria oficial do Banco Central Europeu. Parece lógica. Será verdadeira? Ou seja, confirmará a evidência de que dispomos a suposta bondade das políticas de austeridade?

Sucede que o FMI analisou 173 casos de austeridade fiscal ocorridos entre 1978 e 2009 no seu World Economic Outlook de 2010 e não vislumbrou sombra desse efeito. Bem pelo contrário, concluiu que o corte de 1% do défice orçamental em proporção do PIB reduz o produto em dois terços de um ponto percentual e aumenta o desemprego em um terço de um ponto percentual. Por outro lado, após estudar vários exemplos de alegada "austeridade expansionista", Ricardo Perotti sustenta que essa política só pode ter sucesso em circunstâncias muito distintas das atuais, designadamente quando não é prosseguida por muitos países ao mesmo tempo, quando é acompanhada de uma forte desvalorização da moeda e quando conduz a uma drástica queda da taxa de juro.

Como temos podido constatar, o prolongamento da recessão reduz ainda mais a capacidade de os credores pagarem as suas dívidas, pelo que a austeridade não só não diminui o desemprego como tampouco contribui para baixar o endividamento. No plano económico, a obsessão com a redução dos défices a todo o custo condena-nos à estagnação prolongada; no plano político, fomenta a busca de bodes expiatórios - sejam eles os preguiçosos do Sul, os imperialistas alemães, os banqueiros gananciosos, os bárbaros imigrantes ou os invasores chineses - e favorece o ressentimento e as correntes de opinião extremistas.

O dramático agravamento da situação mundial nos últimos dias parece confirmar que corremos o risco de nos transformarmos em danos colaterais de um culto primitivo cujo fundamento irracional é disfarçado com muitos cálculos matemáticos. Decididamente, os deuses não estão do nosso lado.

(Publicado no Jornal de Negócios em 10.8.11)

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Notas do subterrâneo

Quanto vale um euro? Depende de onde esse euro se encontra. Não acreditam? Leiam o resto.
1. Quando, em 2002, as notas de euro começaram a sair dos nossos ATM, eu não ignorava que a nova moeda era uma concretização deficiente de uma boa intenção. Confesso, porém, que não achava o euro uma ideia muito má - apenas um bocadinho má -, convicto como estava de que, com o tempo, as malformações seriam corrigidas.

2. Também os mercados financeiros acreditaram que, embora a arquitectura do euro não comportasse mecanismos de apoio às economias em dificuldades, chegada a hora eles apareceriam por vontade dos estados membros. Só isso explica, note-se, que a dívida portuguesa pagasse um juro quase idêntico ao da alemã. A expressão "moeda fiduciária" significa que a sua aceitação assenta na confiança de que ela desfruta. Enquanto persistisse a fé no euro, tudo correria normalmente.

3. À chegada da recessão, no final de 2008, a Alemanha pediu solidariedade no combate à crise. Não estaria certo que alguns países se furtassem ao esforço colectivo beneficiando do sacrifício financeiro dos outros. Logo aqui, porém, a Alemanha pressionou todos os estados membros a introduzirem um subsídio temporário à aquisição de carros novos. Depois, violou as normas comunitárias ao conceder apoios directos à sua indústria automóvel. Finalmente, fez batota ao condicionar essas ajudas à garantia de que os fabricantes eliminariam postos de trabalho na Bélgica, em Inglaterra e em Espanha, mas não na própria Alemanha.

4. A grande viragem veio no princípio de 2010, quando, convicta de que, para ela, o pior já passara, a Alemanha proclamou o princípio "cada um por si" e declarou que cada estado deveria tratar de reequilibrar rapidamente as suas contas públicas sem contar com a ajuda dos restantes. A solidariedade implícita entre os países da Zona Euro fora definitivamente revogada e os mercados entenderam o que isso significava. Os juros das dívidas soberanas dos países mais fragilizados começaram de imediato a divergir dos da alemã.

5. Considerada no seu conjunto, a Zona Euro tem uma situação financeira equilibrada, tanto interna como externamente. Mas isso torna-se irrelevante para os credores se a coesão deixa de preocupar as autoridades políticas e monetárias europeias, como é vontade assumida do Partido Popular Europeu que por agora comanda os destinos do Continente. Foram, pois, Merkel e o PPE os responsáveis pela quebra da confiança dos mercados financeiros na unidade da Zona Euro.

6. Esta política é, além do mais, tacanha. Na presente semana, cinco países da Zona Euro, incluindo a Espanha e a Itália, integravam o "top ten" dos países com maior probabilidade de entrarem em incumprimento, evidenciando o completo fracasso da tentativa de isolar os países "periféricos" numa leprosaria longe da vista e do coração.

7. É hoje evidente que o tratamento dispensado aos pacientes agrava o seu estado de saúde, empurrando-os para a insolvência. Os sacrifícios que os países assistidos pela UE e pelo FMI são obrigados a infligir aos seus povos não contribuem um iota para resolver o problema. Esta desoladora circunstância recorda irresistivelmente o desespero do homem do subterrâneo de Dostoievski: "O fim dos fins, meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é a inércia consciente! Pois bem, viva o subterrâneo! Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal até à derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas condições em que o vejo (embora não cesse de invejá-lo. Não, não, em todo caso, o subterrâneo é mais vantajoso!) Ali, pelo menos, pode-se... mas estou agora também a mentir. Minto porque eu próprio sei, como dois e dois, que o melhor não é o subterrâneo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual anseio, mas que de modo nenhum hei de encontrar! Para o diabo o subterrâneo!"

8. Querem toda a verdade? Cá vai ela, mas não se queixem se doer. É certo que os países sob ataque não podem permanecer no euro nem podem sair dele. Aí reside a esperança germânica de que a Zona Euro não se desmoronará. Mas não é preciso que eles saiam do euro, basta que o euro saia deles. Um dia, todos entenderão que um euro depositado em Portugal, em Espanha ou na Itália não vale o mesmo que um euro depositado na Alemanha ou na Holanda. As multinacionais que ainda não o fizeram, todas as grandes empresas e os cidadãos titulares de um património significativo carregarão num botão e, de um dia para o outro, secarão as tesourarias dos bancos locais. Nesse momento, vários países estarão na verdade fora da Zona Euro.

9. Cá no subterrâneo ainda temos Internet, através da qual ultimamente nos chegaram motivos de regozijo. O processo de desintegração chegou agora à Itália e à Espanha. Na ausência de meios financeiros bastantes para socorrê-las, chegámos ao fim da linha. Ninguém pode pagar tudo o que deve: nem a Grécia, nem nós, nem ninguém. Resta o plano alternativo há muito congelado pelo receio de correntes de opinião chauvinistas.

10. Com atraso considerável, Merkel reconhecerá por fim que, seja qual for o nome que queiramos dar-lhes, as euro-obrigações são as melhores amigas do euro e da Alemanha. Depois, quando se reformar, poderá intitular as suas memórias: "Frau Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Eurobond".

(Publicado no Jornal de Negócios em 13.7.11)

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Por que é que os economistas aparentam saber tão pouco sobre a economia?

Tive o choque da minha vida quando, após realizar testes de orientação profissional, me recomendaram que cursasse Economia. Nunca antes me passara pela cabeça estudar o tema porque, muito simplesmente, ignorava o que faziam os economistas. Passados tantos anos, a dúvida sobre o que fazem e para que servem os economistas continua a afligir muita gente.

Os Nóbeis atribuídos nos últimos anos comprovam que os economistas investigam assuntos de grande relevância para o entendimento do funcionamento dos mercados, como sejam a psicologia dos consumidores, a informação assimétrica, as falhas de coordenação, os obstáculos à cooperação dentro das empresas ou as condições que favorecem o alargamento das desigualdades.

Todavia, a síntese dessa investigação que é servida aos estudantes e à opinião pública ignora sistematicamente as limitações da racionalidade humana e as falhas dos sistemas económicos que delas decorrem, em favor de uma visão cor-de-rosa do funcionamento dos mercados desregulados. Assim, embora o estudo do comportamento dos agentes económicos demonstre que os pressupostos da microeconomia estão errados, ela continua a ser ensinada como se nada fosse. A microeconomia – disciplina rainha da síntese neoclássica – adotou, aliás, uma metodologia oposta à da ciência experimental: partindo de um certo número de axiomas, vai por aí fora deduzindo teoremas em catadupa ao jeito de um manual de geometria. Tanto os axiomas como os teoremas são falsos, mas isso não incomoda os guardiões da teoria económica.

Na sua ânsia de imitarem a física, não só os economistas académicos procuram uma teoria geral unificada, como, ao invés dela, julgam tê-la descoberto. E é isso que ensinam a gerações de jovens desprevenidos.

Os alunos aprendem logo no primeiro ano que a instituição de um salário mínimo cria desemprego. Mais tarde, ao nível pós-graduado, será confidenciado aos poucos que lá chegarem que, à luz da evidência disponível, essa proposição é tudo menos certa. Nessa fase do processo de doutrinação, porém, eles já estarão pouco disponíveis para questionar os dogmas da profissão. Quanto aos que não atingiram esse patamar, virão cá para fora de boa-fé papaguear a pseudo-ciência que lhes foi ministrada.

Os economistas empregam-se sobretudo no estado, nos bancos, na universidade e na televisão. As duas últimas ocupações devem ser consideradas normais, pois alguém deve explicar aos mortais que, por muito mal que as coisas corram, vivemos no melhor dos mundos, apenas perturbado pela inoportuna intervenção de políticos condicionados pelo voto popular. O fascínio dos economistas pelos bancos também não causa estranheza: afinal, como lapidarmente proclamou o assaltante Willie Sutton, “é lá que está o dinheiro”.

Já é mais difícil entender-se o que fazem tantos economistas – de facto, a larga maioria deles – a trabalhar no estado, tendo em conta a sua paixão pelo mercado e pelo setor privado e a aversão instintiva que lhes desperta o setor público. Os economistas amam loucamente o mercado livre, a concorrência sem freios, o empreendedorismo audaz e a globalização absoluta – mas só de longe. Dir-se-ia que temem repetir o desapontamento dos Hebreus antigos quando, depois de vaguearem décadas pelo deserto em busca da Terra Prometida, acabaram por descobrir que, afinal, lá não brotavam das pedras o leite e o maná.

Todos estranhariamos que a física e a química se revelasse inútil para os engenheiros ou a biologia para os médicos. Todavia, o presente ensino da economia não melhora em nada – bem pelo contrário – as competências dos gestores. Isso sucede porque o paradigma dominante desincentiva o conhecimento direto da realidade económica. Os neoclássicos apenas cuidam de “factos estilizados”, ou seja, da quantificação daqueles conceitos que mais facilmente se moldam às suas teorias favoritas.

Dada tanta ignorância das realidades das economias contemporâneas, não admira que, confrontados com a atual crise de crescimento, os economistas se limitem a propor: “É preciso incrementar o empreendedorismo, é preciso aumentar a produtividade!” Ou seja, devolvem-nos o problema intacto, mas chamam-lhe solução.

Não é possível entender-se a economia quando só se entende de economia. Porém, fazendo a síntese neoclássica ponto de honra de isolar a economia das restantes ciências sociais, os estudantes são estimulados a ignorar a história económica e política, a história das doutrinas económicas, a filosofia política, a sociologia e a antropologia.

Basicamente, o mundo caminhou desprevenido para a situação em que se encontra porque confiou ingenuamente nas doutrinas económicas dominantes. Por que raio deveria agora acreditar que essas mesmas ideias conseguirão tirá-lo do buraco em que se encontra, quando elas persistem num tão grande desconhecimento das realidades das economias contemporâneas?

(Publicado no Jornal de Negócios em 15.6.11)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A insensata superstição das reformas estruturais

Em Janeiro de 1957, uma equipa de técnicos da Companhia Portuguesa de Celulose liderada pelos engenheiros Rolo e Von Haffe descobriu uma forma de produzir pasta de eucalipto branqueada pelo processo kraft.

A prazo, esse feito alterou a composição da floresta portuguesa, alicerçou as bases de uma indústria até então periclitante, criou um escol de engenheiros papeleiros e permitiu a rápida expansão das nossas exportações de pasta e papel ao longo de cinco décadas.

Apesar disso, a mais importante inovação tecnológica do século XX originada em Portugal não só não foi à data noticiada nos jornais como ainda hoje permanece numa relativa obscuridade.

As transformações mais decisivas são assim. Chegam com pezinhos de lã, resultam de uma multiplicidade de iniciativas descentralizadas de grupos de indivíduos que enfrentam condições adversas, vão contra a sabedoria convencional da época, os especialistas não as prevêem, são objeto de troça generalizada. Apesar disso, desencadeiam uma deslocação de recursos para aplicações mais produtivas - que é, afinal, aquilo em que consistem o aumento da produtividade e o desenvolvimento. Com o tempo, transformam os países e geram crescente bem-estar.

São episódios deste género - fruto de trabalho, conhecimento e esforço especializados e orientados para a melhoria do desempenho - que dão origem ao desenvolvimento económico e social. Ilustram na perfeição o espírito reformista, que privilegia, na ação empresarial como na governativa, uma mescla de ousadia e ponderação, pequenos passos que se combinam para gerar grandes avanços, progresso metódico, experimentalismo sistemático, risco controlado, avaliação rigorosa dos programas ensaiados, aversão a aventuras dificilmente reversíveis.

Ora, o apelo às reformas estruturais assente na esperança de virar a página transformando tudo de uma penada é o contrário de tudo isto. Sophia de Mello Breyner saudou o 25 de Abril como "o dia inicial inteiro e limpo". Poucas semanas decorridas, já todos sabíamos que, bem longe de podermos começar tudo de novo fazendo "do passado tábua rasa", não só estamos condenados a carregar esse passado às costas como ignorá-lo pode ser muito perigoso. Goste-se ou não, é mesmo assim.

Mudar muita coisa em pouco tempo tem dois tipos de problemas. O primeiro é que, sendo muito insuficiente o nosso conhecimento sobre o modo como as sociedades funcionam, corremos o risco de provocar inesperadas catástrofes em tudo contrárias ao resultado desejado. O segundo risco, na prática ainda mais relevante, consiste na generalização de confrontos de todos contra todos quando se abre uma guerra simultânea em múltiplas frentes contra adversários entrincheirados e poderosos.

As reformas estruturais falham, antes de mais, porque facilitam a tarefa aos interesses instalados. Quando se proclama com grandes fanfarras que vão ser postas em marcha, o que de facto se consegue é alertar todos os seus opositores para a urgência de se unirem e organizarem contra elas. A diversidade das abordagens adotadas explica por que é que, depois de alguns ensaios falhados, as reformas na saúde têm entre nós progredido mais que na educação ou na justiça.

A fúria reformista é, ao contrário do reformismo discreto e quotidiano, um traço típico dos países subdesenvolvidos, onde volta não volta alguém descobre a pólvora e promete a regeneração nacional ao virar da esquina. É por isso que não há reformas estruturais na Suíça ou nos EUA, mas sim na Argentina, na Turquia ou no Bangladesh. Uma reforma estrutural é uma revolução, e falha exactamente pelas mesmas razões: voluntarismo a mais e consistência a menos. O principal resultado prático é muita agitação e poucas transformações reais. As verdadeiras reformas não se fazem de uma assentada: vão-se fazendo persistentemente, no dia a dia, sem perder de vista o propósito ambicioso que está na sua origem. É isso, aliás, o que a palavra reformismo quer dizer.

Em Portugal fazem-se reformas estruturais a mais, não a menos. A Constituição está sempre em obras, e não há maneira de lhes vermos o fim. Mal acaba uma revisão constitucional, anuncia-se logo a próxima. Daí para baixo, é todo o edifício jurídico que vive em contínua convulsão, com os resultados conhecidos. Deitar abaixo e fazer de novo pode ser um modo de vida interessante, mas não é certamente o mais eficaz. Os países não mudam assim.

Diz-se que nas ciências sociais é impossível realizar experiências programadas, mas os portugueses poderão, em breve, desmentir tal alegação, oferecendo-se como cobaias para testar uma avalanche de reformas estruturais cujo estudo fará as delícias da comunidade científica nas décadas vindouras. Se correr mal, paciência.

(Publicado no Jornal de Negócios em 18.5.11)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Louvor de Paulo Futre

As grandes modificações geo-estratégicas do último quarto de século, a começar pela queda da Cortina de Ferro, acentuaram a nossa condição periférica, deixando o sistema produtivo nacional à margem da reorganização das cadeias de produção e distribuição que delas resultou.

O alargamento do Canal do Panamá, cuja conclusão se prevê para 2014, é, neste domínio, a primeira boa notícia para nós desde há muito tempo. Há três razões para isso: a) uma parte do tráfego marítimo proveniente do Extremo Oriente será desviado da rota de Suez para a do Panamá; b) a Costa Oeste dos EUA ficará muito mais próxima da Europa; c) a ampliação do canal favorecerá a utilização de navios de maior porte. Os nossos portos (e, em particular, o de Sines) sairão favorecidos, face aos mediterrânicos (designadamente, Barcelona e Valência), pela perda de importância de Suez; e, face aos atlânticos, pelas suas condições para receber os grandes navios New Panamax.

Que poderemos fazer para tirar o máximo partido das novas circunstâncias, designadamente aproveitando o potencial de Sines, o nosso grande porto natural de águas profundas? A reanimação do Porto de Sines iniciou-se em 2004, quando a parceria com a PSA (Port of Singapore Authority) para a gestão do Terminal de Contentores lançou as bases para o incremento do tráfego com origem no Extremo Oriente. Desde então, os investimentos realizados permitiram um crescimento do volume de mercadorias movimentadas a rondar os 50% ao ano. Mesmo assim, o Estado português atrasou-se imperdoavelmente no cumprimento do compromisso assumido com a PSA de melhorar a ligação ferroviária a Espanha.

No plano estritamente portuário, estamos, pois, em condições de beneficiar do alargamento do Canal do Panamá, porque há um rumo traçado e porque têm vindo a ser dados os passos certos. Todavia, o grande desafio que se nos coloca é o de aproveitarmos estas mudanças para redinamizar a nossa indústria, integrando-a nas grandes cadeias de aprovisionamento mundiais de que tem estado arredada - ou seja, para assegurar que, em vez de nos mantermos perdidos nos confins da Europa, conseguimos afirmar-nos como plataforma de articulação entre ela e algumas das regiões mais dinâmicas do Mundo, designadamente o Extremo Oriente, a Costa Oeste dos EUA e a América Latina.

Isso implica descobrirmos como as novas condições poderão ajudar ao reposicionamento estratégico da economia portuguesa, reorientando-a para sectores mais qualificados, de maior valor acrescentado e procura mais dinâmica. Uma política industrial pró-activa deverá cuidar de identificar atividades que, correspondendo a esse propósito, poderão beneficiar do rearranjo das cadeias internacionais de aprovisionamento que inevitavelmente resultará do alargamento do Canal do Panamá. Por outras palavras, empenhar-se-á em construir novos factores de competitividade a partir das novas condições e em atrair o investimento necessário para explorá-los.

Segundo Lino Fernandes, Presidente da Agência da Inovação, "a nossa nova posição de charneira entre a Ásia e a UE pode ser aproveitada por modelos de negócio que incorporem peças e componentes importados integrados em produtos e sistemas que beneficiam em serem produzidos perto do mercado de consumo", vantagens que podem resultar "da incidência do volume no custo do transporte", "dos custos de imobilização inerentes à variedade da procura" ou "das exigências de customização dos consumidores finais". Existiria, assim, uma vantagem para localização em Portugal de "indústrias de montagem, em particular desde a sua fase inicial de prototipagem, em processos de desenvolvimento e de teste de mercado". Que se saiba, porém, o Estado português não está a trabalhar para aprofundar o entendimento destas oportunidades e concretizar a aproximação a eventuais parceiros asiáticos.

Bem pelo contrário, a única ideia que até hoje veio a público foi a criação de uma zona franca em Sines para atrair investidores, o que equivale ao estabelecimento de um enclave onde os aventureiros do costume acorrerão para beneficiar de mão de obra barata e isenções fiscais com um mínimo de ganho para o país. Se precisamos de atrair investimento estrangeiro em quantidade e qualidade, seria bom que soubessemos o que nos interessa e que procurássemos activamente os parceiros adequados para a concretização dos nossos propósitos, em vez de ficarmos à espera de quem possa aparecer por aí.

Paulo Futre divertiu o país com o seu plano de trazer semanalmente voos charter carregados de chineses para assistirem em Alvalade às proezas do "melhor futebolista" do seu país. A ideia pode ser disparatada, mas a intuição essencial está correta: qualquer projeto económico deve hoje tentar explorar as oportunidades decorrentes do crescente peso da China e de outros países emergentes.

Futre é um sujeito com poucas letras. Porém, como tem vivido num país onde os media não se limitam a comentar a doença da burra da Ti Jaquina e os casos amorosos do Presidente da Câmara, absorveu noções úteis sobre o mundo em que vivemos. Se lhe perguntassem a opinião, decerto criticaria o facto de o AICEP ter mais delegações em Espanha que na China (já para não falar da Índia) e admirar-se-ia ao saber que o Plano Estratégico Nacional do Turismo persiste em manter como mercados prioritários a Espanha e o Reino Unido, em detrimento do Império do Meio.

Um país cujas classes dirigentes revelam menos visão do mundo que um ex-futebolista tem, claramente, um problema.

(Publicado no Jornal de Negócios em 20.4.11)